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Um descaminho teórico – Peter Samol

arlindenor pedro
Por arlindenor pedro 39 leitura mínima

APRESENTAÇÃO

Um dos debates mais importantes sobre a obra de Marx é o que trata da definição de trabalho produtivo. Fundamental para a compreensão mais profunda dos significados da crítica da economia política, esse debate nunca esteve em primeiro plano entre os epígonos, intérpretes ou detratores de Marx, distinto do que ocorreu com as polêmicas em torno dos esquemas de reprodução ou da transformação de valor em preço. Entretanto, do ponto de vista categorial, o problema do trabalho produtivo as precede logicamente: seria impossível compreender os esquemas ampliados de reprodução sem uma distinção rigorosa entre o “trabalho que agrega valor” e o “dispêndio improdutivo da força de trabalho” (Marx), assim como não faz sentido discutir como o valor se manifesta sob a forma monetária sem ter o foco sobre a “substância” do valor e, por isso, saber a diferença entre valorização e capitalização.

    Ao longo do século XX, alguns poucos autores se debruçaram sobre o tema, como foi o caso de Isaak Rubin em 1923 (A teoria marxista do valor) e Ernest Mandel em 1967 (O capital: cem anos de controvérsias em torno da obra de Marx), mas a reflexão de ambos naufragou. Para o teórico russo, desaparecido durante os expurgos da era stalinista, a diferença entre trabalho produtivo e improdutivo ocorre no emprego desse trabalho na esfera do capital produtivo ou na esfera improdutiva (circulação). A reflexão é importante, mas não alcança o ponto de vista da reprodução: as mercadorias consumidas pelo capital e pelo trabalho empregados na esfera da circulação realizam o seu valor ou, como diz Marx a respeito do “consumo improdutivo”, seu “valor desaparece com o consumo”? Por seu turno, Mandel foi capaz de ver os diferentes momentos em que Marx se debruçou sobre o tema, diferenciando a abordagem que parte do capitalista individual e a análise do trabalho produtivo pelo capital global. Entretanto, ao dirigir a reflexão para os “bens materiais”, o marxista belga regrediu a um materialismo vulgar que pôs em risco toda a teoria do valor. Os teóricos pós-modernos, em contraponto ao marxismo vulgar, querem enterrar toda a crítica da economia política porque descobriram a importância do “trabalho imaterial”, expressão que já estava em Marx e nada diz sobre a natureza produtiva ou improdutiva do trabalho em termos de valor.

    O texto a seguir foge completamente desse âmbito simplificador. Ele é o resultado de um processo de amadurecimento da chamada crítica do valor – a compreensão de que a grande contribuição (e atualidade) da obra de Marx reside precisamente na sua análise de como o capitalismo reduz tudo à forma de mercadoria e, por isso, tem uma dinâmica interna de autodestruição. A crescente improdutividade do trabalho seria uma das manifestações dessa autocontradição do capital: além do desemprego em massa, a secular transferência do trabalho para as esferas improdutivas do capital travam a reprodução, que não pode mais ocorrer de modo ampliado. Peter Samol, no artigo a seguir, que apareceu no site da Krisis em 2013, critica o modo como Robert Kurz apresenta o problema da improdutividade crescente do trabalho. Fundador da Krisis, da qual se afastou em 2004 para fundar o grupo Exit, Kurz é criticado basicamente por definir trabalho produtivo como aquele “cujo consumo é recuperado de novo na reprodução ampliada”. Samol acredita que essa formulação, baseada numa “teoria da circulação”, é tautológica: “de acordo com Kurz, os produtos são resultado de trabalho produtivo somente quando são consumidos por trabalhadores produtivos, o que são então ‘trabalhadores produtivos’? A resposta é: ‘aqueles cujo trabalho é produtivo’”.

    Fruto de um longo caminho de desenvolvimento teórico, cujos principais momentos poderiam ser indicados nos escritos de 1986 (A crise do valor de troca), 1995 (Ascensão do dinheiro aos céus) e 2007 (O desvalor do conhecimento), a formulação de Robert Kurz tenta preencher uma lacuna na crítica do valor sem recair numa visão limitada da produção (por isso a importância da “reprodução do capital global”) e muito menos regredir à ontologia do trabalho que fica preso à natureza material dos produtos. Aqui Samol parece se prender a esse último problema ao priorizar um termo de passagem em Kurz (“produtos”) como o cerne de sua questão: “Kurz coloca a questão de quem paga pelo produto do trabalho”. Na formulação original kurziana, ele se refere tanto a produtos como “máquinas de lavar e automóveis” como a “produtos” (com aspas) como “corte de cabelos e expedição de cartas” (serviços), exatamente para fugir de uma definição da “substância” do trabalho produtivo baseada na “tangibilidade ‘material’ do produto”. Também a imputação de “tautologia” só faz sentido se a “teoria da circulação” reivindicada por Kurz é rebaixada à mera “esfera da circulação”, quando ele claramente trata do “processo global de circulação” (unidade de produção e circulação).

O silêncio sobre as considerações aprofundadas de Kurz em Dinheiro sem valor (2012) pesam aqui para a incompreensão do problema. No que se tornou seu último livro, Kurz amplia a sua reformulação criticando radicalmente o “individualismo metodológico” ainda presente na crítica do valor, o que se manifesta em uma teoria que parte da mercadoria individual e do trabalho privado e chega apenas ao capital em geral como mera hipostasia abstrata do capital particular. O ponto de vista do capital global torna-se essencial para a transformação da crítica da economia política, cabo de força teórico necessário à reconstrução de todas as categorias de crítica radical do capitalismo.

 Maurílio Lima Botelho

UM DESCAMINHO TEÓRICO

A estranha versão do conceito de “trabalho improdutivo” em Robert Kurz e como sua resposta às críticas aprofundou a confusão .

Resumo

A diminuição do trabalho produtivo de valor, junto com o simultâneo aumento do trabalho improdutivo de valor, é uma das várias causas da crise a que chega inexoravelmente o capitalismo na sua fase tardia. Uma determinação precisa da distinção entre trabalho produtivo e improdutivo é imprescindível para a análise desse fenômeno. O teórico crítico do valor Robert Kurz trata disso em vários ensaios. No entanto, no curso de duas décadas, essa distinção tem passado, no autor, por uma mudança que significa uma transformação fundamental no conteúdo desses conceitos. Finalmente, Kurz estabelece essa distinção em um nível de análise completamente diferente que em Marx. Se para Marx o decisivo para a determinação do trabalho produtivo é se e como um trabalho participa na produção de mercadorias pelo capital, Kurz chega à interpretação de que somente uma consideração da circulação de mercadorias permite uma demarcação exata entre trabalho produtivo e improdutivo. Mas pode ser mostrado com Marx que o valor dos produtos do trabalho permanece com o capital depois da sua realização, e que a circulação, portanto, não pode ter o papel reservado por Kurz na determinação dos conceitos. Para além disso, a posição de Kurz sofre de uma tautologia conceitual na qual o trabalho produtivo é explicado por ele mesmo. E ainda, Kurz alarga finalmente a questionável tautologia, donde ele acaba não só colocando de lado qualquer outra explicação, mas ele mesmo não é mais capaz de explicar nada. A posição deste artigo é contrária a essa direção rumo a um beco sem saída na elaboração teórica da crítica do valor.

Introdução

Como se sabe, a abordagem da crítica do valor admite que a Terceira Revolução Industrial lança o sistema de valorização em uma crise fundamental. Uma das várias causas principais é a “multiplicação do trabalho improdutivo”. De acordo com isso, a ascensão da ciência como principal força produtiva leva a uma sucessiva substituição do trabalho produtor de valor pelo trabalho improdutivo. Essa tese foi formulada em primeiro lugar por Robert Kurz no texto “A crise do valor de troca”, de 1986. Vinte anos mais tarde, com a publicação da polêmica “A inutilidade do desconhecimento”, Kurz coloca essa mudança na composição do trabalho social total como ponto chave da teoria da crise da crítica do valor. Afirma-se que o modo de produção capitalista mina suas próprias bases, pois “com a progressiva socialização os ‘faux frais’ (i.e., os “custos mortos” do trabalho improdutivo, PS) crescem por razões objetivas, enquanto simultaneamente baixa a massa de mais-valia social total do conjunto da sociedade. É esta discrepância crescente que constitui precisamente a barreira interna absoluta da valorização” (Kurz 2007, S. 18). Além do fato de que as razões que levam ao afundamento da massa social de (mais-)valor global não podem ser reduzidas a esse único momento, Kurz apreende o conceito de trabalho improdutivo nesse texto de modo muito peculiar. Ele estabelece essa distinção em um nível de análise completamente diferente daquela que Marx fez. Marx e a abordagem da crítica do valor concordaram que é decisivo para a determinação do trabalho produtivo saber se e como os diferentes trabalhos participam na produção de mercadorias pelo capital. De acordo com Robert Kurz, ao contrário, apenas a consideração da posição da mercadoria nas complexas condições de troca dentro da forma social capitalista, isto é, na circulação de mercadorias, permite uma demarcação clara entre o trabalho produtivo e improdutivo. Robert Kurz deu sequência a essa mudança de nível na determinação do trabalho produtivo, como pode ser visto em outro texto de Robert Kurz, “A ascensão do dinheiro aos céus”, publicado em 1995.

I. O desenvolvimento da tautologia de Kurz na questão do trabalho improdutivo

No texto já mencionado “A crise do valor de troca”, de 1986, Kurz ainda está muito longe dessa mudança. Lá, ele trata a relação do trabalho com a produção capitalista de mercadorias como o critério exclusivo da distinção que permite separar o trabalho produtor de valor do não produtor de valor. Além do pressuposto, evidente em todos os teóricos de proveniência marxista, segundo o qual o trabalho só pode ser trabalho produtivo se for pago pelo capital – i.e., o trabalho que não está em uma relação capitalista simplesmente não é produtivo – Kurz enfatiza, acima de tudo, um ponto de vista particular: a questão da “imputabilidade” (Zurechenbarkeit). Desse modo, apenas os trabalhos diretamente envolvidos na produção de uma mercadoria singular podem ser considerados trabalhos produtivos. Todo o trabalho necessário para assegurar as condições gerais e individuais da produção, por outro lado, tem o caráter de trabalho improdutivo, isto é, não entra na formação do valor de troca, mas pertence aos custos adicionais de produção do capital. Ainda que esses trabalhos sejam indispensáveis ao funcionamento do capitalismo, eles ao mesmo tempo reduzem os lucros, pois consomem mais-valia sem produzir valor. Tais atividades são, por exemplo, atividades organizacionais dentro das distintas unidades capitalistas (p.e., a supervisão dos processos de produção ou contabilidade), atividades na circulação de mercadorias (compra de matérias-primas, venda de produtos acabados, publicidade, etc.), atividades de administração e circulação do dinheiro (como em bancos, seguradoras, bolsas de valores, etc.), proteção de objetos valiosos (serviços de vigia noturno, segurança etc.), atividades do Estado (legislação, jurisdição, administração, provisão de educação e cuidados médicos, bem como a infraestrutura geral,etc.) e, não menos importante, a produção geral de conhecimento (especialmente nos departamentos de pesquisa e desenvolvimento das empresas).

Ernst Lohoff, em seu texto “O Valor do Conhecimento” (Lohoff 2006), abordou esta delimitação conceitual do núcleo do trabalho produtivo de valor no que diz respeito ao trabalho do conhecimento, centrando-se especialmente na questão de até que ponto a grande maioria do trabalho de informação no campo das tecnologias de informação (TI) é um trabalho improdutivo. Na medida em que o trabalho intelectual é executado apenas uma vez e pode entrar em qualquer número de produtos individuais, como, por exemplo, a produção de software, ele é uma forma de trabalho geral e, portanto de trabalho improdutivo – de acordo com o critério da “imputabilidade” de Kurz -, uma vez que não entra na produção de cada bem individual. A produção de quaisquer bens de conhecimento replicáveis permite ganhar dinheiro, mas a sua fabricação não produz nenhum valor a ser realizado posteriormente com uma venda bem-sucedida; antes, os produtores desses bens criam uma “renda de informação”. Em seu texto de 2007, Robert Kurz descarta rapidamente essas considerações, que estão diretamente ligadas a um fundamento da teoria da crise da crítica do valor, como algo irrelevante. De acordo com essa visão posterior, uma clara separação conceitual entre trabalho produtivo e improdutivo só pode ser obtida em termos de uma “teoria da circulação” – e Lohoff, que na determinação do trabalho produtivo abstrai os entrelaçamentos da circulação, desqualifica-se na falta dessa compreensão como representante de uma errônea teoria “pré-monetária” do valor.

Essa ruptura com um ponto de vista que o próprio Robert Kurz tinha desenvolvido nos seus próprios trabalhos teóricos fundamentais sobre a crise, havia começado doze anos antes. A tese de que a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo tem também uma dimensão teórica da circulação e que portanto seria no mínimo também determinada pela circulação, fora já introduzida por Kurz no ensaio “A ascensão do dinheiro aos céus”, de 1995. Em contraste com o texto posterior de 2007, porém, Kurz não considera ali o “teorema da circulação” como o único critério, mas coloca-o praticamente ao lado da clássica determinação do trabalho produtivo da crítica do valor. De acordo com a posição expressa no ensaio de 1995, existem dois obstáculos para que os trabalhos sejam considerados produtivos, considerada a sociedade num todo: em primeiro lugar, devem: (a) estar diretamente envolvidos na produção de mercadorias dentro de uma relação capitalista e serem responsabilizáveis por mercadorias individuais, e ao mesmo tempo – e aqui a novidade em Kurz – (b) também representar trabalho produtivo na perspectiva da teoria da circulação. De acordo com o segundo aspecto, “… só é produtivo de capital aquele trabalho cujos produtos (e também cujos custos de reprodução) refluem no processo de acumulação do capital; ou seja, aquele cujo consumo é recuperado de novo na reprodução ampliada. Só este consumo é um ‘consumo produtivo’, não apenas imediatamente, mas também em referência à reprodução. Isso ocorre quando os bens de consumo são consumidos por trabalhadores que são por sua vez produtores de capital, cujo consumo não se esgota em si, mas retorna na forma do ‘fogo’ da energia produtiva de capital, num novo ciclo de produção de mais-valia. Inversamente, todos os bens de consumo que são consumidos por trabalhadores improdutivos ou por não-trabalhadores (crianças, reformados, doentes etc.,) não retornam, como energia renovada, na criação de mais-valia: no plano do conjunto da sociedade, trata-se apenas de um consumo que desaparece sem deixar rastos e sem impulsionar a reprodução capitalista. O mesmo vale também para a produção de bens de capital: em termos de teoria da circulação, este trabalho só é produtivo se o consumo de seus produtos se dá no contexto da criação de mais-valia, isto é, se retorna ao ciclo de produção da mais-valia” (Kurz 1996, S. 34f., destaques no original).

De acordo com Kurz, um cabeleireiro trabalha de forma produtiva quando corta os cabelos de um trabalhador produtivo, mas é improdutivo quando utiliza as tesouras em qualquer outra pessoa. Esta interpretação nos termos da “teoria da circulação” não é problemática apenas quando se coloca no centro da determinação do trabalho produtivo e contra o posterior desenvolvimento da argumentação clássica da crítica do valor; mesmo como uma alegada complementação, contribui mais para a confusão do que para o esclarecimento. A tese de Kurz segundo a qual depende do respectivo cliente se o cabeleireiro – ou qualquer outro produtor de um bem ou serviço – deve ser considerado um trabalhador produtivo ou não, é totalmente justificada. Aqui surge inevitavelmente a questão: se, de acordo com Kurz, os produtos são resultado de trabalho produtivo somente quando são consumidos por trabalhadores produtivos, o que são então “trabalhadores produtivos”? A resposta é: “aqueles cujo trabalho é produtivo”. Isso, por sua vez, se aplica ao trabalho cujo produto é consumido por trabalhadores produtivos. Mas quais trabalhadores são realmente trabalhadores produtivos? E assim por diante, infinitamente sempre em um círculo. Isso faz lembrar a canção infantil do furo no balde, que não acaba nunca pois sempre fica faltando um objeto fundamental. No final, o que falta é um balde intacto, e a canção começa novamente desde o início. A definição de Kurz é obviamente tautológica, uma vez que o trabalho produtivo é determinado pelo trabalho produtivo, isto é, por ele mesmo, um erro básico que todo estudante de filosofia aprende a evitar desde o primeiro semestre. Já em 1999, Michael Heinrich criticou essa tautologia e também observou: “Kurz também parece ter clareza sobre essa circularidade, pois ele observa que seu conceito de trabalho produtivo ‘pode parecer estranho ao pensamento definidor infestado de positivismo’ – com o qual já antecipa os limites dos futuros críticos, os quais já estariam ‘positivistamente infestados’”. (Heinrich 1999, S. 10). É claro que o positivismo certamente deve ser criticado; em sua perspectiva limitada, apenas o que é mensurável pode ser examinado e discutido, sendo tudo mais considerado “não-científico” e, portanto, insignificante; além disso, sua lógica é puramente formal, indiferente ao conteúdo. Obviamente, é a alegação de tautologia (ou circularidade) que se baseia (supostamente) numa conclusão puramente formal, que Kurz gostaria de derrubar com sua acusação de positivismo. Mas é exatamente no pano de fundo de uma lógica dialética que Kurz não é convincente neste caso; pois para Hegel, o precursor e virtuoso da dialética, uma estratégia de raciocínio é circular quando é uma antecipação de um princípio ainda a ser demonstrado (Jaeschke 2005, pp. 226 e ss.). Embora as tautologias ocorram ocasionalmente na tradição da teoria dialética, elas têm ai uma função completamente diferente que em Kurz. Enquanto núcleo mais íntimo de um conceito, elas ocasionalmente representam na lógica dialética uma espécie de “tautologia de base”, que, no entanto, é já abolida na primeira negação e, no desenvolvimento posterior, é levada até o quase completo desaparecimento, de modo que só pode ser encontrada mediante uma análise meticulosa – tal como a efetuada por Hegel em sua “Ciência da Lógica”. Em Hegel (1986, S. 41ff.), por exemplo, o teorema de identidade A = A, originalmente derivado de Aristóteles, é uma tautologia. Mas uma tal tautologia não significa nada. Quem diz que uma árvore é uma árvore ainda não expandiu seu conhecimento botânico (veja Hoffmann 2004, página 326). Da mesma forma, Kurz não alcançou qualquer progresso cognitivo afirmando que o trabalho improdutivo é determinado pelo trabalho improdutivo.

Tais inícios tautológicos são extremamente pobres de conteúdo e estão lá só para serem superados. Permanecer neles significa não tê-los compreendido. Eles são convocados somente para, no curso do desdobramento do conceito, desaparecerem e liberarem a mediação. Por meio do abandono desse início, as determinações do pensamento se tornam cada vez mais determinadas. No entanto, em Kurz as determinações de pensamento se tornam, exatamente ao contrário, cada vez mais indeterminadas. Em caso de recorrer à dialética, ele o faz de uma forma rígida na qual ela perde a sua vitalidade. Assim, a tautologia inicial não só é mantida, mas se expande cada vez mais, impedindo uma elaboração de uma teoria sólida. Desta maneira, o conceito não atravessa mais nenhuma determinação posterior, ficando afinal como uma afirmação seca e insustentável no ar.

Como foi mostrado, que o trabalho objetivado na mercadoria consumida seja produtivo ou improdutivo depende, de acordo com Kurz, do status do consumidor no interior do processo de valorização do valor. Com essa mudança de perspectiva ele pensa ter aberto uma porta de entrada para o ciclo do capital. Mas, na verdade, ele não acedeu ao ciclo do capital, senão que transferiu a diferença entre trabalho produtivo e improdutivo para a circulação. Mas, no livro II d’O Capital Marx deixa claro que o valor dos produtos do trabalho não passa, como afirma Kurz, pelos consumidores ou pela força de trabalho. Isso só se aplica ao valor de uso das mercadorias que entram no consumo da força de trabalho. No entanto, considerado o lado do seu valor de troca, se mantém que “o capital variável [e com isso, também o respectivo valor, P.S.], em qualquer forma, sempre permanece nas mãos do capitalista […] Durante todas essas mudanças, o capitalista I mantém continuamente o capital variável em suas mãos: 1) no início, como capital monetário; 2) em seguida, como elemento de seu capital produtivo; 3) mais tarde, como parte de valor de seu capital-mercadoria; 4) ao final, novamente em dinheiro, ao qual a força de trabalho, em que se pode converter, se confronta de novo” (MEW 24, S. 445 [1985, volume III, 328]). Mas se, como mostra Marx, o valor do capital variável nunca deixa as mãos dos capitalistas, então é totalmente irrelevante a fonte da qual se originou o dinheiro que levou à venda da mercadoria e com isso à etapa 4. De fato, embora o salário contribua decisivamente para a realização dos bens de consumo – “é o salário, o dinheiro do trabalhador, que justamente ao realizar-se nesses meios de consumo restabelece em sua forma-dinheiro o capital variável […] para o capitalista” (MEW 24, S. 445 [1985, volume III, 328]) – somente é importante para o capital que as mercadorias sejam realizadas, e não de onde veio o respectivo dinheiro; e, certamente, essa não é uma questão de trabalho produtivo e improdutivo. Nesse contexto, Robert Kurz remete a plausibilidade superficial da sua abordagem ao fato evidente de que tendencialmente cada vez mais trabalho vivo é empurrado para fora da produção de mercadorias, o que por sua vez acaba tendo um efeito negativo sobre eles, pois cada trabalhador demitido deve restringir o seu consumo, consequentemente tornando supérfluo ainda mais trabalho, levando a novas demissões, etc. Desde o fim da prosperidade, em inícios dos anos de 1970, de fato, a tendência é que cada vez mais pessoas perdem a possibilidade de conseguir trabalho e de serem parte do processo de valorização. Isso afeta por sua vez a sua capacidade de realizar mais-valia enquanto consumidores e compradores de mercadorias. Isso não leva a um processo auto-reforçado de encolhimento somente porque a dinâmica de criação de capital fictício fornece possibilidades de realização alternativas ao capital funcionante. Mas isso é uma transformação no nível dos mecanismos de realização, e Kurz se perde quando confronta esse desenvolvimento com a determinação da noção de trabalho produtivo, e classifica portanto como produtos do trabalho improdutivo todos os produtos de trabalho consumidos pelos excluídos [Herausgefallenen] pois seu consumo não serve mais, como ele afirma, para “re-alimentar a reprodução do capital”. O fato de uma parte crescente da acumulação de capital funcionante ter se tornado dependente da antecipação mediada pela indústria financeira de produção de valor futuro, é farinha de outro saco, e não tem nada a ver com a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo.

2. A fuga para frente: o alargamento da tautologia pela sua elevação ao nível fundamental

Doze anos depois, o próprio Kurz alarga ainda mais a questionável tautologia na sua argumentação. No seu ensaio de 2007, “A inutilidade do desconhecimento”, caracterizado mais pela raiva denunciatória do que pela clareza de conteúdo, o teorema da circulação deixa de ser somente uma determinação da distinção entre trabalho produtivo e improdutivo adicional à compreensão clássica da crítica do valor, mas coloca-se numa posição contra ela. Agora Kurz insiste em que “a diferença entre trabalho produtivo e improdutivo não se pode estabelecer de forma definitória, com base em determinados ‘trabalhos’ particulares, mas apenas em termos de teoria da circulação, ou seja, com referência ao conjunto da reprodução capitalista. Esta ideia já era essencialmente o fundamento do meu ensaio A ascensão do dinheiro aos céus na velha Krisis (nº 16/17, 1995), mas até à data não sofreu qualquer desenvolvimento ulterior” (Kurz, 2007, p.13, itálico no original). Esse veredito dirige-se diretamente contra as considerações mencionadas acima de Ernst Lohoff (2006), sobre o trabalho informacional; mas levado a sério, Kurz explicitamente exclui desde o início qualquer possibilidade de mediação entre a noção marxiana de trabalho improdutivo (com a qual, aliás, ele mesmo continua, contudo, operando) e a sua abordagem teórica da circulação. O resultante “afogamento das diferenças” (Marx sobre Smith em MEW 24, 435 [1985, p.321, volume III] coloca não só para ele mesmo, mas também para seus colegas teóricos, necessidades conceituais. Assim, por exemplo, Ortlieb (2008, S. 16) escreve: “No quadro da crítica da economia política, porém, é indiscutível que todos os trabalhos que consistem na mera canalização de fluxos de dinheiro (comércio, bancos, companhias de seguros e muitos departamentos individuais dentro de empresas de resto produtoras de mais-valia) são improdutivos, não criando, portanto, qualquer mais-valia”. Com isso, Ortlieb utiliza a definição clássica e coloca-se em contradição aberta com Kurz. Pelo fato de não só não fazer uma mediação entre a utilização tradicional do conceito e a sua própria, mas pretender eliminar a compreensão antiga, Kurz estabelece as bases para um alto grau de confusão conceitual. No curso da sua argumentação, ele chega finalmente a uma posição que lembra fortemente a peculiar teoria do valor de Michael Heinrich (2006, Cf. também 2005). De acordo com ela, as mercadorias que não conseguem ser vendidas não representam, e nunca representaram, nenhum valor: “Por exemplo, mesmo trabalhos de fabrico industrial, na aparência claramente produtivos, também podem se tornar improdutivos, se não chamarem a si qualquer procura com capacidade de pagamento; isto não é de modo algum um ‘problema de realização’ de um valor em si existente, mas o que acontece é que foi ‘produzido’ muito pouco valor no conjunto da sociedade (o que apenas se torna visível no contexto de mediação), situação que então se vinga em determinados capitais individuais” (Kurz 2007, p.13). Que as mercadorias que não conseguem ser vendidas jamais representaram valor é uma mera afirmação de Kurz que ele, no entanto, não justifica. De fato, os problemas de realização não fazem do trabalho produtivo trabalho improdutivo, mas conduzem à desvalorização das mercadorias e do capital. Redefinir a realização malsucedida como trabalho improdutivo e torná-la o núcleo da distinção entre trabalho produtivo e improdutivo é altamente problemático. Pois: a) por um lado, – e nesse ponto tem que ser dada a razão a Ortlieb – há trabalho claramente improdutivo que não pode ser reduzido nem com a melhor das vontades ao teorema da circulação de Kurz. E este sempre existirá no capitalismo. Assim, por exemplo, os trabalhos na circulação são simplesmente insubstituíveis para o funcionamento do capitalismo, assim como o trabalho do conhecimento. O mesmo se aplica às atividades da polícia, juízes, políticos e outras pessoas que ladeiam o movimento da sociedade da mercadoria e dessa maneira permitem a continuidade de sua supervivência. No entanto, a sua indispensabilidade não os torna nem um pouco trabalho produtivo. Por outro lado, b) de acordo com Kurz só posteriormente pode se saber se um trabalho terá sido improdutivo. Isso resulta em graves problemas teóricos. Como se sabe, um critério essencial, embora não suficiente, para a determinação do trabalho produtivo é quem paga pela força de trabalho – isto é, o capital. Kurz, ao contrário, coloca a questão de quem paga pelo produto do trabalho (nele, para futuro trabalho produtivo – mas só é possível saber se este será novamente produtivo num futuro ainda mais distante, e assim por diante). Com isso, ele vira a linha do tempo entre produção e realização e portanto deve determinar o que resulta do futuro para o presente, o que é praticamente impossível. Em última instância, Robert Kurz resolve o problema da seguinte maneira: dado que ele está firmemente convencido de que a crise final do capitalismo está chegando de maneira segura e muito rapidamente, e segundo ele não é possível esclarecer “a definição conceptual de trabalho produtivo e improdutivo, sem se recorrer ao contexto interno do conjunto do sistema” (Kurz 2007, p. 21), ele pode afirmar com um dom supostamente profético que cada vez mais trabalho se torna trabalho improdutivo, o que conduz à crise. E por que cada vez mais trabalho se torna improdutivo? Porque a crise vem. Por que vem a crise? … E assim por diante. Assim como no “Ascensão do dinheiro aos céus”, “a tentativa de explicação pressuporia a explicação que ele precisa primeiro encontrar” (Adorno 1966, S. 144 [123]). Dessa maneira, tornou-se evidente que a tautologia de Kurz expandiu-se monstruosamente, não só substituindo qualquer outra explicação, mas afinal ela mesmo por sua parte não explicando nada. Com isso, a teoria das crises da crítica do valor não é desenvolvida, antes é conduzida a um beco sem saída.

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[Uma contradição entre matéria e forma. Disponível em: http://o-beco-pt.blogspot.com.br/2010/06/claus-peter-ortlieb-uma-contradicao.html%5D

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Samol, Peter: Michael Heinrichs Fehlkalkulationen der Profitrate. Krisis 1/2013. http://www.krisis.org/2013/michael-heinrichs-fehlkalkulationen-der-profitrate

 

Texto original: Peter Samol. Ein theoretischer Holzweg. Die seltsame Fassung des Begriffs der „unproduktiven Arbeit“ von Robert Kurz und wie er sich als Reaktion auf die Kritik daran in einen noch tieferen Schlamassel begeben hat.

Krisis, 4/2013. http://www.krisis.org/wp-content/data/peter-samol-ein-theoretischer-holzweg-2013-4.pdf

Tradução: Marcos Barreira e Javier Blank

 

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