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O homem cacto-Silvio Ribeiro de Castro

arlindenor pedro
Por arlindenor pedro 8 leitura mínima

O contador de histórias

‘O nome dele é Alfredo. Ele não gosta do seu nome. É solteiro e mora num quarto-e-sala no nono andar de um prédio de 250 apartamentos.

Graças à sua persistência, comprava bilhetes da loteria todas as semanas, ganhou o primeiro prêmio do concurso de natal. Foi quando decidiu abandonar o emprego no departamento de Águas e Esgotos, que ele detestava. Nunca mais iria receber ordens de um chefe incompetente e nem participar das festinhas de aniversário que os seus colegas organizavam, com aqueles refrigerantes quentes e salgadinhos sem gosto. Depois de cálculos minuciosos, resolveu que ía viver de rendas. Era muito comedido nos gastos e calculou que a aplicação daquele capital ía permitir que ele levasse aquela sua vidinha frugal e controlada durante toda a existência. Nunca se casou e dava graças a Deus por não ter tido filhos, como sua irmã que vivia tendo problemas com os seus, malandros e encrenqueiros. Tinha muito pouco contato com a família. Com essa irmã, que continuava morando na cidadezinha em que tinham nascido, no interior de Goiás, o último encontro foi quando ela ligou avisando que a sua mãe tinha falecido e ele teve de embarcar às pressas, de avião que ele detestava, para chegar a tempo do enterro. Tempos depois ela ligou pedindo emprestada uma pequena quantia em dinheiro, que ele emprestou a contragosto, desde que ela pagasse os juros que ele ía perder com a desaplicação do dinheiro, para não prejudicar os cálculos com a sua aposentadoria.

Conhecia pouco os vizinhos e não fazia muita questão de conhecê-los. A que ele tinha mais contato era a ‘dona’ Marília, a vizinha de baixo, do oitavo andar, que reclamava do barulho que ele fazia quando andava pela casa de madrugada. Uma chata! Por essas e outras que ele preferia usar as escadas para evitar encontrar com pessoas no elevador. Quase não saía de casa e gostava de caminhar pela praia de madrugada quando ela estava deserta. Naquela noite, quando ainda estava no calçadão, foi abordado por um homem que desceu de um táxi e veio em sua direção.


“Fredinho!” Há mais de trinta, quarenta anos, que ninguém o chamava por esse apelido. “Não está me reconhecendo? Já vi que não está. Sou o Pedro Paulo, o Pepê, seu colega de ginásio. Claro, estou mais velho, engordei um pouquinho… Mas você está ótimo! Tudo bem?” “Está tudo bem”, respondeu sem nenhum entusiasmo, como quem não estava disposto a prosseguir naquela conversa.

Mas o outro não percebeu ou fingiu não perceber, e prosseguiu. “Sabe que é uma grande coincidência. Outro dia estava mesmo falando de você com a Solange. A Sô. Lembra dela? Claro que lembra, nossa colega, linda, até foi eleita rainha da primavera. Cara, nem te conto, me casei com ela. Foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida. Somos muito felizes. Tenho dois filhos e quatro netinhos.” Impaciente, ele permaneceu mudo, mas o
homenzinho à sua frente estava entusiasmado com aquele encontro e não parava de falar. “Ela fala sempre de você. Ela não concorda com aquele apelido que te deram: homem cacto. Diziam que você era muito posudo porque era o melhor aluno da turma. Nas provas, não dava cola para ninguém. Não gostava de muita intimidade. Quem se aproximava era espetado. Homem cacto… Quero dizer que eu também não concordava com esse apelido, mas deixa pra lá…” Fez um gesto como querendo se despedir, mas o ex-colega, o segurou pelo braço.” Pena que estou voltando hoje pra Goiás, precisamos nos encontrar de novo. Tome o meu cartão. Me ligue!” E ainda de longe gritou: “A Sô nem vai acreditar que te encontrei!” Ainda grogue com aquele encontro inesperado, sentindo como se tivesse levado um soco na boca do estômago, começou a caminhar pela beira mar como sempre fazia, a espuma das ondas molhando seus pés. Sô, a imagem dela veio com força, jovem como permanecia na sua memória.

Sim, tinham sido namorados. Ela, a garota que todos queriam namorar, gostava dele, apesar do seu jeito arredio. A família dela fazia muito gosto, já falavam até em casamento, porque projetavam para ele um grande futuro. Ele veio estudar no Rio e ela ficou por lá. Eram outros tempos, as comunicações difíceis. Ele prometeu voltar, mas não cumpriu a promessa. As cartas foram rareando, nem sempre respondidas, até que cessaram. Ele nunca mais voltou. O ‘homem cacto’, reconhecia que o apelido era bem apropriado. O que ele tinha feito da sua vida? Resolveu entrar no mar, apesar da água gelada. Foi caminhando para o fundo. E se continuasse caminhando, caminhando sem parar até…

Uma onda mais forte o empurrou aos trambolhões de volta para a praia. Ficou deitado na areia por um tempo, mas começou a sentir muito frio. Resolveu voltar para casa e subir pelo elevador. Àquela hora não encontraria ninguém. Estava enganado, a Marília, a ‘dona’ Marília, a moradora do oitavo andar estava subindo da garagem. “Seu Alfredo, bom dia, o senhor anda sumido. Nossa! O senhor está tremendo de frio. Venha aqui em casa que eu vou lhe dar uma toalha para o senhor se enxugar”. O elevador parou no oitavo andar e ela ficou segurando a porta. Sem alternativa, ele entrou no apartamento e foi se enxugar no banheiro. Quando saiu, recebeu outro convite. “Já estou preparando o café, venha.” “Dona Marília…” “ E por favor, não me chame de ‘dona’ Marília. E não aceito desfeita!” “Vou molhar a sua cadeira.” “Vai ser na mesa da cozinha, a cadeira é de plástico”. Constrangido, sentou à mesa e ficou observando a ‘dona’ Marília, ou melhor, a Marília preparar o café. Um cheirinho de café misturado com o de pão torrado tomou conta de toda a cozinha. Até que a Marília era bonitinha, e também muito simpática, avaliou. Há muito tempo ele não se sentia tão bem. Foi então que reparou, em cima de um pequeno aparador, um vaso com um cacto. Nunca tinha visto um cacto como aquele. Do emaranhado de hastes espinhosas, brotavam duas florzinhas cor de rosa em forma de estrela.

SILVIO RIBEIRO DE CASTRO

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Libertário - professor de história, filosofia e sociologia .
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