O texto BITBURG: 5 de maio de 1985 – uma carta para a esquerda alemã foi publicado na coletânea “Antissemitismo e nacional-socialismo”, da Consequência Editora
Ele foi um dos teóricos mais radicais e gentis da esquerda. Sobre a morte de Moishe Postone, a quem este jornal deve muito.
Sem Moishe Postone, que faleceu em Chicago em 19 de março, aos 75 anos, este jornal provavelmente não existiria – pelo menos não como o conhecemos hoje. A divisão da equipe editorial do Junge Welt, da qual surgiu o Jungle World em 1997, também foi o resultado de um processo que começou antes mesmo da reunificação: no final da década de 1980, o texto de Postone “National Socialism and Anti-Semitism” circulou como uma recomendação privilegiada nos círculos que tentavam reajustar seu próprio marxismo por meio de uma releitura da “Crítica da Economia Política” de Marx, bem como pelo exame da Teoria Crítica clássica e uma preocupação mais intensa com o nacional-socialismo. Escrito originalmente para uma publicação norte-americana, o artigo não provocou grandes discussões após sua primeira publicação na Alemanha no final dos anos 1970 e início dos anos 1980. Em 1991, ISF, sediada em Freiburg e liderada pelo publicista Joachim Bruhn, reimprimiu-o em sua revista Kritik & Krise; em 2005, ele apareceu na coletânea de ensaios de Postone, “Deutschland, die Linke und der Holocaust” (Alemanha, a Esquerda e o Holocausto), publicada pela editora Ça ira, de Freiburg, e hoje é leitura obrigatória para qualquer pessoa interessada em crítica social materialista. Os editores de “Deutschland, die Linke und der Holocaust” declararam: “Os textos de Postone influenciaram a adoção de uma teoria crítica da sociedade por uma parte relevante da esquerda radical, que tem como ponto de partida a abordagem autocrítica do passado nacional-socialista”. Eles também levaram, assim, à criação deste jornal, no qual entrevistas com Postone têm sido publicadas com frequencia e no qual ele publicou vários dossiês.
Contra o pano de fundo da trivialização marxista-leninista do antissemitismo que prevaleceu por décadas, Joachim Bruhn descreveu corretamente as teses de Postone sobre o nacional-socialismo como uma “revolução da visão materialista do antissemitismo”. Sua descrição do antissemitismo moderno, a partir das categorias básicas d’ O Capital de Marx, como ódio ao abstrato, sua clara distinção entre antissemitismo e racismo e sua análise das práticas de extermínio do nacional-socialismo como uma ruptura com a lógica capitalista da valorização e com a racionalidade da dominação estabeleceram referências, assim como sua crítica à esquerda alemã e a um anticapitalismo fetichista que se acredita progressista.
Na recepção das teses de Postone sobre o antissemitismo, às vezes se notava uma tendência a uma defesa teórico-racionalizadora da história, embora não se possa acusar ele próprio disso. Para Postone, a experiência judaica de violência e extermínio e o horror quanto ao antissemitismo na esquerda alemã constituem o ponto de partida para seus esforços críticos. Seu pai, um rabino da Lituânia, conseguiu emigrar para o Canadá em agosto de 1939, apenas uma semana antes do início da Segunda Guerra Mundial. Lá ele conheceu sua esposa, que havia crescido na União Soviética durante o terror stalinista, e Moishe Postone nasceu em 1942. Toda a família de seu pai e muitos dos parentes de sua mãe foram assassinados na Shoah.
Postone frequentou a escola primária judaica em Edmonton, no oeste do Canadá, e depois a escola secundária judaica, primeiro em Los Angeles e depois em Chicago. Inicialmente, ele estudou bioquímica na Universidade de Chicago, mas logo estudou Intellectual History com Hannah Arendt, que, segundo Postone, era a única professora da universidade na época que abordava Marx e Hegel em seus seminários.
Postone aprendeu alemão em Munique antes de se mudar para a Universidade de Frankfurt no início da década de 1970, onde concluiu seu doutorado com Iring Fetscher e se envolveu intensamente nas discussões da Nova Esquerda. Em Nova York, na década de 1970, lecionou no Brooklyn College e no Richmond College. Desde 1987, lecionava História Intelectual Europeia e Teoria Social Crítica na Universidade de Chicago, mais recentemente como professor do Departamento de História.
Já em 1985, Postone escreveu uma carta aberta à esquerda da Alemanha Ocidental por ocasião da visita de Helmut Kohl e Ronald Reagan ao cemitério militar de Bitburg, cujo conteúdo ainda hoje é ignorado por grande parte da esquerda.* Postone caracterizou o atlantismo pró-americano dos conservadores alemães da época como uma forma conveniente de fazer com que a Alemanha Ocidental parecesse uma democracia normal sem confrontar seu passado nacional-socialista. Ele decifrou o anti-imperialismo da esquerda, tendo em vista que “centenas de milhares estão preparados para se manifestar contra o imperialismo americano e apenas algumas centenas contra a reabilitação do passado nazista”, como um antiamericanismo grosseiro e uma forma alternativa de defesa contra a culpa. A carta foi republicada no início da década de 1990 por iniciativa do jornalista Matthias Küntzel na revista Bahamas – e ainda é uma das críticas mais coerentes da sociedade alemã pós-nazista e de sua esquerda.
O livro de Postone sobre Marx, “Tempo, trabalho e dominação social”, foi publicado em 1993 pela Cambridge University Press, com base em sua dissertação de Frankfurt de 1983, e recebeu o prestigioso prêmio da American Sociological Association. Quando foi publicado em alemão, dez anos depois, pela Ça ira, a Jungle World não apenas publicou uma resenha detalhada, mas também uma série inteira de colunas sobre a “nova interpretação da teoria crítica de Marx” de Postone.
Seu estudo é uma objeção ao socialismo matemático do idealismo do valor, do dinheiro e do preço, que só vê problemas de distribuição e geralmente acredita que pode resolvê-los por meio de políticas tributárias alternativas, mas nunca aborda os produtos do trabalho formados pelo valor. Postone se opõe igualmente ao marxismo tradicional com sua noção supra-histórica do proletariado como sujeito da emancipação geral e às teorias pós-estruturalistas com sua simples negação de uma totalidade mediada pelo valor. No lugar da noção marxista tradicional de uma contradição fundamental entre capital e trabalho, ele coloca, no espírito da Teoria Crítica, a diferença (Diskrepanz) entre o existente e o possível. Inspirado por uma ideia central nos “Grundrisse” de Marx e tal como a crítica do valor em torno de Robert Kurz, com quem ele esteve em contato próximo algumas vezes, Postone localiza o antagonismo decisivo do capitalismo em crise na contradição crescente entre valor e riqueza material.
Jungle World, 29/03/2018
Tradução: Marcos Barreira
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