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Que tempo que o tempo tem?Alaor Junior

arlindenor pedro
Por arlindenor pedro 9 leitura mínima

Perguntaram ao Tempo que tempo que o Tempo tem, (bis) O tempo que leva tempo é o tempo que o Tempo tem, (bis) Tempo, Tempo, quanto tempo terá? (bis)

(Cantiga popular)

Convivi por quase trinta anos com uma típica baiana,minha sogra, com quem tive a oportunidade de muito aprender, refinando o traquejo de linguagem e visão de mundo, dentro daquele universo cultural ao qual fui me acostumando e assimilando histórias pitorescas, o que muito ajudou nos textos que escrevo. Ela sempre carregou uma grande força oriunda dos antepassados, firme e arretada, desfrutava de uma simplória, mas também encantadora sabedoria popular; língua apimentada como sempre, sabia de cor e salteado muitos ditos, simpatias, banhos, infusões,cantigas como esse ‘trava-língua’ da epígrafe e outros trejeitos que explicitavam o tesouro da africanidade, assentada de forma sui generis e potente na Bahia, tão relevante no tripé damiscigenação e que nos ajuda a lidar com as intempéries da vida, por exemplo, enfrentar o danado do tempo que insiste em não nos abandonar, decantando nossas areias pela grande cintura de vidro.

Na passagem de ano, lembrei da cantiga supracitada, e também daquela baiana experiente que, diariamente, temperava o tempo de convivência dos que se encontravam na casa com músicas, pontos e falas, entre outras distrações,dadas ao longo das tarefas domésticas, à guisa das lavadeiras negras à beira dos rios, experiências clássicas da cultura popular. Belo de se ver e ouvir, manifestação cultural regional, um mimo singular. E foi essa canção que alavancou as minhas reflexões sobre a questão do Tempo, aquele que tudo sabe, o senhor dos véus que se descortinam ao compasso da nossa maturidade.

Grandeza que não domesticamos até hoje (e nem sei se e quando vamos), historicamente, a comemoramos em rituaisque reacendem comportamentos fundamentados em experiências passadas, e que ainda habitam nosso ser, seja na mística associada às águas e à terra, seja às preces elevadas ao éter e que viajam no vento, seja o uso de fogos, fumaças, aromas e luzes, seja em uma atenção cromoterápica que magnetiza saúde e prosperidade, seja nas confraternizações diferenciadas, enfim, o velho Tempo nos oportuniza aliançasdiárias que ratificam nossa pequenez sobre seus domínios, objetivando um caminhar mais sereno, cônscio e lúdico, para enfrentar as angústias e ansiedades associadas à vivência do próprio, diga-se, por exemplo, seus convencionados ritos de passagem, que atestam a ciclicidade da vida, marcada pelo homem pelos padrões cronológico-culturais, o que nos aponta para uma dinâmica de repetição numa grande viagem de contornos, a saber: espiralada.

Mas aí fiquei pensando: como poderíamos transitar pelo viés da repetição fazendo-o de forma diferenciada? Não estaria assim estabelecida uma dicotomia, posto que a repetição envolve a [re]incisiva de uma ação realizada anteriormente, que uma vez replicada perderia a exclusividade? A psicanálise bem nos aponta para vivências que, inconscientemente, atiramos ao balaio mítico, perdido eternamente num passado que agora preenche o fosso dos vazios indizíveis, inalcançáveis, irrepetíveis, e é muito desse conteúdo que tentamos buscar e reviver. Mas o dilema aí se debruça, pois, a repetição é uma tentativa de revivênciadaqueles ‘issos’ que nos marcaram… Sob a ótica do formato diferenciado, não estaríamos nos esquivando da conhecida repetição? O que vale pensar é que devemos primar pelo novo, podendo até editar algo vivido com uma pegada mais atualizada, e isto confere a energia da jovialidade, da novidade, a sensação, ainda que ilusória, de um melhor aproveitamento do tempo, ou mesmo um andamento diferenciado, que sai do ‘presto’ das exigências do mundo moderno para o ‘adágio’ interno que deve ser exercitado, essas são as melodias de nossas vidas, vivemos em frequências de ondas senoides. Nessa vertente me bate o ‘acorde’ (musical e de acordar) … Seria isso uma utopia? Esses dias falava com o amigo Arlindenor sobre as auras de utopia que nos revestem, apesar de todo um cansaço frente à loucura social, tento apreendê-las para estruturar umdiferencial de vida, acreditando que nas mesmas haja uma energia salutar que dialoga com um mundo mais equânime.

Ouvi do mestre que as propostas utópicas, que carregamos como filosofia existencial, fazem um grande diferencial numa contemporaneidade. “Somos necessários”. E ele tem razão, estamos mergulhados em tempos que comportam uma massa social de alienados, ‘zumbis’ frente ao valor das relações gregárias saudáveis, da mesma forma que a vivência do tempo, onde a priorização do imediatismo beira o burlesco mais rasteiro, com gente vazia que demanda do outro a falaciosa ratificação afetiva que dá sentido às vidas ocas, como se os mal[ben]ditos ‘likes’ fossem cotas temporais de riqueza, rejuvenescimento, aceitação, sentido de vida; pois é, tempo jogado fora, ou sei lá, usado sob a percepção de outros, de maneira equivocada, pueril; essas pessoa nem se dão conta de si, vão sendo levadas na grande corrente… Muito além das águas do conhecimento, boiam, literalmente agrilhoadas aos conceitos engessados e a passados ultrapassados… E pensando em tempo, o argumento do amigo me levou à alegoria infantil do herói, utópico?, que enfrenta a realidade, atravessa o Tempo e traz nas suas convicções, ainda que mágicas, propostas inovadoras para o tempo que vivemos. O pensador idealista não seria um herói com vislumbre que trespassa o tempo? E nessa pegada, podemos ajudar o outro? Subverter é heroico… Acredite!

Você pode estar refletindo: mas ‘o que é do outro, cabe somente a ele’… De certa forma sim, somos subjetividades,porém, se pensarmos em um gregarismo, dadas as relações de interdependência, principalmente em associações realizadas à pauta econômica e social, perceberemos que certas alienações e distorções nos impactam, posto haver um sistema maior que nos rege, e que as minhas utopias insistem em combater como não aceitação de propostas que objetivam o encabrestamentodos mantidos à base da pirâmide, ainda presos às necessidades básicas. A Medusa capitalista oferece isso, a alienação petrificante, e é dessa relação, que se constitui como dependência, que vamos ficando emperrados, subjugados, perdendo (doando) nosso tempo enquanto meio de produção, mão de obra oportuna…

É fato que, descartada a ingenuidade barata, carecemos dos proventos auferidos na relação do trabalho/tempo, que consagra a dedicação a uma atividade, e nem pretendo entrar no espectro laboral associado a ganhos e valor, antes sim refletir sobre a questão do tempo que nos envolve, e que na proposta capitalista é utilizado como ferramenta de controle da mão de obra e produtividade que sempre enriquece os já ricos, repetição… Mas, se o tempo atrelado à noção de capital-hora nos impacta tanto, pois daí emergem as condições de consumo, a utopia me leva para uma necessária reflexão do homem quanto ao tempo destinado a si mesmo e aos seus, aquele tempo destinado à investigação do interno, dos nossos abismos, dos nossos, medos, angústias, impotências.

Como já citado, somos seres relacionais, atravessados pelo simbólico, o exercício do discurso, da linguagem é que dá sentido às nossas vidas, estruturamos nosso sentimento de identidade através da relação com o outro. E uma vez lançados ao mundo, sofremos a influência de forças diversas, uma delas é o tempo, daí a postura fundamental: que olhemos para outros prismas, a começar pelo interno, não somente o relógio biológico, mas, também, o psicológico: afetivo, emocional, subjetivo. Ainda que sob tais condições, o uso da razão e da reflexão consistente que alimentam as utopias deveservir de alimento à alma idealista que semeia ideias para um mundo melhor. Sem maiores pretensões, creio que isto seja possível, indo de encontro a determinismos que pregam um total esfacelamento social. Ainda temos salvação, que nossos ideais nos preencham com determinação e ideais promissores… 

Que o ‘tempo que leva tempo’ esteja circunscrito à cantiga e não às nossas ações, merecemos desfrutar dos prazeres da vida, e sem qualquer apelo hedonista, trilhar dias mais dignos, mais humanos, mais gentis, mais empáticos, mais saborosos e felizes, mais conscientes e sábios,aproveitando cada experiência para aprimorar nossa bagagem, e isto é trabalho diário, não com o peso do tripalium, mas com o regozijo de um bem viver. Que em 2025 reservemos mais o nosso tempo, a nós e aos amigos verdadeiros, afinal, impotentes que somos, não dominamos o dia de amanhã, há valores bem maiores que qualquer vil metal, que qualquer hora trabalhada. Que tenhamos coragem de subverter tudo aquilo que nos é comum, que busquemos tempos aproveitáveis, digeríveis, apetitosos. Sim consuma a vida sob o tempero da consciência. O novo nos revigora, atualiza a cota de tempo… aliás, o tempo urge… Você sabe que tempo o Tempo tem?

AlaorJr 050125

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Libertário - professor de história, filosofia e sociologia .
2 Comentários
  • Seu texto, repleto de sabedoria, me fez refletir sobre o quanto, frequentemente, somos aprisionados pelo tempo de maneira mecânica e externa, como se ele fosse algo a ser conquistado ou dominado, um bem a ser medido e trocado por produtividade e valores tangíveis. No entanto, ao nos aprofundarmos na sua reflexão, fica claro que o tempo, em sua essência, é também um espaço interior, algo que se constrói no sutil, no prazer das relações, no presente vivido de forma plena.

    Aquela figura da baiana, com sua sabedoria ancestral e sua forma única de viver o cotidiano, parece ser um antídoto contra essa tirania do tempo cronológico, que nos exige sempre mais e mais, sem nos permitir a pausa, a reflexão, o gozo das pequenas coisas. As cantigas, as histórias, as trocas cotidianas são como lembretes de que o tempo, na verdade, se faz nos pequenos gestos, nas conversas compartilhadas e nas experiências que não se medem em horas, mas em profundidade.

    Ao questionar como podemos transitar pela repetição de forma diferenciada, você nos provoca a buscar um tempo que se reinventa a cada ciclo, que transcende a mecanicidade do relógio para viver uma experiência renovadora, mais humana, mais conectada ao nosso interior e ao outro. Essa busca por um novo ritmo, mais sereno e consciente, é, talvez, a verdadeira revolução que podemos empreender contra as exigências da sociedade capitalista, que nos exige sempre mais, como se a produtividade fosse a única medida de valor.

    A ideia de que “somos necessários” no contexto de um tempo que tende à alienação e ao imediatismo ressoa fortemente. Há, de fato, uma grande força nas utopias que nos motivam a imaginar um futuro melhor, mais humano, mais justo. Mas esse futuro não pode ser conquistado sem antes tomarmos consciência de que o tempo que temos é um bem precioso, que deve ser direcionado ao que realmente importa: às relações autênticas, ao autoconhecimento, ao cuidado com o mundo e com os outros.

    Sim, o tempo urge. Mas, paradoxalmente, ao reconhecermos que ele é algo que não podemos controlar completamente, podemos aprender a viver com mais plenitude, a cada instante, sem pressa de chegar a algum lugar. O desafio é justamente esse: aproveitar o tempo não como um bem que se consome, mas como uma experiência que se cria, que se compartilha e que nos transforma.

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