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A morte do sujeito revolucionário: crítica do valor e contradição do capital em Moishe Postone-Diogo Labrego de Matos1

arlindenor pedro
Por arlindenor pedro 69 leitura mínima

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Resumo: Este trabalho tem como objetivo, a partir da crítica do valor em Moishe Postone, aprofundar o entendimento sobre o papel da categoria de sujeito revolucionário para a descrição da sociedade capitalista cara à perspectiva do marxismo tradicional.

Para isso, lançamos luz sobre as determinações envolvidas na análise categorial de Marx, sobretudo no que diz respeito à contradição mais fundamental do capitalismo que, sob a ótica de Postone, engendra uma distensão crescente entre a realidade imediata e possibilidades históricas contidas no aprofundamento da socialização pelo trabalho abstrato. Com isso, pretendemos fazer uma crítica ao conceito de sujeito revolucionário contaminada pela visão determinista do marxismo tradicional e, concomitantemente, salvaguardar a possibilidade de agência histórica pelos indivíduos que medeiam suas relações através de uma matriz social totalizante.

Introdução

O lançamento da obra Tempo, trabalho e dominação social, do teórico social Moishe Postone (1942-2018) e traduzida para o português em edição de 2014, introduziu um debate no círculo acadêmico que até então se dava apenas de forma marginal nesses ambientes. Trata-se da questão do papel proeminente da classe trabalhadora na transformação histórica do capitalismo, discussão que se atrela à validade do próprio conceito de “sujeito revolucionário”. O debate, na obra do autor, se dá fundamentalmente em torno da crítica à centralidade do trabalho, propondo uma mudança em relação àperspectiva tradicional do marxismo, que basearia sua formulação da crítica social do capital e do capitalismo a partir do trabalho.

Postone fundamenta a sua interpretação de Marx recorrendo a suas obras de maturidade, sobretudo a O Capital e aos Grundrisse. Com base nelas, Postone identifica a especificidade histórica da riqueza constituída pelo trabalho sob o capital, o valor. Segundo o autor, em nenhuma outra sociedade o trabalho teria constituído a forma geral da riqueza social, sendo essa, antes, uma particularidade histórica. É apenas no capitalismo que o valor, cuja substância é o trabalho, representa a forma geral da riqueza.

Neste trabalho, nós apresentaremos primeiramente a releitura de Marx proposta por Postone, principalmente no que diz respeito às condições materiais objetivas da superação do capital que são criadas no próprio capitalismo. Em seguida, abordaremos a crítica ensejada pelo autor ao marxismo tradicional, basicamente com vistas a indicar as diferenças fundamentais entre as duas perspectivas em relação ao papel da classe trabalhadora no processo de transformação histórica. Por fim, com base nos trabalhos de Postone e de outros autores, tentaremos indicar algumas contribuições ao debate sobre a validade do conceito de “sujeito revolucionário” e a sua relação com a forma de poder e dominação exercida pelo capital.

1 – Trabalho e dominação social

Nos trabalhos de Marx, a dinâmica da reprodução social capitalista baseia-se no diferencial quantitativo representado pelo mais-valor que, por sua vez, implica o trabalho como a forma de riqueza essencial para a estruturação dessas relações sociais. Postone complementa essa ideia com a seguinte afirmação

: “dizer que o objetivo da produção é o (mais-)valor é dizer que esse objetivo é a mediação social em si” (Postone – 2014:322).

Isto é, exatamente porque a produção, ao fim do ciclo de valorização do capital, é mais, que ela é orientada pelo valor.

Diferentemente de outras sociedades, nesta o objetivo dos processos individuais de trabalho é a diferença monetária que, ao final do ciclo de produção, pode ser reintroduzida no processo de valorização e, por esse motivo, torna-se a finalidade de todo o processo de produção. Essa dinâmica ignora, portanto, a qualidade desse trabalho. Do ponto de vista do capital, o valor de uso é um efeito irrelevante, uma derivação colateral do seu ciclo de valorização, que está no centro da sociedade capitalista.

Além disso, como observa Postone, afirmar que o tempo de trabalho excedente (que gera o mais-valor) é o objetivo da produção significa dizer que o tempo constitui um aspecto central da dinâmica do capital. A fim de especificar melhor o caráter temporal dessa dinâmica, é preciso compreender o processo de valorização no ambiente produtivo.De acordo com a exposição de Marx em O capital, a jornada de trabalho se divide entre o “tempo de trabalho necessário”, aquele que permite a produção de bens que servirão para a manutenção e a reprodução dos trabalhadores, e o “tempo de trabalho excedente”, que constitui o produto correspondente ao mais-valor da produção total(Marx, 2003: 207-232, 359-372)2. Na medida em que a jornada de trabalho não possa ser aumentada devido a eventuais processos históricos que limitem a sua expansão por parte dos capitalistas (ampliação que caracteriza o processo de produção do mais-valor absoluto), a obtenção crescente de mais-valor passa a ser realizada, essencialmente, pela diminuição do tempo de trabalho necessário e pela expansão correspondente do tempo de trabalho excedente, mantendo-se a mesma jornada de trabalho (que caracteriza o processo de produção de mais-valor relativo)3.

Esse estreitamento do tempo de trabalho necessário é obtido a partir da introdução de novas maquinarias e técnicas que geram aumentos de produtividade e, ao diminuírem o valor dos bens que compõem a cesta de consumo dos trabalhadores, reduzem o valor da produção que se destina à reprodução dessa classe. Nesse processo, os aumentos de produtividade não alteram o valor total produzido durante a jornada de trabalho, mas, ao diminuírem o valor unitário de cada bem, têm como resultado a redução do tempo de trabalho necessário e o aumento do tempo de trabalho excedente. O aumento de excedente caracterizado pelo mais-valor relativo é, segundo Marx, o processo que determina por excelência a dinâmica de incremento de mais-valor e, portanto, de expansão do capital em sua fase madura. Como observa Postone:

Com o desenvolvimento do mais-valor relativo, o movimento direcional caracterizador do capital como valor que se autovaloriza torna-se vinculado a mudanças contínuas na produtividade. Emerge uma dinâmica imanente do capitalismo, uma expansão incessante fundamentada numa relação determinada entre o crescimento da produtividade e o crescimento da forma de valor do excedente. (Postone, 2014:325)

Os aumentos de produtividade, ao diminuírem o tempo de trabalho socialmente necessário para a produção de cada bem individual, não se convertem, contudo, em um aumento do valor da produção total. O valor total da produção é sempre determinado pela quantidade de horas trabalhadas e, por isso, os incrementos na produtividade acarretam apenas a redeterminação de quanto se produz materialmente em cada hora, mas não do valor total produzido no período. Como afirma Marx em O Capital,

Qualquer que seja a mudança na produtividade, o mesmo trabalho, no mesmo espaço de tempo, fornece sempre a mesma magnitude de valor.Mas, no mesmo espaço de tempo, gera quantidades diferentes de valores-de-uso: quantidade maior quando a produtividade aumenta, emenor, quando ela decai. (Marx, 2003:68).

Uma hora de trabalho é sempre, em termos de valor, uma hora de trabalho, embora a dinâmica imanente do capital implique uma intensificação e densificação da quantidade material gerada em cada unidade temporal. Apesar de uma hora de trabalho ter sempre o valor de uma hora de trabalho, a “densidade” dessa hora de trabalho varia em termos de quantidade de produtos que é possível se obter no mesmo período. As horas de trabalho, na dinâmica de desenvolvimento do capital, se intensificam em termos da capacidade de produção sem que isso leve, contudo, a modificações no valor da hora trabalhada. Esse seria, segundo Postone, um movimento imanente do capital de transformação e reconstituição do tempo, de modo que as relações de produção se perpetuam e se consolidam, a despeito da diminuição progressiva do tempo de trabalho necessário.

Postone chama de treadmill effect essa relação determinada entre aumentos de produtividade (com o consequente incremento de capacidade de produzir valores de uso por unidade de tempo) e a redeterminação do valor sempre no mesmo nível (Postone, 2014:333). Trata-se do fato de que a riqueza material resultante dessa dinâmica, a capacidade crescente de produzir valores de uso, não se manifestaria na forma da riqueza social — o valor. De todo modo, apesar dos contínuos incrementos de produtividade não se manifestarem imediatamente neste modo específico de riqueza social, o valor, eles se configurariam como uma legalidade histórica que envolveria algumas consequências para o direcionamento dessa sociedade, as quais iremos detalhar a seguir.

Em primeiro lugar, na medida em que a produtividade da sociedade avança, os produtores individuais são obrigados a se adequarem ao nível de produtividade médio,sob o risco de terem os seus negócios arruinados, porque pouco lucrativos em relação aos concorrentes. Isto vale tanto para firmas como para produtores individuais. Assim, embora o aumento da produtividade signifique a diminuição do tempo de trabalho necessário para a reprodução dos trabalhadores, na sociedade capitalista ele gera uma norma de comportamento temporal, que obriga e orienta os indivíduos a produzirem cada vez mais em menos tempo. Diferentemente das sociedades tradicionais, em que métodos produtivos os mais diversos poderiam coexistir, nas relações sociais capitalistas a orientação dos indivíduos por maiores níveis de produtividade resulta nessa lógica histórica imanente do capital, não conduzida conscientemente por qualquer grupamento social particular, que os obriga a uma corrida temporal para produzirem mais em menos tempo. Uma dinâmica que, alheia à deliberação e controle dos sujeitos, retroage sobre eles como uma norma, uma necessidade de ação. A dinâmica histórica específica do capital configura, assim, uma forma de dominação específica dessa sociedade, não personificada em um grupamento social ou instituição específicos.

A partir do momento em que Postone distingue essa dominação abstrata da forma de dominação representada pela expropriação ou exploração, ele enseja a possibilidade histórica de uma forma de coerção histórica auto-infligida e auto-imposta pela classe trabalhadora, à medida que o trabalho continue sendo o elemento central de mediação social. Ou seja, mesmo em um cenário histórico em que os produtores individuais não tenham uma parte do seu produto apropriado por outra classe, a norma de se produzir sempre mais em menos tempo poderia estar presente, porque ela seria condição de sobrevivência dos produtores. O estranhamento social operado por esta lógica abstrata e impessoal, portanto, encontra-se para além da dominação pela classe burguesa.

Adicionalmente, Postone chama atenção para o fato de que o mais-valor não é imediatamente igual ao lucro, mas representa o excedente da sociedade (aquela parte da produção que excede a simples reprodução dos trabalhadores) que, na sociedade capitalista, “é distribuído na forma de lucros, juros, aluguéis e salários” (Postone, 2014:319).

Isso significa que o mais-valor pode existir mesmo em um cenário em que não há exploração de classes, em que a sociedade ainda mantenha outros tipos não mercadológicos de coordenação e administração da produção sistêmica de excedente. A dinâmica coercitiva implícita no treadmill effect, portanto, poderia não se extinguir com a simples abolição da classe burguesa.

A segunda consequência dos recorrentes aumentos de produtividade do capital é que o desenvolvimento das forças produtivas, impulsionadas pela dinâmica reflexivaentre o processo de valorização e a transformação do ambiente produtivo, dá origem ao “acúmulo de tempo histórico” (Postone, 2014:343). Por esse termo, Postone se refere à expansão do conhecimento técnico-científico e ao desenvolvimento de formas de organização e tecnologia que se acumulariam como efeito da dinâmica de valorização do capital, associada à necessidade de se implementarem processos produtivos que poupem trabalho. Ao mesmo tempo em que os incrementos de produtividade reconstituem a quantidade de trabalho social contido em cada unidade de tempo, ratificando e perpetuando o valor como vínculo social predominante, eles tornam a produção de riqueza material menos dependente do trabalho humano imediato. O movimento de busca, pelos produtores individuais, por maiores níveis de produtividade e pela apropriação de uma parte maior do tempo de trabalho (mais-valor) gera, sem que haja uma orientação consciente para tal, uma dinâmica da totalidade caracterizada por um processo geral de diminuição do tempo requerido para a reprodução da sociedade, o tempo de trabalho necessário global.

Considerada tendo em vista a dimensão do valor de uso do trabalho (isto é, em termos de criação de riqueza material), a produção é cada vez menos um processo de objetivação material das habilidades e dos conhecimentos de produtores individuais ou mesmo da classe imediatamente envolvida; em vez disso, torna-se cada vez mais uma objetivação do conhecimento coletivo acumulado das espécies, da humanidade. (Postone, 2014:343)

A possibilidade de superação da forma do trabalho moderno, provocado pelo acúmulo de tempo histórico, não pode, entretanto, ocorrer por uma negação linear, mecânica, da socialização pelo valor e pelo trabalho. Na medida em que novos padrões de produção reconfiguram o patamar de produtividade e geram o estreitamento do tempo de trabalho socialmente necessário, o mesmo deslocamento acontece com a estrutura do valor:

“este desenvolvimento reconstitui, em vez de substituir, a forma de necessidade associada a essa unidade temporal abstrata” (Postone, 2014:345).

Apesar da dinâmica imanente de aumentos de produtividade germinar a potencial negação do trabalho que constitui a substância do valor, ela não realiza efetivamente a negação do valor, mas apenas altera a quantidade material que irá se originar em cada período de trabalho e a densidade produtiva da hora de trabalho social. A constrição operada pelo valor impede qualquer negação automática da forma de socialização e da forma da riqueza social ca-pitalista, o valor. Pelo contrário, a reforça “como um presente eterno, uma necessidade aparentemente eterna” (Postone, 2014:345).

Essa dinâmica contraditória e imanente do capital, ao mesmo tempo em que dá curso ao desenvolvimento da capacidade produtiva e ao acúmulo de conhecimento que possibilitam a superação do trabalho (o “tempo histórico” de que fala Postone), o mantém como um aparato coercitivo e elemento central da dominação. Tal dinâmica cria as bases para uma transformação profunda da mediação social e da organização produtiva, mas não a realiza sem um movimento consciente de negação histórica.

2 – Contradição do capital e a crítica ao marxismo tradicional

A partir desta exposição resumida das ideias propostas por Postone, podemos indicar a diferença entre a sua interpretação de Marx e a proposta pelo marxismo tradicional . Com isso, é possível especificar mais precisamente a diferença essencial entre o que cada perspectiva entende como sendo a contradição fundamental desta formação social e o papel da classe trabalhadora no processo de orientação histórica consciente para uma alternativa pós-capitalista.

Segundo Postone, seria principalmente pela incompreensão da interrelação historicamente específica entre o valor e o trabalho no capitalismo que se acumulariam os equívocos do marxismo tradicional. Podemos indicar, em linhas gerais, que a perspectiva tradicional do marxismo, frequentemente indexada às interpretações de Engels e Lênin e seus desdobramentos teóricos desenvolvidos na URSS, enfocaria a superação do capitalismo priorizando os problemas distributivo e alocativo da “sociedade de mercado”, sobre os quais atuaria o planejamento estatal para dirimi-los.

Na medida em que essa corrente identifica as relações de produção com a estrutura de classes e as forças produtivas com o modo de produção industrial, a contradição essencial do capital possibilitaria a mudança das relações de classe mediante a reapropriação dos meios de produção. Sobre isso, sustenta Postone,

Em geral, essa contradição tem sido interpretada como uma oposição entre, de um lado, propriedade privada e mercado e, de outro, o modo de produção industrial, pela qual a propriedade privada e o mercado são tratados como as marcas distintivas do capitalismo, e a produção industrial é postulada como a base de uma futura sociedade socialista.

(Postone, 2014: 21-22)

O desenvolvimento das forças produtivas levaria a que elas se tornassem incongruentes com as relações sociais de produção estabelecidas, apontando para a superação histórica destas relações sociais e para a sua substituição por outras mais adequadas às novas forças produtivas. O socialismo, portanto, seria descrito como uma mudança política (as novas relações sociais) que restituísse aos trabalhadores “o que lhes pertence”, tanto no que se refere ao excedente produzido e expropriado quanto às forças produtivas “alienadas” e instrumentalizadas pela classe capitalista.

De acordo com essa descrição, pode-se dizer que o marxismo tradicional abordaria as forças produtivas de forma positiva, assumindo o modo de produção industrial como um elemento inabalável dos ciclos de mudanças históricas. As relações sociais, identificadas com o mercado e a estrutura de classes, assim, deveriam ser modificadas de modo a liberar a função emancipatória das forças produtivas, a dimensão do valor de uso. O “trabalho”, entendido pela perspectiva tradicional como uma forma de prática trans-histórica de mediação com a natureza, teria de ser liberado das relações sociais que obstariam o seu pleno desenvolvimento. A classe trabalhadora, por sua vez, deveria agir para a sua realização histórica, no lugar de abolir a si mesma como classe.A economia, como resultado da planificação econômica, não sofreria com as flutuações inerentes à dinâmica econômica do capitalismo, trazendo o mercado para o seu equilíbrio e suprimindo, afinal, a “lei do valor”, sem pôr fim ao próprio valor. Na obra de Paul Sweezy, que podemos tomar como representativa da vertente tradicional do marxismo, encontramos a seguinte passagem:

“Segue-se que, sendo a distribuição da atividade produtiva colocada sob controle consciente, a lei do valor perde a importância. Seu lugar é tomado pelo princípio do planejamento. Na economia de uma socie-dade socialista a teoria do planejamento deve ocupar a mesma posição da teoria do valor na economia de uma sociedade capitalista”. (Sweezy,1967:82, grifos nossos)

Para os autores dessa tradição, a planificação econômica acionaria a possibilida- de de um projeto de modernização mais eficiente do que aquele do capitalismo, porque ausente de flutuações indesejadas. A tomada do Estado, consequentemente, seria uma tarefa da classe trabalhadora com vistas tanto à reapropriação da riqueza criada por ela e expropriada pela burguesia, como à supressão do caos inerente ao padrão de crescimen-to da sociedade de mercado. A transformação social decorrente de uma revolução estaria baseada, então, no âmbito da propriedade e da política.

Ademais, segundo Postone, a crítica do marxismo tradicional dacsociedade capitalista seria uma

“crítica normativa dos agrupamentos sociais não produtivos do ponto de vista dos agrupamentos que são ‘verdadeiramente’ produtivos; [ela] torna a ‘capacidade de produzir’ o critério de valor social” (Postone, 2014:85).

Isto é, os trabalhadores devem tomar a propriedade do excedente porque representam a parcela da população que trabalha.

O marxismo tradicional, ainda de acordo com Postone, teria efetuado sua crítica ao capitalismo do ponto de vista do trabalho, positivando uma categoria que seria historicamente específica da moderna sociedade capitalista, na medida em que o trabalho exerce uma função única nessa formação social. Para ele,

“a categoria do trabalho, no marxismo tradicional, oferece um ponto de vista normativo para uma crítica social em nome da justiça, razão, universalidade e natureza” (Postone, 2014:85).

Encerrado nesse suporte interpretativo, o marxismo tradicional ofereceria um entendimento sobre a relação entre as estruturas sociais e a possível agência histórica que teria como consequência a limitação da prática transformativa às disputas pelo mecanismos de poder estatais e políticos. Na medida em que o principal objetivo da revolução seria a reversão da dominação imposta pela relação de classes, o instrumento indispensável de poder associado a essa transição seria o aparelho estatal.

Ao lançar luz sobre a especificidade histórica das categorias do valor e do trabalho, bem como sobre os atributos específicos assumidos pelo trabalho na sociedade moderna, Postone, alternativamente, busca delinear uma forma de dominação que compreenda as relações de classe como um momento da coerção do capitalismo, mas em uma posição subordinada a uma forma mais fundamental de heteronomia.

Para o autor, à medida que as relações sociais – cujo núcleo compreende a forma-mercadoria e os momentos sociais que se desdobram a partir dela – são constituídas e moldadas a partir das categorias centrais que conformam o capital, a forma de dominação identificada por Postone é abordada a partir de uma coerção praticada não exatamente por classes ou grupos sociais (ainda que esse seja um elemento importante da dominação social). Contrariamente , o autor identifica na forma específica das relações sociais da modernidade e nas formas alienadas de produção engendradas por elas uma dominação sem sujeito, que emerge a partir do caráter direcional, incontrolável e estranhado dessa sociedade.

Segundo Postone,

“diferentemente de interpretações mais tradicionais, o trabalho é apresentado aqui não apenas como objeto de dominação, mas também como fonte constituinte da dominação no capitalismo” (Postone, 2014:324).

Contrapondo-se à perspectiva tradicional do marxismo, então, Postone sugere que as relações sociais alienadas moldam não apenas as relações de produção (compreendidas como a socialização pelo valor e pelo trabalho abstrato objetivado), mas ainda o aparato produtivo como um todo. O conhecimento técnico e científico, a organização do trabalho e a tecnologia estariam, para esse autor, configurados de acordo e em consonância com a dominação abstrata efetivada pelo universo do trabalho. A superação do capitalismo envolveria, então, a emancipação das formas alienadas da produção, o “modo de produção”, ao invés de sua continuação linear mediante uma simples reapropriação

Fica claro, assim, que Postone não compreende a contradição fundamental da sociedade moderna como sendo aquela entre o trabalho e o capital, conforme é entendido pelo marxismo tradicional.

Contrariamente, na perspectiva do autor, a contradição é interna ao capital e se dá como o desdobramento da dialética contraditória entre as dimensões do valor de uso e do valor, refletindo-se tanto nas relações de produção (entendidas como a mediação pelo valor e o trabalho abstrato) como no modo de produção (moldado e configurado de acordo com a dominação abstrata do capital). Essa contradição se manifesta, em um plano mais concreto, na abertura de possibilidades históricas de superação do trabalho. O desenvolvimento das forças produtivas e a capacidade crescentes de produzir valores de uso por unidade temporal gera um hiato cada vez maior entre o que a sociedade atual nos oferece e o que ela poderia gerar potencialmente.

Embora o capitalismo reconstitua constantemente o trabalho como uma necessidade hipertrofiada dos vínculos sociais, ele enseja a possibilidade de sua superação, ao diminuir seguidamente o tempo de trabalho necessário à reprodução da sociedade.

Do ponto de vista das classes, o desenvolvimento do capital compreende uma tendência a expulsar o trabalhador do processo produtivo:

Como resultado, à medida que a produção industrial capitalista continua a se desenvolver, o trabalho proletário se torna cada vez mais supérfluo do ponto de vista da produção da riqueza material e, consequentemente , anacrônico; porém, continua necessário como fonte do valor. Conforme essa dualidade se manifesta, quanto mais o capital se desenvolve, mais ele esvazia e fragmenta o trabalho necessário para sua constituição. (Postone, 2014, 413)

Norbert Trenkle (2014) complementa a análise de Postone no trecho citado, conectando a crescente superfluidade do trabalho proletário à superfluidade da própria humanidade para o capital. Diz o autor:

“A perda do estatuto de classe [declassing; D.M.] em última instância significa que mais e mais pessoas ao redor do mundo estão caindo na escala das categorias funcionais, porque não há mais um lugar para elas no sistema produtor de mercadorias, que pode explorar cada vez menos força de trabalho. (…) [Os trabalhadores] são obrigados a perceber que podem não apenas serem substituídos a qualquer momento, mas também que estão crescentemente tornando-se supérfluos para o capital. (Trenkle, 2014, 206)

Na medida em que há uma dependência ontológica entre a classe trabalhadora e capital, a crise do último se conecta intrinsecamente à crise dos trabalhadores e das formas tradicionais de luta que se estabeleceram no período de ascensão e estabilização do capitalismo: sindicalismo, inclusão pela cidadania, estado de bem-estar social, etc. Assim, a perpetuação e reconstituição permanente do capital configura-se como uma ameaça à humanidade como um todo, incluindo-se tanto a parcela dos trabalhadores que participa diretamente da reprodução do capital e da formação do valor, quanto aquela que gradativamente torna-se refugo do aprofundamento desse modo de socialização.

Examinados os principais pontos envolvidos na dinâmica contraditória do capital, parece claro que ela não envolve, em Postone, uma tendência de realização inexorável de uma tendência histórica. Ela é, antes, uma possibilidade histórica aberta pelo desenvolvimento imanente do capital, possibilidade essa cuja realização somente pode ser acionada mediante um movimento minimamente consciente tanto do que significa tanto o capital, que vai além das lutas entre as classes, quanto a sua negação histórica.

É sobre a formação dessa consciência e dos grupos sociais que podem ou não desenvolve -la que falaremos no próximo tópico. Sobretudo no que se refere à visão corrente de que a classe trabalhadora se encontra em uma posição privilegiada para desencadear tal transformação.

3 – A análise categorial contra o sujeito revolucionário

Antes de abordarmos especificamente as classes sociais e sua função na exposição de Marx, é necessário fazermos algumas observações sobre o que está envolvido na análise categorial apresentada em O Capital.Ao contrário do entendimento tradicional, a interpretação de autores que integram a crítica do valor, no qual podemos incluir Postone, é de que as categorias de que Marx lança mão em sua obra não têm por objetivo dar conta da totalidade da realidade.

Como esclarece Michael Heinrich (2008:29), “essa espécie de ‘economia política marxista’ estava enraizada em uma visão de mundo (Weltanschauung) marxista que fornecia respostas para todas as questões históricas, sociais e filosóficas preexistentes”. Como consequência dessa compreensão, a descrição das relações de classes em O Capital era entendida como o retrato das relações sociais em sua integralidade: os fenômenos sociais deveriam ser concebidos como um resultado direto do modo como as classes sociais eram retratadas na obra, assim como a consciência social dos grupos e os seus interesses correspondentes deveriam ser deduzidos imediatamente daquela posição. Assim, o marxismo tradicional nutria a pretensão de onisciência na explicação dos fenômenos sociais e da formação da consciência dos indivíduos e, como resultado disso, tal entendimento fundamentaria a ideia de que a leitura de Marx em O Capital seria eco-nomicista, já que, na obra, indivíduos são determinados e descritos apenas da perspectiva de seus papéis dentro da economia.

Na verdade, a abordagem categorial de Marx, como Postone parece sugerir, restringe as categorias à descrição das relações sociais moldadas pelo capital, e mesmo de um modo limitado. Como nos esclarece Stoetzler (2004, p. 263), “a categoria de classe, argumenta Postone, não pode estar sujeita à ‘redução sociológica’, ou seja, não pode ser reduzida à maneira da sociologia convencional a classes concretas e “positivas” como estratos sociais”. Quer dizer, a análise categorial empreendida por Marx não pretende dar conta da integralidade das causalidades e processos históricos que se desdobram e formam os indivíduos, em sua realidade empírica, mas de como a dinâmica do capital exerce um impulso por moldar e, tendencialmente, transformar os indivíduos em subjetividades adequadas ao capital.

Nessa interpretação, o trabalhador, na exposição de Marx, seria o arquétipo (alienado) de uma classe social, porque expressa uma forma de relação constituída e exigida para o perfeito funcionamento do capital.

A crítica marxiana, portanto, não implica uma teoria do conhecimento, no sentido próprio, mas sim uma teoria da constituição de formas sociais historicamente específicas que são simultaneamente formas de objetividade e subjetividade sociais. No âmbito dessa teoria, as categorias de apreender o mundo e as normas de ação podem ser vistas como ligadas na medida em que ambas, em última análise, são baseadas na estrutura das relações sociais. Essa interpretação sugere que a epistemologia se torna, na teoria de Marx, radical como epistemologia social. (Postone, 2014:253)

Mas precisamente porque as categorias representam apenas uma exposição formal, a descrição dessa classe social não é capaz de dar conta da integralidade concreta dos indivíduos que, dentre outras coisas, trabalham.4

Por tal motivo, afirmar que a classe trabalhadora, na exposição de Marx, representa uma faceta das formas categoriais alienadas das relações sociais modernas indica,ao mesmo tempo, que os trabalhadores em sua realidade são mais complexos e multidimensionais do que a análise categorial sugere. Com efeito, somente mediante a compreensão do caráter formal (não exaustivo) de sua exposição categorial é possível despir a classe trabalhadora de sua aura romântica, creditando a ela, na prática, a possibilidade de formas de consciência tanto reacionárias quanto revolucionárias. Com efeito, a análise categorial e a sua reconstituição a partir das formas alienadas do valor pode ser capaz de explicar essas manifestações conservadoras com base no caráter heteronômico dessas formas. Como propõe Trenkle:

“Se a totalidade fragmentada é imediatamente identificada com a classe trabalhadora e apela para ela positivamente, então os critérios necessários para lidar adequadamente com os potenciais destrutivos que são crescentemente liberados com a desintegração da subjetividade burguesa , em última análise, se perdem. Isso vale para a violência racista e sexista, bem como para a ilusão antissemita e os fundamentalismos étnicos e religiosos que estão ganhando força. Da perspectiva de classes , eles não podem ser decifrados como formas inerentes de expressão da subjetividade na sociedade mercantil que apresentam momentos independentes da dinâmica da crise do capitalismo […]. (Trenkle,2014: 214)

O caráter quase-objetivo com que o marxismo tradicional identifica as classes é, segundo Postone, na verdade, uma marca distintiva das formas alienadas do capital. A descrição categorial das classes é empregada sobretudo no sentido de que a perspectiva sociológica de classes configura-se como uma força causal que impõe aos indivíduos um modo de agir e pensar que os constrange a se disporem como um grupo social homogêneo . Contrário a essa ideia, Postone sugere que a categoria de trabalhador como classe é, como as outras categorias que estruturam o capital, a indicação e manifestação das formas alienadas de mediação social, e não a representação do âmbito em que os conflitos emancipatórios se dão.

A abordagem que esboço aqui aponta para um entendimento da ação social e política que não procede nem de uma noção de sujeito coletivo, nem da noção de indivíduos social, histórica e culturalmente descontextualizados que agem com base em interesses. Ela difere das interpretações centradas nas classes que buscam correlacionar diretamente o contexto sociológico de classe e ação política. Essas interpretacões atribuem a um grupo social o caráter quase objetivo que Marx vê como característica das formas alienadas de mediação social no capitalismo. (Postone, 2014: 375)

Como uma força causal que demanda e exige dos indivíduos o cumprimento de um determinado conjunto ideológico comportamental, a categoria de classes busca capturar exatamente tal tendência de totalização do capital na esfera sociológica e que, por representar apenas uma tendência, não é capaz de estabelecer uma correlação direta e unívoca entre o contexto de classes e a ação política, tampouco entre o contexto de classes e a formação das individualidades. No tocante a este ponto, Postone apenas explicita teoricamente o que já se verificara historicamente à exaustão no século passado, a saber, que não há qualquer direção uniforme inexorável na constituição da consciência de qualquer grupamento social, nem mesmo para aqueles que pertençam a uma determinada classe.

Inversamente, a interpretação de Postone indica que a formação da consciência é multidimensional e não linear. Com efeito, Postone propõe a ideia de que os interesses da classe trabalhadora enquanto tal não são historicamente descontextualizados, mas constituídos e estruturados na gênese e dinâmica do capital, e, por isso, não podem ser teorizados como um elemento externo ao contexto histórico em que se situam.

“A classe social, estruturada pelas formas sociais e pelo momento propulsor da totalidade social capitalista, é também uma categoria estruturadora de sentido e consciência social. Isso não quer dizer que todos os indivíduos que podem ser “situados” de maneira semelhante tenham as mesmas crenças, nem que a ação social e política siga “auto-maticamente” as linhas de classe. Isso de fato significa que a especificidade social e histórica das formas de subjetividade e ação social podem ser elucidadas diante da noção de classe. A natureza das exigências sociais e políticas, ou das formas determinadas das lutas associadas a tais exigências, por exemplo, pode ser compreendida e explicada social e historicamente em relação à classe, contanto que a classe seja compreendida com referência às formas categoriais. (Postone,2014:373-374)

Ou seja, o interesse dos trabalhadores e da burguesia constituem e são constituídos ao longo da formação do capitalismo e, nesse sentido, são internos a ele. A representação da história proposta por Postone, portanto, não é a de que os trabalhadores trazem consigo interesses supra-históricos que são sucessivamente asfixiados pelas classes dominantes ao longo de diferentes formas de socialização. Como momento de uma forma de dominação característica do capitalismo, os interesses da classe trabalhadora são constituídos no resultado da dinâmica autônoma operada pelo capital, sendo, então, elementos que o constituem. Desse modo, a categoria de interesse exerce uma função no capital radicalmente diferente do que em outros contextos históricos, uma vez que, nesta sociedade, o que se apresenta como interesse de classes é, em um nível analítico mais profundo, a imposição da lógica do capital; efetivamente, o interesse de classes é a manifestação da dinâmica de coerção dessas mesmas classes pela dominação impessoal e abstrata do capital, sobretudo dos trabalhadores.

Já o conceito de sujeito revolucionário, com o qual o marxismo tradicional identifica a classe trabalhadora, parece depender integralmente de uma descrição determinista da história moderna. Tomando como exemplo paradigmático a obra de Sweezy(1967), por um lado, segundo sua perspectiva, haveria uma contradição objetiva crescente com o desenvolvimento do capital, cuja tendência seria a de seu desmantelamento.

Mas tal tendência necessitaria, para que se tornasse efetiva a superação do capital, de um movimento de gradativa conscientização dos trabalhadores em termos da necessidade de sua autolibertação. Ao longo da dinâmica do capitalismo, como resultado do consumo do valor de uso de sua força de trabalho no processo produtivo, a classe trabalhadora tenderia a se refletir na sua alienação, a se enxergar em sua miséria, e a projetar no capital a origem de seu infortúnio. Como resultado, o sujeito revolucionário se tornaria aquele grupamento social que, por uma característica latente, mas crescentemente manifesta , se conscientizaria da premência da derrota do capitalismo para a realização dosseus interesses.5 A confluência dessas duas tendências, objetiva e subjetiva, encaminharia a humanidade para a sua emancipação. Como constata Sweezy,

A primeira força opositora surge, como já vimos, do desenvolvimento interno dos países imperialistas. Os laços de classe se tornam mais fortes e os conflitos mais intensos. Finalmente, a classe trabalhadora é forçada a adotar uma posição anticapitalista e estabelecer como seu objetivo a consecução do socialismo. (Sweezy, 1967:355-356)

Argumentar que essa descrição não envolve um entendimento mecanicista porque o resultado da equação depende da “subjetividade dos trabalhadores” seria uma falácia, já que está implícita na evolução desse grupo social a tendência indefectível de seu auto-esclarecimento. Assim, muito embora, nessa perspectiva, o capitalismo não possa ruir por conta própria, a realização de um movimento de transformação histórica anticapitalista está alicerçada desde os seus pressupostos. A categoria de sujeito revolucionário constitui uma relação de dependência com a tese de auto-esclarecimento que, por sua vez, na interpretação do marxismo tradicional, inequivocamente aponta para a formação de um movimento anticapitalista. Desse modo, o ônus de justificar a necessidade teórica do conceito de sujeito revolucionário fora de uma descrição mecanicista emdeterminista é dos marxistas tradicionais, pois se essa categoria não se encaixa apenas no interior de uma descrição da história desse tipo, afinal, a que outro papel se presta? Se se propõe haver um sujeito revolucionário e ele não carrega consigo uma tendência,de auto-esclarecimento, qual seria a função teórica desta categoria? A função de se poder identificar uma massa potencialmente revolucionária cuja missão histórica será revelada por um grupo de iluminados, uma vanguarda?

Na medida em que o marxismo tradicional entende que a luta de classes é a forma ou o âmbito em que se dá a superação do capital, um dos resultados práticos desse equívoco é de que o parâmetro de avaliação de toda e qualquer luta efetiva precisa se submeter obrigatoriamente ao critério de se elas alcançam e atingem ou não os trabalhadores. Desse modo, as autocríticas sobre os sucessos ou fracassos dos movimentos contestatorios, sejam eles conjunturais ou referentes a processos históricos mais amplos, frequentemente se restringem à adequação subjetiva dos grupos envolvidos, se são constituídos por trabalhadores, por excluídos, pelo lumpemproletariado ou qualquer parcela que se deseje atribuir o papel emancipatório. Como consequência, essas autoavaliações , no mais das vezes, negligenciam as análises sobre a adequação entre os modos como as lutas práticas devam se dar e o objeto contra quem se confrontam, o capital. Assim, passam ao largo de uma efetiva reformulação crítico-teórica da objetividade do capital, em benefício de uma crítica superficial sobre atores políticos envolvidos e, inevitavelmente, valendo-se de recortes sociais abstrativos e arbitrários. A base teórica dessas críticas e o seu entendimento sobre a natureza do capital já se supõem sempre plenamente satisfeitos, conhecidos. Isso vale tanto para a formulação de juízos sobre movimentos menores, como as jornadas de junho de 2013 (“o movimento fracassou porque era constituído pela classe média”), como para processos históricos mais vastos, como a debacle da URSS (“a revolução foi desvirtuada pelos burocratas”).

No caso específico da experiência soviética, ao manter o registro da crítica apenas no nível da coerção entre grupos sociais ou instituições, a abordagem tradicional,teria adiado ou mesmo impedido uma autocrítica sobre os elementos que deveriam estar,efetivamente envolvidos naquela tentativa de superação do capitalismo, e eventualmente não estavam. Como resultado da ausência de uma reformulação e atualização do que se entendia por capital, seguiam-se dessas análises avaliações que não logravam ultrapassar o campo da tática e do voluntarismo. Lukács, em uma entrevista concedida a Lean-Konder em 1969, já havia identificado essa tendência:

Na raiz da nossa crise, está uma modalidade de oportunismo que é, talvez, a mais grave das deformações que nos deixou Stalin: o taticismo. Ao invés de utilizarmos os princípios teóricos gerais do marxismo para criticar e corrigir a ação prática, subordinamo-los mecanicamente, a cada passo, às necessidades imediatas, as exigências momentâneas da nossa atividade política. Com isso, renunciamos a uma das conquistas fundamentais da perspectiva marxista: a unidade de teoria e prática. A teoria fica reduzida à condição de escrava da prática e a prática perde sua profundidade revolucionária. Os efeitos de semelhante situação são catastróficos. Hoje em dia, infelizmente, todos os,PCs são mais ou menos taticistas. (Konder, 2017)

E não deixaram de ser desde então. Por óbvio que parecesse o objetivo da revolução , a supressão da dominação de classes, as teorias da transição desenvolvidas aolongo do século XX girariam majoritariamente em torno dos aspectos subjetivos envolvidos no processo: formas de organização, táticas, estratégias etc.

Norbert Trenkle também ilustra a superficialidade com que o problema é tratado em um debate com Frank Deppe que, ao procurar uma explicação para a inexistência de um movimento revolucionário de vulto que congregue os diferentes estratos da classe trabalhadora e dos precarizados, recai no mesmo problema já identificado por Lukács:

O “bloco” já existe “em si”, mas ainda não “se articulou politicamente” como tal. […] É somente porque [Deep] carrega essa correspondente atribuição [da consciência da classe trabalhadora] até sua conclusão e pressupõe algo como uma coerência objetiva fundamental (deminteresses) de todos os estratos que ele reduz o problema à questão superficial de um “programa alternativo” que ele imagina poder amalgamar as diferentes “facções” desse bloco. (Trenkle, 2014: 212-213)

Portanto, se os defensores da ideia de que há uma dinâmica interna à classe trabalhadora para o seu autoesclarecimento concluem que ela não se efetivou historicamente de fato, o que se propõe comumente é uma reformulação tática, de um “programa,alternativo”.

Perpetuando essa autocrítica superficial, os movimentos anticapitalistas negligenciam a possibilidade real, para além da visão voluntarista, de que o fracasso de,todas as revoluções do período poderia residir em uma resiliência ontológica do capital,que, como já esclarecemos com base na interpretação de Postone, perduraria e resistiria à simples destituição da classe capitalista do poder.

4 – Em defesa de Postone, por uma nova compreensão do capital

As reações desencadeadas pela releitura de Postone, embora pretendam se limitar a argumentos racionais a favor da centralidade do trabalhador no processo emancipatório, se sustentam frequentemente sobre aspectos simbólicos e mitológicos encrustados no marxismo tradicional, que inscrevem a classe trabalhadora dentro de um projeto messiânico-salvacionista. E seu conteúdo assume contornos autoritários, na medida em que envolve a imposição e generalização de um tipo específico de subjetividade pautado nos valores da racionalidade tecno-instrumental, coincidentemente muito cara à moderna sociedade do trabalho.6 Nesse sentido, as críticas à leitura de Postone dizem muito demenos sobre a qualidade argumentativa de seu trabalho do que sobre o apego de alguns de seus antagonistas por um certo ideal axiológico ligado substancialmente ao projeto racionalista do iluminismo e o ethos correspondente do “homem moderno”. Não deve ser casual que as críticas que se lançam contra Postone visam, por meios lógico-explanatórios os mais diversos, atingir notadamente o que se supõe ser uma tese central de sua releitura de Marx, a de que os trabalhadores, per se, enquanto trabalhadores, não seriam indubitavelmente os “portadores de um futuro socialista”. Toda a vasta fundamentação teórica de que o autor lança mão para chegar a essa conclusão é, em geral, ou ignorada, ou negligenciada, ou analisada apenas como meio para se atingir, no fim das contas, este ponto específico.

Ademais, o que ocorre frequentemente é um equívoco em associar a crítica de Postone ao papel fulcral da classe trabalhadora na emancipação do capital a uma suposta falta de solidariedade com as lutas por melhorias dentro dos termos desta sociedade.

Ao afirmar que os trabalhadores, pela condição de trabalhadores, não carregam o germe da sociedade emancipada, o autor não exclui a possibilidade de que, entre os trabalhadores , se forme uma consciência e uma prática revolucionária. Tampouco quer dizer,com isso, que a práxis revolucionária floresça entre grupos excluídos do trabalho formal, produtivo. Ele também não pretende desconsiderar os ganhos imediatos e justos que as disputas com a classe capitalista podem trazer. Simplesmente, ao afirmar que “a luta de classes, vista da perspectiva do trabalhador, significa constituir, manter e melhorar a sua posição e situação como membro de uma classe trabalhadora”, Postone denuncia os limites dos contornos que essas lutas tomam quando não estão aliadas a lutas efetivamente emancipatórias. O caráter objetivo da coerção imposta pelo capital, nesse sentido, vai muito além da luta contra a burguesia ou pela melhoria das condições distributivas, ainda que estes sejam momentos necessários. Qualquer sentimento de reconforto moral pela auto-incumbência da defesa dos trabalhadores suspende a existência objetiva da dominação impessoal do capital, e as lutas que se dão dentro de disputas distributivas não são capazes, como sustenta Postone, por si só, de mirar um horizonte de superação do capital. Por tal motivo, a solidariedade com os excluídos não pode ser critério suficiente para a avaliação sobre a eficiência das lutas contestatórias. Se assim fosse, a comiseração filantrópica da humanidade pelos pobres já teria feito bem por oferecer uma revolução social de vulto. Por isso, a leitura feita por Postone pode iluminar o frequente mal-entendido que equipara as consternações morais que baseiam e motivam estas lutas com o caráter revolucionário que os embates efetivamente emancipatórios devam assumir.

A despeito da ênfase frequente que se dá à sua crítica ao trabalhador como sujeito revolucionário, a restauração da crítica de Marx oferecida por Postone parece se basear muito menos em com quem do que com o que a teoria de Marx visa se confrontar.

Isto é, a exposição de Postone prioriza, antes, a descrição dos mecanismos e estruturas objetivas do capital (em detrimento da luta de classes, por exemplo) porque o conhecimento objetivo de sua natureza é entendido como mais relevante para a formação de qualquer movimento substantivo do que a análise sobre quem efetivamente irá levá-lo a cabo. Stoetzler parece concordar com essas leitura, ao responder a um dos críticos de Postone:

Arthur [o crítico de Postone] argumenta que ‘Postone não é capaz de situar socialmente a sua crítica; ele pode apenas recuar para ‘possibilidades’ que podem ou não ser capturadas ‘subjetivamente’.’ Seria mais adequado dizer que Postone não pode situar a sua crítica sociologicamente: ele a situa socialmente, a saber, nas estruturas específicas da sociedade capitalista. É verdade, entretanto, que ele não nomeia esse sujeito revolucionário a quem se pode confiar que leve a cabo essa crítica na praxis. Entretanto, essa fraqueza pode provar-se, na realidade,uma força, porque ela deixa a espontaneidade do processo histórico mostrar quem irá carregar essa tocha.” (Stoetzler, 2004, 273-274)

Na medida em que não se identifica, em sua obra, qualquer tendência de esclarecimento e conscientização de algum grupamento social específico, o enfoque da releitura de Marx operada por Postone precisa, por esse motivo, recair na identificação de elementos que sejam capazes de fecundar a formação de discursos que convençam os sujeitos da necessidade de se acionar e realizar possibilidades que brotam a partir das contradições do capital. E de fato, parece ser mais persuasivo uma teoria que aponta para a possibilidade de uma sociedade alternativa que dê vasão ao desenvolvimento multilateral da individualidade (com o fim do trabalho na forma e na extensão em que se constitui sob o capital) do que aquele cultivado na sociedade soviética, que prescrevia o sacrifício de nossa liberdade em prol de sermos autômatos do sistema autojustificada de produção de valor.

Ademais, a leitura de Postone carrega uma teoria da ação implícita que busca conter o avanço das visões com enfoque no pretenso caráter libertador das ações contingentes, a saber, as correntes pós-estruturalistas e pós-modernas. Como Postone buscou esclarecer em inúmeras palestras proferidas nos últimos anos (Postone, 2016), a sua tentativa de oferecer uma releitura de Marx tem como intuito não exatamente defenestra o papel dos trabalhadores na modificação das estruturas profundas da sociedade contemporânea, mas garantir que as ações que se pautam por esse horizonte tenham consciência e conhecimento sobre o tipo de estrutura que esses movimentos contestatórios confrontam, sob o risco de promoverem lutas que recaem no vazio do mote “classe contra classe” e, por fim, de diluírem-se em lutas por inclusão. A teoria da ação implícita na leitura da crítica da economia política feita por ele, na verdade, é capaz de promover uma potencialização dos movimentos que contestam o capital, muito embora a crítica à centralidade do papel do trabalhador nessa dinâmica seja encarada frequentemente como a indicação do contrário.

Tal potencialização se dá precisamente porque a ênfase da obra de Postone recaina natureza do capital, que aponta para formas de contestação diametralmente diferentes das que se propunham até então. Sua leitura carrega esse contrapoder potencial na medida em que especifica, com uma acuidade ímpar desde Marx, a natureza tanto da dominação exercida pelo capital quanto do âmbito em que deve se dar a luta contra ele.Faz-se referência aqui ao enfoque de Postone no caráter temporal da dominação do capital . Ao especificar a função exercida pela norma temporal imposta pela dinâmica de desenvolvimento do capital, ele oferece uma teoria unitária do poder no capitalismo.

Unitária não porque ele ignora outros domínios em que relações de poder são efetivadas (no conflito direto de classes, por exemplo) ou em que outras formas de coerção podem se exercer (nas lutas identitárias, por exemplo, cuja natureza é bastante diversa do conflito que se dá no capital, ainda que com interseções7). Ela é uma teoria geral do poder porque identifica o meio pelo qual se efetiva a dominação abstrata e, concomitantemente, o meio que aponta para a forma que deva assumir as lutas emancipatórias.

O potencial crítico da releitura de Postone (que já estava presente em Marx, mas que se evidencia na sua interpretação) está no fato de que a descrição do capital e da forma crucial de poder em que se exerce sua dominação implica uma forma específica de luta. Nesse sentido, Postone faz transparecer uma nova relação entre ser e dever ser inaugurada pela sociedade moderna, tanto no que tange à norma temporal coercitiva operada pelo capital sobre os indivíduos e grupos quanto à forma que deve assumir a luta contra ele, do mesmo modo eminentemente temporal. Ao contrário da interpretação tradicional, todavia, o dever ser na leitura de Postone é a indicação da forma que deve assumir a luta emancipatória para que se explicite na história uma possibilidade real contida na natureza do desenvolvimento do capital. Assim, este dever ser não se refere a uma fatalidade histórica referente à necessidade de realização da natureza contida na essência do capital, mas aos contornos necessários que deve assumir a luta emancipatória contra o capital, dada a natureza de sua dinâmica. A releitura de Postone evidencia com clareza que uma modificação qualitativa e quantitativa do tempo de trabalho é essencial para a superação da dominação exercida pelo capital. E embora essa seja uma determinação inicial e ainda muito abstrata sobre os movimentos de contestação, ela precisa ser necessariamente a base da sua constituição.

Considerações finais

A reinterpretação de Postone coloca em xeque as teorias do poder (e da ação) subjacentes às leituras tradicionais que lançavam luz ou bem sobre seu aspecto político ( cujo exemplo paradigmático é o socialismo soviético) ou bem sobre seu aspecto econômico (que, em geral, fundamentam sua teoria do poder a partir do dinheiro). Tais leituras são incapazes de operar uma crítica geral ao mesmo tempo do mercado e do Estado, uma vez que oferecem formas de luta que prescrevem ora a reordenação do âmbito produtivo em prol das decisões autônomas dos produtores, ora o planejamento econômico, ambas passando ao largo do caráter essencialmente temporal, tanto em relação à quantidade quanto à qualidade do trabalho, que essas lutas devem essencialmente atingir . Postone, ao evidenciar o potencial emancipador do acúmulo de conhecimento técnico-científico promovido pelo desenvolvimento do capital, torna transparente uma forma de poder que age no capitalismo e domina os indivíduos, mas que pode, além disso, apontar para a sua superação. E o faz sem prejuízo da crítica às categorias do capital esuas estruturas: o modo de produção capitalista, o Estado moderno, a concorrência, as classes, o mercado, o dinheiro e, sobretudo, o valor. Ou seja, o que Postone propõe, no lugar de uma luta política para rearranjar a distribuição econômica, é uma luta antipolítica e antieconômica, porque visa eliminar aquilo em que se funda a economia, o valor, e os expedientes políticos de sua administração, majoritariamente concentrados na estrutura do Estado.

Referências Bibliográficas

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KONDER, L. A Autocrítica do marxismo. Entrevista de Georg Lukács a Leandro Kon-

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KURZ, R. O Colapso da Modernização. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 1991.

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MARX, K. O Capital – Vol I. Trad. Reginaldo Sant’Anna – 21ª Edição, Rio de Janeiro:

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88.

STOETZLER, M. Postone’s Marx: A Theorist of Modern Society, Its Social Movements

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TRENKLE, N. Struggle without Classes: Why There Is No Resurgence of the Proletari-

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Value; Chicago: MCM Publishing, 2014.

Notas

1 Doutorando em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ

2 Postone chama atenção para o fato de que o mais-valor não é imediatamente igual ao lucro, mas representa o excedente da sociedade (aquela parte da produção que excede a simples reprodução dos trabalhadores) “que é distribuído na forma de lucros, juros, aluguéis e salários” (Postone, 2014:319). Isso significa que o mais-valor pode existir mesmo em um cenário em que não há exploração de classes, em que a sociedade ainda mantenha outros tipos não mercadológicos de coordenação e administração da produção sistêmica de excedente.

3 Mesmo que não houvesse uma limitação legal para o aumento da jornada, em algum momento seu incremento não seria mais possível, a partir do ponto em que inviabilizasse a reprodução física dos trabalhadores, por extenuação. Por isso, o mais-valor absoluto não pode permanecer como um processo historicamente duradouro.

4 É por sua natureza formal que a análise categorial não flerta com o critério de verdade como correspondência.. Embora esteja implícita ao longo da obra de Postone, seria possível moldar a crítica ao marxismo tradicional, principalmente no que concerne ao conceito de classes, simplesmente da perspectiva epistemológica , levando-se em conta a sua íntima relação com os critérios positivistas com que tal perspectiva analisa a obra de Marx.

5 Cf. Sweezy (1967:355-356): “A primeira força opositora surge, como já vimos, do desenvolvimento interno dos países imperialistas. Os laços de classe se tornam mais fortes e os conflitos mais intensos.Finalmente, a classe trabalhadora é forçada a adotar uma posição anticapitalista e estabelecer como seu objetivo a consecução do socialismo.”

6 Kurz ilustra a hipostasia da lógica instrumental do trabalho na URSS com o caso do russo Alexej Stachanov:

“Se [ele], aquele homem a respeito do qual se afirma ter extraído, na noite de 31 de agosto de 1935, na região do rio Donez, 102 toneladas de carvão num turno de cinco horas e 45 minutos, tornou-se o modelo soviético e um mito do trabalho, ele personifica com isso precisamente o princípio capitalista de um dispêndio abstrato de força de trabalho, em cuja esfera de influência existe o trabalho como atividade que, de forma tautológica, traz sua finalidade em si” (Kurz, 1991: 23-24).

  7 Embora não se possa desenvolver o tema aqui, é possível indicar que a análise categorial de Marx, como entendida por Postone, não se torna incompatível com o estudo das questões identitárias em sua interseção com a categoria das classes. Contudo, diferentemente da abordagem tradicional, ela precisa ser capaz de identificar os mecanismos de controle individuais com referência aos imperativos específicos dessa forma de reprodução social. O marxismo tradicional, ao levar a cabo análises que conferiam à figura do trabalhador um papel proeminente nas transformações históricas, a colocavam em contradição com outras determinações da constituição individual. Um estudo adequado sobre a questão deve dar conta de detectar as constrições históricas (principalmente em momentos críticos) que demandam dessa forma de reprodução social estruturas políticas e micropolíticas de cerceamento de certos comportamentos e características identitárias.

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Libertário - professor de história, filosofia e sociologia .
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