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A relação entre o Sol e a Flor Noturna-Paulo Baia
Há na relação entre o Sol e a flor noturna uma metáfora persistente sobre os desencontros da experiência humana, especialmente no que tange ao amor e à convivência social. Trata-se de um enlace que nunca se cumpre na presença, mas que se mantém em potência, sustentado pela memória do que poderia ter sido. O Sol, símbolo da clareza, da ordem e do tempo regulado, representa as estruturas que organizam a vida social. Já a flor noturna, que desabrocha ao luar e se esconde do olhar diurno, encarna aquilo que escapa às normativas — o desejo, o afeto marginal, o que se expressa nos interstícios da sociedade. Entre esses dois, não há encontro, mas uma coreografia de faltas que nos obriga a refletir sobre as formas de amar e viver no mundo contemporâneo.
Na linguagem das ciências sociais, podemos dizer que esse desencontro revela a tensão entre visibilidade e invisibilidade, entre o que é aceito publicamente e o que só pode existir nas brechas. O Sol é o olhar vigilante das instituições, dos papéis sociais e das normas de conduta que moldam as identidades. A flor noturna, por sua vez, pertence à zona do não-dito, dos afetos silenciados, das subjetividades desviantes. Quando o amor nasce entre esses dois polos, ele não encontra terreno para se realizar no plano das estruturas, mas apenas no plano simbólico, poético, onde pode existir como resistência à rigidez dos papeis sociais fixados.
Literariamente, essa tensão nos conduz ao campo do desejo como força disruptiva. O amor entre o Sol e a flor não é o amor pleno e realizado, mas aquele que alimenta narrativas, que move os romances, os poemas e as canções. É o amor trágico, marcado pela impossibilidade, que se torna arte precisamente porque não se concretiza. A flor que espera o Sol, mesmo sabendo que ele não virá, expressa a espera histórica das minorias por reconhecimento, por escuta, por espaço de existência. O Sol que aquece a terra sem jamais tocar a flor noturna é o sujeito que ama sem compreender, que deseja sem alcançar — e que, talvez por isso, projeta seu amor no futuro, em forma de utopia.
Esse amor impossível entre dois seres que se desejam, mas que vivem em temporalidades diferentes, pode ser lido também como a metáfora das relações sociais marcadas por desigualdade. No fundo, o Sol e a flor pertencem a mundos que se cruzam apenas de maneira simbólica. O Sol paira no alto, no domínio do que se vê, do que se regula e do que se espera; a flor, enraizada na terra e cúmplice da noite, representa aquilo que insiste em viver fora do olhar hegemônico. E ainda assim, existe entre eles um laço: um desejo de afeto, um impulso de aproximação que desafia o curso natural das coisas. É esse impulso que move as transformações sociais, que faz com que o amor — como metáfora e como prática — seja uma força política.
Se olharmos com atenção, o que está em jogo é a forma como se estruturam as possibilidades de encontro na sociedade. Quem pode amar quem? Em que espaços e em quais horários do dia se permite a expressão do afeto? A flor noturna e o Sol apontam para os limites dessas possibilidades, e também para o poder subversivo do desejo que se recusa a aceitar tais fronteiras. A experiência amorosa, nesse contexto, não é apenas um fato íntimo ou psicológico — é um fenômeno social, moldado pelas desigualdades, pelas normas e pelos silêncios que atravessam os corpos.
Ao fim, o que resta não é a resolução do encontro, mas a manutenção da espera. A esperança que a flor deposita no próximo amanhecer, e a memória que o Sol carrega da flor que nunca viu, são expressões de uma poética social que insiste em sobreviver. Amar, então, é também um modo de imaginar outros mundos possíveis. É recusar o real tal como ele está posto e desejar aquilo que ainda não se realizou. E nesse gesto, a flor e o Sol se tornam mais do que metáforas — tornam-se signos de uma humanidade em busca de reconexão, mesmo quando tudo parece conspirar para a separação.
Paulo Baía em 30 de abril de 2025 em Cabo Frio/RJ.

A propósito da sociologia-poética do Paulo Baia– Arlindenor Pedro
Este texto de sociologia-poética do nosso Baia me traz à lembrança uma história que ouvi quando me mudei para um sítio, aqui na Serra da Mantiqueira. Trata-se da origem do termo: Serra da Mantiqueira, que sabemos bem vem do Tupi Guarani. E quer dizer literalmente: “serra que chora”.
É o seguinte: o Sol (o mesmo que é citado pelo nosso poeta-sociólogo) ficou curioso pelo fato de que na sua jornada diária, com seus raios, através da terra, era sempre acompanhado pelo amoroso olhar de uma linda indígena, que se postava no alto da serra para ver o espetáculo da sua passagem, desde o nascer até o seu ocaso. Ocorre que esta jovem ficara apaixonada por ele, e era visível o seu encantamento. Depois de vários dias esnobando o amor desta jovem, o astro-rei, vaidoso, resolveu parar para conversar com ela e ficou ali, imóvel no céu, conversando e trocando juras de amor por ela. Ora, mal sabia ele a tragédia que ocorreu com este seu ato impensado! Ocorre que, com a sua parada, toda a realidade foi alterada. Os animais ficaram sem referências, o calor e o frio ficaram mais fortes e a tragédia maior: a noite não mais aconteceu. Em seguida, a Lua, a rainha da noite, indignada, pois não mais podia se mostrar no céu estrelado, resolveu ir até Tupã, exigindo dele uma solução para aquela situação. O sábio Tupã resolveu então o problema da seguinte forma: em um momento de descuido do Sol apaixonado, retirou a jovem indígena do topo da montanha e a enclausurou em uma caverna nas montanhas. Nos diz o ditado: “longe dos olhos, longe do coração”. O Sol, como não mais via a sua amada, logo se esqueceu dela. E continuou a sua rotina diária, o que fez as coisas voltarem ao normal. A pobrezinha, então prisioneira, sem poder ver o seu amor, desatou a chorar, chorar, em abundância, formando então os rios e cascatas da exuberante Serra da Mantiqueira.
Entrando já no campo do sociologuês, trago aqui o espanto que tive quando li uma matéria na Revista Veja, nos idos dos anos oitenta, sobre uma teoria de um cientista inglês chamada Teoria de Gaia.
Este cientista, James Loveloke, dizia em sua teoria que a Terra funcionaria como um organismo vivo, destacando ali a importância da biosfera, atmosfera, hidrosfera e litosfera na regulação do clima e das condições ambientais. E mais: fazia a previsão de uma iminente catástrofe que nos atingiria a todos pelo grau de devastação a que submetemos o planeta. Visivelmente preocupado, comentei com um amigo sobre estas previsões pessimistas. Mas, no ato, fui por ele acalmado com uma frase lapidar, que jamais esquecerei: “o homem, senhor da natureza, conseguirá arranjar uma solução para isto”.
Os anos se passaram e, por volta dos anos 2015, a região da Mantiqueira foi assolada por uma severa seca que fez com que muitas nascentes, córregos e mesmos rios secassem. Durante estes tempos, vi vizinhos e moradores da região se alterarem entre si pela falta de água nas nascentes. Foi um momento de grande tensão, que só foi alterada quando as chuvas finalmente voltaram. Mas, logo percebi: as coisas jamais seriam como antes . Instalou-se um medo. Como seriam então as próximas secas? Afinal, muitas nascentes jamais retornaram.
O Baia nos diz no seu texto que a” amar, então, é imaginar outros mundos possíveis…”. Acredito que esta é a nossa tarefa mais importante: imaginar outros mundos possíveis, pois este mundo de domínio da natureza preconizado pelo meu amigo citado, em última instância, o mundo do capitalismo produtor de mercadorias, está nos levando a uma tragédia sem precedentes. Afinal, até a nossa jovem Indígena enclausurada parou de chorar, e suas lágrimas estão desaparecendo de nossos rios e nascentes. E o fato visível é que nosso exuberante país vai se transformando em um grande deserto.
Serra da Mantiqueira, abril de 2025.
Arlindenor Pedro
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