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O pensamento crítico é uma tormenta. Não vem para agradar, mas para mover. Não se oferece como consolo, mas como fogo. É insubmisso, é irreverente, é inquietante. E não pede licença. Ele entra rasgando véus, desmontando certezas, desestruturando os alicerces invisíveis sobre os quais repousa a ilusão de estabilidade do mundo. O pensamento crítico é, ao mesmo tempo, um gesto de amor à complexidade da vida e um grito de insurreição contra tudo que se pretenda absoluto. Ele é a recusa: radical, consciente, amorosa, de toda tentativa de domesticar a existência por meio de modelos únicos, verdades supremas, rotas obrigatórias. O pensamento crítico não aceita donos. E por isso assusta.
Ele é contra tudo que se queira única forma de ver o mundo, a vida, a sociedade, a história, a cultura, a arte, a ciência, o corpo, a alma, o amor, a política. O pensamento crítico não suporta exclusividades. Ele é, por definição, plural. Ele suspeita de todo olhar que se diga o único. Rejeita toda lente que tente se impor como a verdadeira. Repudia as visões totalizantes, as epistemologias imperiais, os discursos hegemônicos, os esquemas autorreferentes. O pensamento crítico não quer o mundo reduzido a um único espelho. Ele quer mil espelhos, todos rachados, todos refletindo o avesso, o reverso, o que escapa à forma. Ele não quer capturar o real, mas libertá-lo.
E por isso, o pensamento crítico não cabe em nenhum ismo. Nem nos seus respectivos istas. Porque todo ismo, sim, todo ismo, vem com a promessa de redenção e a ameaça da exclusão. Os ismos organizam o mundo em categorias fechadas. Eles chegam com apostilas, com vocabulário específico, com rituais de pertencimento, com glórias e pecados, com aliados e inimigos. O marxismo, o liberalismo, o progressismo, o conservadorismo, o globalismo, o nacionalismo, o anarquismo, o identitarismo, o feminismo ortodoxo, o cientificismo, o espiritualismo mecanizado: cada ismo vem acompanhado de seus istas. E os istas, invariavelmente, transformam ideias em dogmas, perguntas em certezas, horizontes em muros.
Os istas são os guardiões do ismo. São eles que patrulham os desvios, que censuram as dissidências, que atacam as ambiguidades. Os istas vivem para proteger a pureza da doutrina. Têm pavor do hibridismo, alergia à contradição, horror à dúvida. O pensamento crítico, nesse cenário, torna-se o inimigo mais perigoso. Porque não aceita ordens. Porque não se curva. Porque atravessa todas as doutrinas com sua navalha de lucidez. Porque, ao invés de repetir, interroga. Ao invés de se encaixar, desajusta.
O pensamento crítico não é de esquerda, nem de direita. Mas pode ser de esquerda e de direita. Porque ele não se define por posição no tabuleiro, mas pela atitude diante do real. O que importa não é o lado, é a forma de ver. É a coragem de pensar com autonomia, mesmo que isso signifique ferir o consenso do próprio campo. O pensamento crítico é, de fato, libertário. Não no sentido anarquista de destruir tudo em nome do nada, mas no sentido mais profundo e nobre da palavra: é libertário porque deseja libertar. Libertar a mente, os corpos, os afetos, as possibilidades. Libertar o pensamento das amarras do pensamento domesticado. Libertar a imaginação do cárcere da ideologia.
E essa liberdade tem estrutura. Não é anarquia cega; é criação meticulosa. É ética. É rigor. É escuta. O pensamento crítico não é grito desordenado; é sinfonia dissonante. É o caos criador. É o trabalho paciente de desconstruir o que nos parece natural, inevitável, eterno. Ele se constrói na interseção entre sociologia e poesia, entre filosofia e carne, entre política e desejo, entre teoria e afeto. Ele é verbo encarnado.
Por isso, o pensamento crítico atrapalha. Atrapalha geral. Atrapalha os militantes, de todos os lados. Porque os militantes precisam de certezas. Precisam de causas absolutas, de verdades militantes, de slogans esculpidos em pedra. Precisam saber quem são os bons e os maus, precisam acreditar que o inimigo é sempre externo. Os militantes vivem em trincheiras. Precisam da guerra como forma de dar sentido à sua identidade. E o pensamento crítico não cabe em trincheira. Ele caminha por entre os lados, ou acima deles, ou abaixo. Ele desorganiza as fileiras, quebra a lógica binária, impede a fé cega. Ele diz: talvez. Ele diz: e se? Ele diz: não é bem assim.
A militância, mesmo aquela que se diz progressista, detesta ambiguidade. Detesta nuance. Detesta complexidade. Porque tudo isso enfraquece a eficácia do discurso. E o militante quer convencer, quer conquistar, quer vencer. O pensamento crítico, por outro lado, não quer vencer. Quer compreender. Quer expandir. Quer tensionar. O militante quer repetir o mesmo bordão até que o mundo se curve. O pensador crítico quer reinventar a pergunta até que o mundo se revele.
É por isso que o pensamento crítico é solitário. Porque ele incomoda até os aliados. Ele é aquele que, mesmo dentro do campo, aponta os limites do campo. Que olha para a própria bandeira e diz: cuidado, há autoritarismo aqui também. Que examina os próprios argumentos com a mesma severidade com que examina os do outro lado. E por isso é visto como traidor. Como fraco. Como indeciso. Mas, na verdade, é ele quem sustenta a dignidade do pensar. Porque pensar não é repetir. Pensar é arriscar.
Na arte, o pensamento crítico rompe com os estilos, desafia os movimentos, contesta os cânones. Não aceita a gramática do belo, nem o padrão do aceitável. Ele transforma o erro em estética, a dissonância em linguagem, o ruído em música. Ele não quer agradar, quer provocar. Não quer decorar paredes, quer rasgá-las. O pensamento crítico na arte é liberdade em forma de matéria sensível. É o corpo que grita. É a imagem que escapa. É o som que explode. É o gesto que inventa.
Na política, o pensamento crítico é dinamite sob os discursos fáceis. Ele não acredita em soluções mágicas, nem em líderes messiânicos, nem em reformas salvadoras. Ele sabe que a política é campo de conflito, de disputa, de ambivalência. Ele não se contenta com os extremos, nem com o centro morto. Ele quer reinventar o espaço público, refundar os pactos, criar novas formas de convivência. E, para isso, precisa romper com os jargões, com os dogmas, com os scripts.
Na sociologia, o pensamento crítico é a recusa de toda naturalização. É o ato de desvelar o que está escondido nos gestos mais cotidianos. É olhar para o que ninguém olha. É perceber que o óbvio é o lugar onde o poder se esconde. É entender que toda estrutura é também violência. Que toda tradição é também invenção. Que todo discurso carrega em si os silêncios que pretende apagar. O pensamento crítico sociológico é farol no meio da neblina. É bisturi no corpo social.
No jornalismo, ele se manifesta como denúncia do espetáculo. Como rigor contra o sensacionalismo. Como profundidade contra o fluxo. O pensamento crítico jornalístico não repete a pauta, não aceita o release, não obedece à ordem do dia. Ele pergunta onde ninguém pergunta. Ele escuta o que ninguém escuta. Ele dá voz aos invisíveis, mas sem romantizá-los. Ele narra o mundo com coragem, sem ceder ao conforto das versões oficiais. Ele é, ao mesmo tempo, testemunho e denúncia.
E na filosofia, o pensamento crítico é o gesto inaugural de toda reflexão digna. É o espanto socrático. É o martelo de Nietzsche. É a vigília de Arendt. É a suspeita de Foucault. É o amor à verdade, não como certeza, mas como busca. O pensamento crítico filosófico não constrói sistemas. Constrói abismos. Ele nos obriga a descer. A atravessar. A retornar diferentes. É experiência de si. É ética como estética da existência.
Pensar criticamente é, pois, um gesto de rebeldia com causa. É nadar contra a corrente das respostas fáceis. É perder-se para se encontrar. É ter coragem de dizer: não sei. E, ainda assim, continuar. É ferir para curar. É destruir para criar. É desaprender para reaprender. É o ato radical de sustentar a dúvida como método, como linguagem, como território, como destino.
E, mais que tudo, o pensamento crítico é um modo de existência. Uma escolha ontológica. Uma postura diante do ser. Ele não se contenta em interpretar o mundo. Ele quer reinventá-lo. Quer refundar a sensibilidade. Reprogramar os sentidos. Alargar os contornos da realidade. É por isso que ele não cabe em palavras de ordem. Ele exige silêncio e vertigem. Ele exige corpo inteiro. E coragem, sempre coragem, para não voltar atrás.
Contra o cinismo dos tecnocratas e a fé dos fanáticos, o pensamento crítico é uma terceira via: o caminho torto da liberdade. Ele não nasce do ressentimento, mas da imaginação. Não é reativo, é criador. E porque é criador, não cabe em simetrias. Ele não é resposta. É nascimento. Ele não é fechamento. É abertura. Ele não é pureza. É mistura. Ele não é um fim. É uma travessia.
Que sejamos, pois, os herdeiros dessa travessia. Que sejamos os que se atrevem a duvidar quando todos querem acreditar. Que sejamos os que escutam quando todos gritam. Que sejamos os que dançam no intervalo entre as ideologias. Que sejamos o sopro leve que move a pedra. Que sejamos, finalmente, a delicadeza radical do pensamento crítico, esta forma ardente de amor à liberdade.

Paulo Baía é sociólogo, cientista político e professor da UFRJ
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