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Uma reflexão sobre o diálogo entre cristianismo e marxismo à luz de um texto de Engels sobre o “ cristianismo primitivo”

Socialismo e Cristianismo- um artigo de Marcos Roberto Brito dos Santos
Começamos aqui uma série de artigos que visam abordar a relação entre cristianismo e socialismo a partir de textos publicados por autores marxistas, socialistas e anarquistas. Com isso, busco tentar contribuir no atendimento ao que me parece ser uma procura latente de esclarecimentos sobre o tema por parte do público em geral, e em especial, àqueles que se aventuram nos debates públicos sobre o papel da religião na vida política e social.
O texto que inicia a série foi publicado em 1894-1895 sob o título “Contribuição à História do Cristianismo Primitivo”, tendo Friedrich Engels como seu autor. No Brasil, houve algumas poucas edições, sendo a primeira que tenho conhecimento, no ano de 1969, pela Laemmert. Recentemente ganhou mais duas reedições, entre elas uma da Expressão Popular/Perseu Abramo, publicada no ano passado, com prefácio de Frei Betto. Não pretendemos, explorar todo o texto, nem fazer uma análise minuciosa dele, sendo nosso objetivo tão somente, lançar um olhar sobre questões e aspectos que entendemos relevantes, a partir de elementos presentes na obra de Engels.
O preconceito do senso comum
Ainda hoje, paira sob o senso comum no Brasil a ideia da impossibilidade de convívio entre marxismo e cristianismo. Há poucos dias, foi este o argumento apresentado em um desses embates entre esquerda e direita promovida nas redes sociais, e que tem se tornado comum nos dias atuais. Acusado de contradição entre ser de esquerda (ainda que não necessariamente marxista) e ser cristão, o interlocutor, um pastor, não me pareceu munido de argumentos sólidos para rechaçar a acusação feita por um jovem direitista. Isso se deve, pelo menos em parte, à pouca atenção que tem sido dada ao estudo desta relação pela esquerda brasileira.
A relação entre socialismo e religião, tão em voga e discutida por vários autores ao longo do século XX, praticamente cessou no debate político atual, dando lugar a outros temas, embora ainda mobilize as consciências mais inquietas, quando instigadas. O contexto intelectual desfavorável contribuiu assim para o triunfo do preconceito e da desinformação.
“Ópio do povo”: uma frase mal compreendida
Realmente, para o senso comum, prevaleceu a frase “A religião é o ópio do povo”, presente na introdução ao livro “Contribuição para a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”, como um anátema lançado, como uma condenação de Marx à religião e a toda sua manifestação, o que não condiz com a intenção deste filósofo, o que já foi largamente argumentado por estudiosos do tema, e que aqui não vamos aprofundar, deixando para uma outra oportunidade.
Engels e o cristianismo dos oprimidos
Por isso voltemos à contribuição de Friedrich Engels à história do cristianismo primitivo. Nela, seu autor compara o cristianismo primitivo – visto como religião dos escravos, dos oprimidos, dos pobres, dos subjugados e sem direitos – ao movimento dos trabalhadores de fins do século XIX, momento ao qual escrevia. Certamente, sob o olhar cientificista próprio ao período, entende limites na ação e consciência destes movimentos cristãos originais. Mas os entende, sobretudo, como precursores do movimento social moderno dos trabalhadores.
Mostra uma simpatia não apenas pelo cristianismo originário como por figuras do movimento operário nascente e cujas compreensão e pensamento continham ainda fortes influências cristãs, como no caso de Wilhelm Weitling.
Charlatães de ontem e de hoje
Uma dessas comparações feitas nos parece interessante para pensar um aspecto importante da realidade da religião no Brasil de hoje. Engels identifica tanto no movimento cristão “primitivo”, como no movimento moderno dos trabalhadores, a presença de charlatães e lideranças desonestas, que se aproveitam da ingenuidade das pessoas simples do povo. O cristianismo dos primeiros tempos e o movimento dos trabalhadores do século XIX também tiveram seus Malafaias, Santiagos e Macedos!
Porém, na atualidade, com o advento das redes sociais, os aproveitadores e salafrários ampliaram sobremaneira seu alcance, disseminam-se e estendendo-se a um público nunca antes atingido.
No campo espiritualista, é possível identificar figuras sinceras, preocupadas com a melhoria da vida e com o avanço espiritual da humanidade. Entretanto, pela sua própria natureza, é também um campo muito susceptível a malandragem e exploração financeira.
Lembro agora de uma figura chamada Pedro, que nas redes sociais já afirmou estar “recebendo” o próprio Jesus Cristo, e que, em outro momento, ao supostamente incorporar o espírito de Chico Xavier, revelou a seus seguidores que este era um espírito “pequeno”, e que “maior” no Reino de Deus, mais sábio, era mesmo o próprio médium que o estava incorporando. O tal Pedro, que só é pedra, se for da sinagoga de Satanás, em nada deixa a desejar ao pseudo-sábio Kuhlmann, citado por Engels em seu texto. O pior de tudo isso é saber que há quem acredite e o siga. E são muitos.
Com este ambiente tão fértil, “profetas” e “apóstolos”, “adivinhos” e “clarividentes”, em busca de dinheiro e muitas vezes ligados a interesses políticos, multiplicam-se como por mitose, e não são poucos os que sempre se arvoram por legitimar a eleição de mitos. É mais do que óbvio, assim, que este tipo de “cristianismo” não pode se coadunar com um projeto de uma sociedade socialista, e distante está de suas expressões teóricas, entre elas, do marxismo.
Cristianismo primitivo x cristianismo imperial
Ainda sobre os paralelismos feitos por Engels, há de se notar que estes estão baseados na tese de um hiato entre o cristianismo original, chamado primitivo, e aquele fundado pelo imperador romano Constantino no Concílio de Niceia em 325 d.C., pouco após ter se convertido e concedido liberdade de culto aos cristãos.
Dessa forma, o primeiro aparece para Engels como um cristianismo combativo, de propaganda ativa, martirizado pela não aceitação das coisas deste mundo, mas que projeta uma solução para o além do mundo.
Para essa caracterização, Engels se baseia no estágio de desenvolvimento do conhecimento da história do cristianismo à época e na crítica bíblica que emerge no século XIX, escrevendo sob a luz lançada por autores como Bruno Bauer, D. F. Strauss com sua obra “Vida de Jesus”, e pela Escola teológica de Tübingen.
E embora muitos de seus argumentos estejam fundados em periodizações dos escritos bíblicos que hoje se entende equivocadas, como no caso de sua datação do livro de Apocalipse – em razão de novas descobertas arqueológicas e do avanço dos estudos exegéticos da Bíblia – em muito pouco me parece superada esta sua caracterização.
O limite racionalista de Engels
Devo dizer, porém, que Engels apresenta também elementos de preconceitos em relação à experiência religiosa, principalmente naquilo que se manifesta como sendo sobrenatural, embora isso, a meu ver, em nada impossibilite um diálogo profícuo entre cristãos e marxistas, sendo, ao contrário, necessário.
Há de se compreender também a sua visão, ao considerarmos o cientificismo e racionalismo próprio da época. E isso não aparece apenas em sua interpretação da religião como uma máscara que esconde interesses materiais nas lutas de classes presente na história, fórmula já pronunciada em seu escrito de 1850 sobre as guerras camponesas na Alemanha. Faz-se expressar também em outras partes do seu texto, onde concebe a experiência mística como superstição e asneira.
Faltava a Engels caminhar pela estrada de Damasco, assim como fez Paulo de Tarso, e um encontro com aquilo que a razão não pode entender. Afinal, há mais coisas entre o Céu e a Terra, do que sonha nossa limitada, mas não vã, filosofia e racionalidade…

Marcos Roberto Brito dos Santos – É doutor e mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Nos últimos seis anos, vem se dedicando, em especial, ao estudo dos discursos e das narrativas históricas e literárias construídas sobre o Arraial do Belo Monte e a Guerra de Canudos, assim como à reflexão sobre as suas fonte documentais.

Opinião da Utopias Pós Capitalistas
O artigo de Marcos Roberto Brito dos Santos inaugura um diálogo necessário entre o campo daí religião e do socialismo, recuperando a leitura de Engels sobre o cristianismo primitivo. A Utopias Pós Capitalistas resolveu publicar e acompanhar essa série, entendendo que ela se faz necessária se queremos pensar um mundo pós capitalista. É importante lembrar que esta é uma questão que acompanha toda a historia da humanidade, novamente no seu período moderno.Mostra a dificuldade do homem em pensar a transcendência, dado ela estar profundamente marcada pelos fetiches que estruturam a sociedade capitalista, em especial o da mercadoria.
Nesse sentido, se Engels viu no cristianismo dos oprimidos uma pré-figuração da luta social, cabe hoje indagar: seria possível pensar uma espiritualidade pós-capitalista, não como fuga para o além, mas como experiência de emancipação e reconciliação com a vida?
Fetiche, Transcendência e Espiritualidade Pós-Capitalista
Uma das grandes contribuições de Marx foi desvelar que, no capitalismo, o trabalho abstrato — e não a mera produção de valores de uso — constitui a base da sociabilidade. O ser humano moderno, ao reduzir sua existência à condição de portador de trabalho e consumidor de mercadorias, perde a capacidade de pensar-se fora dessa lógica. É como se a forma mercadoria criasse uma gaiola transcendental: tudo o que o homem imagina já se encontra moldado pelas categorias do valor.
Robert Kurz chamou atenção para esse aprisionamento em sua análise da crise do valor:
não é apenas a economia que se organiza em torno da mercadoria, mas também a consciência, que internaliza o fetiche e naturaliza a equivalência universal do dinheiro como medida de todas as coisas.
Moishe Postone, por sua vez, destacou que o tempo abstrato do trabalho torna-se a forma de dominação mais profunda: não vemos apenas os objetos como mercadorias, mas vivemos o tempo, o espaço e nós mesmos a partir das exigências de valorização do capital.
O fetiche, nesse sentido, não é um “erro de percepção”, mas um bloqueio estrutural: a forma como a sociedade se constitui impede que os homens se pensem para além dela.
A espiritualidade interditada
É nesse contexto que a ideia de transcendência toma densidade. Não transcendência como fuga para um “além-mundo”, mas como capacidade de projetar uma existência que ultrapasse os limites imediatos da mercadoria, do trabalho e do dinheiro.
A espiritualidade — entendida como abertura ao que escapa ao cálculo, ao que não pode ser reduzido ao valor — é interditada pela lógica do fetiche. O espírito humano, em vez de se elevar ao encontro do outro e da natureza, é aprisionado no círculo vicioso do consumo, da competição e da equivalência universal do mercado.
Anselm Jappe observa que a sociedade contemporânea se caracteriza por um niilismo mercantil:
tudo se torna objeto de troca, e a vida perde seu sentido qualitativo. É justamente essa vacuidade que produz, paradoxalmente, o fascínio por falsas transcendências
Religiões de mercado, espiritualidades vendidas em pacotes e misticismos que reproduzem a lógica mercantil.
Ruptura e possibilidade pós-capitalista
Se, entretanto, a lógica do valor fosse superada — e isso não significa socializar mercadorias ou redistribuir mais equitativamente o trabalho, mas abolir as próprias categorias do valor, do dinheiro e do trabalho abstrato —, o conceito de espiritualidade poderia ganhar outro significado.
Não se trataria de um retorno à religião tradicional, mas da abertura a uma dimensão humana hoje reprimida:
a capacidade de viver relações livres da mediação do valor. Uma espiritualidade pós-capitalista seria, nesse sentido, inseparável da emancipação social.
Espiritualidade não como crença em forças externas, mas como reconciliação do homem consigo mesmo, com a comunidade e com a natureza.
Ela significaria a possibilidade de um “transcendente imanente”: uma vida em que o sentido não precisasse ser buscado fora do mundo, mas emergisse da própria experiência de liberdade, solidariedade e criação coletiva.
A espiritualidade como emancipação
O capitalismo ergueu uma barreira transcendental que impede o homem de pensar além do valor. O fetiche da mercadoria e do trabalho não apenas organizam a produção, mas moldam a consciência, interditando a imaginação de outros mundos possíveis.
Mas, justamente por isso, a crise estrutural do valor abre a possibilidade de recuperar a transcendência em outro registro. Uma espiritualidade pós-capitalista não seria fuga, mas plena afirmação da vida:
um encontro do ser humano com sua potência criadora e sua relação orgânica com a comunidade e a natureza.
Em outras palavras, a crítica do valor nos mostra que, para além do fetiche, espiritualidade pode significar não a negação do mundo, mas a conquista de um mundo finalmente humano.
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