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A literatura como empiria reveladora da realidade-Paulo Baía

arlindenor pedro
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O que um poeta não vê, não aconteceu.

Elias Canetti

A literatura como empiria reveladora da realidade- um texto de Paulo Baía

\O acontecimento precisa da visão, da palavra, da inscrição em linguagem para existir de fato. O mundo é feito de acontecimentos brutos, mas só se torna memória quando narrado, só se torna realidade coletiva quando passa pelo olhar do poeta, do cronista, do romancista, do dramaturgo, do ensaísta. A literatura não é adorno: é empiria, a mais poderosa forma de conhecimento, a ciência do sensível que revela o social, o psicológico e o simbólico. Sem literatura, a vida seria apenas um amontoado de fatos sem consciência. Com literatura, torna-se história, categoria, símbolo, interpretação.

Desde o início, a sociologia bebeu da literatura. Marx, ao analisar o capital, citava Shakespeare. Weber via em Goethe uma chave para pensar a modernidade e a ética. Durkheim lia Balzac para entender a sociedade francesa em transformação. A literatura já narrava aquilo que a ciência começava a sistematizar. O romance do século XIX foi um verdadeiro laboratório: Dickens mostrou as ruínas da infância na era industrial, Balzac revelou os bastidores da ascensão burguesa, Zola praticou o naturalismo como observação quase científica da vida operária. A literatura precedeu a sociologia na descrição densa da realidade. Produziu empiria antes mesmo que a sociologia definisse o que era empiria.

No Brasil, essa potência se multiplicou. Nossa literatura foi sempre intérprete da nação, às vezes mais poderosa do que qualquer ciência formal. Euclides da Cunha, em Os Sertões, não escreveu apenas sobre uma guerra. Fundou uma interpretação do país. Ali estão o sertanejo como categoria social, a violência do Estado como método, o abandono secular do povo pelo poder central. Sua frase mais célebre, “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”, é diagnóstico, é sociologia, é símbolo. Sem Euclides, Canudos teria permanecido invisível. Com ele, tornou-se acontecimento fundador da consciência nacional. Ele viu, e por isso aconteceu.

Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas, expandiu o sertão até o infinito. Seu romance não é mera ficção: é filosofia da existência, antropologia da travessia, sociologia da violência e do poder. Riobaldo encarna dilemas universais, mas também sintetiza tensões sociais profundamente brasileiras. Rosa inventa linguagem porque o sertão precisava de nova língua para existir. Ele não apenas descreveu: criou cosmos. Sua literatura é empiria simbólica, ciência poética da realidade.

João do Rio foi cronista da modernidade carioca. Em A Alma Encantadora das Ruas, percorreu becos e avenidas, prostíbulos e igrejas, bares e procissões. Registrou tipos humanos invisíveis: prostitutas, mendigos, boêmios, trabalhadores pobres. Sua obra é etnografia urbana, descrição densa do cotidiano. Ele mostrou como a cidade é feita de contrastes, como a modernização convive com a desigualdade. Sua literatura é empiria da rua, sociologia do visível. O Rio só passou a existir como metrópole moderna porque João o viu.

Nelson Rodrigues fez da cena teatral o espelho mais cruel da sociedade brasileira. Suas tragédias suburbanas revelaram o que estava oculto: adultério, incesto, violência doméstica, repressão sexual, hipocrisia social. Nelson mostrou que a família é palco de tensões políticas, que o íntimo é também social, que o desejo é estrutura coletiva. Sua obra é empiria psicológica e simbólica, diagnóstico do inconsciente nacional. Ele viu o que ninguém queria ver, e por isso fez acontecer.

A sociologia acadêmica percebeu essa força. O professor Gisalio Cerqueira, em seus estudos sobre política, violência e instituições, mostrou como a literatura é recurso metodológico fundamental. Para ele, a narrativa literária não é ilustração, mas dado, documento, empiria legítima. Sua sociologia demonstra que sem literatura não há compreensão profunda do social, porque a sociedade é também símbolo, subjetividade, imaginário. Gisalio revela que literatura e sociologia não são mundos separados, mas dimensões complementares da mesma busca: tornar visível o invisível.

Também Aloizio Alves Filho, ao analisar Monteiro Lobato, mostrou como a literatura condensa dilemas nacionais. O Jeca Tatu, mais que personagem, é diagnóstico do atraso rural, da miséria, da falta de políticas públicas. Mas também é crítica e possibilidade de transformação. Nos debates sobre o petróleo, Lobato antecipou a questão da soberania. Aloizio demonstrou que a literatura lobatiana é chave para a sociologia porque nela estão símbolos que estruturam a experiência brasileira.

No presente, a força da literatura como empiria se renova em obras monumentais. Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves, é talvez a mais radical narrativa sobre a escravidão já escrita no Brasil. Kehinde, mulher africana escravizada, atravessa séculos de dor, resistência e esperança. O romance não é apenas ficção: é arqueologia da memória, antropologia da diáspora, sociologia da escravidão. Ana Maria Gonçalves devolve voz a quem a história silenciou. Sua obra é empiria porque transforma trauma em linguagem, invisível em memória coletiva. O que ela viu, fez acontecer para todos nós.

Eliane Cruz, em Água de Barrela, inscreve outra vertente dessa empiria: a memória popular, o cotidiano das comunidades, as vozes femininas silenciadas. Sua narrativa é rio subterrâneo que traz à superfície lembranças, dores e resistências. Água de Barrela é testemunho, é documento, é sociologia da intimidade. Eliane Cruz mostra como a literatura é também política do cuidado, antropologia da memória. Sua escrita é empiria porque dá existência ao que parecia perdido.

Essas obras dialogam com toda uma tradição brasileira de literatura como conhecimento. Machado de Assis revelou as engrenagens da vaidade e do poder. Lima Barreto denunciou o racismo estrutural e a corrupção. Clarice Lispector mergulhou na opacidade do instante e da consciência. Conceição Evaristo criou a escrevivência, transformando memória individual em categoria coletiva. Todos eles viram, e por isso tudo aconteceu.

A literatura é empiria porque transforma o social em enredo, o psicológico em personagem, o simbólico em imagem. É sociologia porque revela estruturas invisíveis. É antropologia porque descreve culturas. É política porque denuncia injustiças e propõe caminhos. É psicologia porque mergulha na alma. É simbólica porque inventa universos de significação. E é radicalmente literária porque tudo isso se dá em beleza, em narrativa, em metáfora.

Sem literatura, o Brasil seria incompreensível. Não entenderíamos Canudos sem Euclides. Não conheceríamos o sertão infinito sem Rosa. Não veríamos a modernidade urbana sem João do Rio. Não captaríamos a hipocrisia da classe média sem Nelson. Não discutiríamos soberania sem Lobato. Não entenderíamos a violência estrutural sem Gisalio. Não sentiríamos a escravidão sem Ana Maria Gonçalves. Não ouviríamos a memória das comunidades sem Eliane Cruz. O que eles viram, aconteceu para todos nós.

E assim, a lição de Canetti permanece definitiva: o que um poeta não vê não aconteceu. A literatura é a mais eficaz forma de revelar a realidade porque torna o invisível visível, o silêncio palavra, o esquecimento memória. Cada livro é empiria, cada narrativa é ciência do sensível, cada metáfora é categoria sociológica. A literatura salva o mundo da invisibilidade. Cada escritor é guardião da realidade. Cada leitor é testemunha de sua inscrição.

Paulo Baía é Sociólogo, cientista político e professor da UFRJ

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Libertário - professor de história, filosofia e sociologia .
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