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O cristal quebrado: Brasil, setembro de 2025-Paulo Baía

arlindenor pedro
Por arlindenor pedro 9 leitura mínima

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Dizer que o Brasil de setembro de 2025 está cindido pode soar como um lugar comum, um clichê repetido à exaustão. Mas há clichês que não são apenas frases gastas: são cicatrizes abertas na pele da história. A cisão brasileira de hoje não é apenas política, é social, cultural, existencial. É uma ferida que atravessa todas as classes, todas as regiões, todos os templos, todas as escolas. Quarenta por cento da população apoia Lula, quarenta por cento apoia Jair Bolsonaro, e cada lado contém dentro de si a totalidade do mosaico social brasileiro: ricos e pobres, universitários e analfabetos, empresários e trabalhadores, fiéis e ateus. A polarização é transversal.

É verdade que os que têm nível superior, uma minoria na pirâmide educacional do país, tendem majoritariamente ao bolsonarismo. Professores e profissionais liberais, muitos deles, alinham-se a teses conservadoras. Mas isso não significa exclusividade. Há doutores lulistas e doutores bolsonaristas; há operários lulistas e operários bolsonaristas. A clivagem não se distribui apenas por classe social ou grau de instrução, mas por afetos, visões de mundo e identidades políticas cristalizadas.

Os 40% de Lula veem no outro lado o retrato da barbárie. Chamam os bolsonaristas de gado, ignorantes, fascistas, inimigos da democracia. Os 40% de Bolsonaro devolvem a acusação com fúria: chamam os lulistas de corruptos, comunistas, quadrilha organizada. Cada lado reivindica para si a democracia, ao mesmo tempo em que nega ao outro a legitimidade de existir. E os 20% restantes? São o Brasil do cansaço, do desencanto, que despreza ou odeia ambos os polos com igual intensidade. Esse grupo é menos silencioso do que parece: nele estão os que veem no sistema político um jogo viciado, incapaz de representar sua angústia.

A polarização não é inédita na história brasileira. Já fomos rasgados em dois no passado. O golpe de 1964 cindiu famílias e lançou gerações em campos opostos de batalha ideológica. A eleição de 1989, entre Collor e Lula, também mostrou um país dividido, embora ainda com ares de novidade democrática. As jornadas de junho de 2013 abriram um abismo simbólico que o sistema político não soube interpretar. Mas hoje há uma diferença essencial: a polarização é contínua, permanente, cotidiana, alimentada pelas redes sociais, pelas igrejas, pela mídia. Não é uma divisão que aparece em momentos de crise: é a própria atmosfera do tempo presente.

Esse ambiente é potencializado por um elemento dramático: a condenação de Jair Bolsonaro, que alimenta entre seus seguidores a sensação de martírio, e entre seus opositores o júbilo de vitória. Ao mesmo tempo, as eleições gerais de 2026 se aproximam, prometendo intensificar ainda mais o clima de animosidade. Estamos em marcha acelerada para uma catástrofe social e política.

Os sinais já estão claros. Cada lado canta suas vitórias e contabiliza suas perdas, como se o país fosse apenas um campo de batalha. O lulismo celebra os programas sociais, as conquistas institucionais, os espaços de inclusão. O bolsonarismo exalta a ordem, a moralidade, a família, a resistência contra o que considera corrupção sistêmica. Mas no fundo, ambos vivem do confronto. Cada narrativa só faz sentido porque existe a narrativa contrária. Não se trata de uma disputa saudável, mas de uma negação mútua.

Essa negação vai além do discurso. Ela corrói a democracia. A democracia exige o reconhecimento da pluralidade, mas o Brasil de 2025 é um país que não reconhece o outro como legítimo. Não se trata apenas de discordar, mas de excluir. O lulista não aceita que o bolsonarista seja parte da democracia; o bolsonarista não aceita que o lulista pertença à comunidade nacional. É como se ambos estivessem dispostos a viver em dois países distintos — e, de fato, em muitos aspectos, já vivem.

Não estamos sozinhos nessa tragédia. Os Estados Unidos viveram algo semelhante com o trumpismo, que dividiu a nação entre defensores da democracia liberal e os que viam em Trump um salvador contra o establishment. O Chile, em seu recente plebiscito constitucional, também revelou uma sociedade partida, incapaz de encontrar um consenso mínimo. O Brasil, no entanto, tem uma peculiaridade: aqui, a polarização não é apenas eleitoral ou institucional. É social, cultural, religiosa. O bolsonarismo não é apenas um projeto político: é uma identidade de fé, de comunidade, de pertencimento. O lulismo, por sua vez, não é apenas uma legenda partidária: é a encarnação de uma promessa de justiça social, ainda que frustrada em muitos momentos.

Nesse cenário, estatística e jornalismo se encontram. As pesquisas mostram o empate estável, quase geométrico, entre os dois blocos. O jornalismo relata, dia após dia, episódios em que a animosidade se transforma em violência simbólica ou física. A sociologia alerta para o risco de dissolução do tecido social. E a política, em vez de buscar pontes, transforma cada fissura em trincheira.

O que vemos, no fundo, é o cristal quebrado da nação. Um cristal que já não reflete um rosto coletivo, mas múltiplos fragmentos. Cada lado vê apenas a si mesmo e o reflexo distorcido do inimigo. Cada lado reivindica o monopólio da sensatez, da razão, da verdade. Mas a verdade, em uma sociedade plural, nunca é monopólio. Quando um lado acredita ser o único detentor da democracia, a democracia já está morta.

A crise brasileira é também uma crise de valores. Não se trata apenas de disputa política, mas de visões inconciliáveis de país. Para uns, o Brasil deve ser uma nação aberta, inclusiva, solidária. Para outros, deve ser uma fortaleza moral, religiosa, hierárquica. Essa disputa não é negociável porque toca o núcleo das identidades. É por isso que o diálogo se tornou impossível.

A pergunta que se impõe é: quem ousará reconstruir a ponte? Quem terá a coragem de reconhecer que o outro lado existe, que o outro lado é parte do mesmo país? Talvez ninguém. Talvez estejamos condenados a viver nesse abismo até que a história nos obrigue a reinventar o pacto social.

O futuro próximo não inspira otimismo. A condenação de Bolsonaro pode radicalizar seus seguidores, assim como o sucesso de Lula pode inflamar seus opositores. As eleições de 2026 podem se tornar não apenas uma disputa de votos, mas uma batalha pelo direito de existir. Nesse horizonte, o risco não é apenas a derrota eleitoral de um lado, mas a implosão do espaço comum que chamamos de Brasil.

Sociologia, política e jornalismo convergem em um diagnóstico: o Brasil é hoje uma democracia frágil, suspensa na corda bamba da negação mútua. E estatística confirma: oitenta por cento da população vive dentro da lógica da polarização. Apenas vinte por cento tentam escapar — e talvez sejam eles, paradoxalmente, a chave para a reconstrução.

Se nada mudar, caminharemos com passos rápidos e largos para a catástrofe social e política. Não será uma tragédia súbita, mas uma erosão lenta, uma decomposição do tecido comum, até que um dia descubramos que o Brasil já não existe como comunidade imaginada. Restará apenas um território ocupado por tribos inimigas.

E então, o clichê inicial deixará de ser apenas uma descrição da realidade para tornar-se o epitáfio de uma nação que não soube reconhecer a si mesma no outro..

Sociólogo, cientista político, ensaísta e professor da UFRJ

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Libertário - professor de história, filosofia e sociologia .
1 comentário
  • Penso que uma possível saída é dar voz e visibilidade para os grupos periféricos. A intelectualidade da nossa classe média acaba por excluir grupos de vulneráveis.

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