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Quando leio Brautigan, vejo um prenúncio não apenas do Vale do Silício, mas também de Pequim. A “máquina de graça amorosa” encontra na China um espelho atual: um sistema que promete bem-estar coletivo e harmonia social, mas sustentado por um olhar que não pisca.
O crédito social, por exemplo, traduz literalmente a utopia envenenada de Brautigan: cidadãos monitorados em todos os gestos, não pela brutalidade visível da polícia, mas pela ternura paternalista do algoritmo. É a vigilância disfarçada de cuidado, a disciplina apresentada como pedagogia.
Brautigan sonhava uma “cibernética pradaria” onde homens e máquinas convivessem em paz. A China constrói algo parecido, mas em concreto: cidades inteligentes, câmeras que sorriem enquanto vigiam, algoritmos que recompensam e punem. A diferença é que aqui não há pastoral.Na verdade o que existe é um novo Leviatã, um Contrato Social: liberdade trocada por segurança, espontaneidade substituída por nota de comportamento.
O que Brautigan intuía em tom de delírio utópico, a China realiza em tom de pragmatismo estatal. Não é poesia, é política. E justamente por isso é inquietante: o poema deixa de ser metáfora e torna-se manual.
Assim, “máquinas de graça amorosa” é a fórmula perfeita do novo capitalismo de controle: um poder que não precisa mais de tanques nas ruas, porque já ocupa o coração dos algoritmos e, silenciosamente, a intimidade dos corpos.
O poema de Richard Brautigan (1967)
All Watched Over by Machines of Loving Grace / Todos Vigiados por Máquinas de Graça Amorosa
Primeira estrofe
English
I like to think
(and
the sooner the better!)
of a cybernetic meadow
where mammals and computers
live together in mutually
programming harmony
like pure water
touching clear sky.
Português
Gostaria de que vivêssemos todos
numa cibernética pradaria
onde os mamíferos e os computadores
convivessem em harmonia
numa rica e bem iluminada
comunidade natural,
livres de nossas labutas e sofrimentos,
retornando a um estado de graça
pelas máquinas de graça amorosa.
Comentário de Silvie Armand
Brautigan sonha uma Arcádia cibernética, uma pradaria onde animais e computadores convivem em paz. A utopia hippie se funde ao imaginário eletrônico. Mas reparem no paradoxo: “máquinas de graça amorosa”. É uma vigilância que se apresenta como carinho.
Segunda estrofe
English
I like to think
(it has to be!)
of a cybernetic forest
filled with pines and electronics
where deer stroll peacefully
past computers
as if they were flowers
with spinning blossoms.
Português
Gostaria de que vivêssemos todos
numa cibernética floresta
cheia de pinheiros e eletrônicos,
onde os veados vagassem em paz
ao lado dos computadores,
como numa utopia pastoral,
pelas máquinas de graça amorosa.
Comentário de Silvie Armand
O bucolismo encontra o bit. Pinheiros e circuitos dividem a mesma floresta. O veado vagueia ao lado do computador como se fossem flores. É ternura, mas também ironia: a máquina já não é estranha, é parte do jardim.
Terceira estrofe
English
I like to think
(it will be!)
under the watchful eyes
of machines of loving grace,
that we are free of our labors
and joined back to nature,
returned to our mammal brothers and sisters,
and all watched over
by machines of loving grace.
Português
Gostaria de que vivêssemos todos
sob o olhar terno
das máquinas de graça amorosa,
em que seríamos livres de nossas fadigas
e voltaríamos a ser unidos
à natureza,
sem ter de ser forçados a ela
pelo duro trabalho,
mas apenas guiados
pela ternura.
Comentário de Silvie Armand
Aqui o sonho se torna inquietante: a vida sob “olhos vigilantes”, mas ternos. É a promessa de libertação da labuta pelo acolhimento da máquina. O problema: quando o controle se disfarça de ternura, a servidão se converte em desejo.

Silvie Armand nasceu em Lyon, em 1985, entre artesãos e músicos de bairro.
Formou-se em Filosofia na Université Lumière Lyon 2 e em Lisboa apaixonou-se pela língua portuguesa e pelo fado.
Poeta, ensaísta e cronista, transita entre jornalismo cultural e escrita experimental, unindo crítica e criação.
Pesquisa a música improvisada e sua dimensão comunitária, inspirando-se em Hermeto Pascoal e Egberto Gismonti.
Hoje é uma voz itinerante, escrevendo em francês e português: “a língua é casulo, a música, borboleta”.
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