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Hiroshima está em toda parte: a barbárie como forma social do capital-observações sobre o livro de Gunther Anders

arlindenor pedro
Por arlindenor pedro 34 leitura mínima

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O texto que segue articula o pensamento de Günther Anders, em seu recém-lançado Hiroshima está em toda parte (Editora Elefante, 2025), com as reflexões do filósofo Marildo Menegat sobre a barbárie e o colapso do capitalismo. A partir dos 80 anos de Hiroshima, a análise propõe compreender a bomba atômica não como acidente histórico, mas como expressão extrema da própria lógica destrutiva do capital. Ao reunir Anders e Menegat, o post convida o leitor a pensar a modernidade como autodestruição e o pacifismo como crítica radical à forma social que torna a aniquilação possível. Trata-se, portanto, de uma leitura filosófica sobre o tempo do fim — o nosso.

O novo livro de Günther Anders, Hiroshima está em toda parte (Editora Elefante, 2025), recoloca com força filosófica o tema da autodestruição moderna como núcleo da sociabilidade capitalista. Lido em conjunto com a reflexão de Marildo Menegat no podcast recente sobre os oitenta anos de Hiroshima, o livro deixa de ser apenas uma meditação ética sobre a bomba para se revelar como uma crítica radical da forma social que a tornou possível.

Em Anders, a bomba atômica não é um acidente da história nem um excesso militar, mas a expressão extrema de uma lógica produtiva que transformou o mundo em um dispositivo de destruição potencial. A humanidade, diz ele, tornou-se capaz de fabricar o próprio fim sem ser capaz de imaginá-lo. Essa “disproporção prometeica” entre o poder de fazer e a capacidade de compreender é o sintoma do colapso de uma racionalidade que se autonomizou da vida. O mundo técnico não é apenas o cenário da barbárie, mas a sua própria linguagem. Hiroshima não é um ponto no tempo: é a forma de existência de uma sociedade que já ultrapassou o limite do humanamente concebível.

Marildo Menegat, ao retomar Anders, desloca o foco do artefato técnico para a totalidade social que o produz. O capitalismo, afirma ele, é uma forma de barbárie porque torna inviável sua própria autorreprodução. Sua expansão é idêntica à sua autodestruição. A guerra, desde as origens do sistema, é parte estrutural desse processo: a produção de valor implica o gasto incessante de energia humana e natural, e a guerra é o modo mais concentrado e explícito dessa dissipação. Por isso, não há exterior à lógica destrutiva; ela atravessa o cotidiano, que se torna ele mesmo uma forma de guerra civil difusa. A multiplicação de mortes banais, o esfacelamento social e a violência dispersa são a manifestação molecular da mesma racionalidade que culmina em Hiroshima.

A barbárie, nessa leitura comum a Anders e Menegat, não é a regressão a um estado primitivo, mas o desfecho histórico do processo civilizatório. Quando a forma valor transforma toda a vida em meio para sua autovalorização, o mundo deixa de ter sentido próprio. O fetichismo torna-se princípio ontológico da sociedade. É essa cegueira ativa que permite à humanidade fabricar bombas capazes de destruir o planeta e, ao mesmo tempo, continuar a tratar o trabalho, o progresso e a produtividade como virtudes morais.

Contra essa naturalização da catástrofe, Anders e Menegat propõem um mesmo gesto de ruptura: desmontar não apenas os aparatos materiais de aniquilação, mas a forma social que os produz. Ser pacifista, diz Menegat, é impossível sem ser anticapitalista. Não basta recusar o uso das armas; é preciso superar a estrutura fetichista que transforma o fazer humano em instrumento de sua própria negação. O pacifismo efetivo só pode ser um processo de emancipação social, uma crítica da forma valor, da técnica e do trabalho abstrato como fundamentos da destruição.

O diálogo entre Hiroshima está em toda parte e o pensamento de Menegat revela, assim, que a verdadeira herança de Hiroshima não é apenas a memória do horror, mas o espelho da forma social que o produziu. A bomba é o rosto do capital quando este já não promete futuro, mas apenas a administração da morte. Pensar Hiroshima hoje é pensar o limite histórico do capitalismo e a urgência de uma nova forma de vida social que rompa com a lógica da autodestruição. Enquanto isso não acontecer, Hiroshima continuará, de fato, em toda parte.

Os mortos- um podcast com Marildo Menegat

Marildo, você trata muito nos seus textos e reflexões sobre o colapso do capitalismo e esse conceito de barbárie. Esse estado permanente de barbárie, a barbárie como produto do próprio capitalismo… Queria começar bem por aí, trazer isso em relação ao evento de Hiroshima, que está completando 80 anos. O que a bomba atômica provoca em relação a esses temas?

Hiroshima é a própria linguagem criada pela bomba. Ela foi um ponto zero, exatamente como o momento de, digamos, uma guinada. Mas primeiro, uma questão: nós temos dificuldades de situar o debate sobre barbárie, porque ela implica uma série de preconceitos históricos, no momento em que ela surge, entre os gregos, e os usos que fazem a Idade Média, o iluminismo e tal. Eu queria situar o uso que eu faço da barbárie.

A barbárie, para mim, é um movimento no qual uma sociedade torna inviável as condições da sua autorreprodução. Ela mesma produz um movimento de aniquilação, de destruição das suas bases e fundamentos sociais. Então pensar essa ideia, o uso do conceito de barbárie que eu faço nesse sentido para pensar o capitalismo, é pensar como é que essa autodestruição se processa e se naturaliza.

O caso da bomba nuclear, quando digo que ela é um certo marco zero, é porque nós tivemos, na Primeira Guerra Mundial, uma experiência de aniquilação em massa. A Primeira Guerra Mundial foi um choque para a humanidade. Primeiro porque tinha essa ideia falsa de que a Europa era civilizada, que a Europa era aquela ideia evolucionista, de que a Europa, a sociedade onde o capitalismo nasce, onde o iluminismo se desenvolve, era o centro do desenvolvimento da humanidade. Pois exatamente esse centro se entrega a uma destruição generalizada, com milhões de mortos. São contados 20 milhões de mortos. Então, nós temos ali um impacto impressionante. A ideia de que a humanidade podia se autoaniquilar foi construída lá, na realidade.

Mas a Segunda Guerra Mundial vai vir com novas tecnologias. E essas novas tecnologias não são apenas uma mera evolução do anterior. A bomba atômica é um artefato de destruição em massa que nunca tinha sido pensado nem usado na história humana. Então, Hiroshima é exatamente o coração das trevas dessa ideia da barbárie permanente do capitalismo. Porque ali em Hiroshima está mostrado não apenas que a aniquilação da Primeira Guerra Mundial se confirmava, mas que era possível destruir a humanidade. Que a humanidade podia se autodestruir.

Com a bomba nuclear, com o artefato nuclear, com o aparato nuclear que vai se produzir a partir de Hiroshima, pode-se destruir a vida no planeta. A Anne Jacobson, uma jornalista americana, lançou um livro recentemente [Nuclear War: A Scenario]. Enfim, o livro é muito convencional, mas ele tem uma coisa interessante. Ela vai descrever um cenário em que, se começasse uma guerra nuclear – o maluco da Coreia do Norte lança um míssil contra os Estados Unidos, os Estados Unidos respondem, a Rússia entra, a China entra e tal –, em 72 minutos nós estamos já no inverno nuclear, num processo de destruição sem volta. Em 72 minutos. Então isso é o resultado que se inicia no dia 6 de agosto de 1945 em Hiroshima. Esse elemento, ele é para nós um elemento fundamental.

Por que? Veja, os aparatos nucleares, seja a bomba nuclear, a bomba de hidrogênio, e todas as evoluções, são evoluções de forças destrutivas, na lógica que eu estou te apresentando. Mas todos esses aparatos tecnológicos destrutivos são criados por seres humanos. É uma criação social, são relações sociais que elas produzem condições de desenvolver aparatos destrutivos de larga escala que aniquilam não apenas a humanidade, como a possibilidade de vida no planeta. Veja, isso é uma cegueira absoluta. É essa cegueira que eu acho que ela fica como resultado para uma reflexão filosófica.

E um último detalhe dessa questão, que é fundamental ser colocada: muita gente pode dizer assim, esse é o ser humano, a espécie, é um problema da natureza humana e tal. Não, veja, é o problema de uma sociedade. O capitalismo é uma forma social que se sustenta a partir de forças destrutivas. Tinha uma ideia antiga do marxismo, do marxismo vulgar, marxismo tradicional, que ela precisa hoje ser confrontada e criticada, de que o desenvolvimento do capitalismo era ao menos o desenvolvimento de forças produtivas. Observe, o desenvolvimento da tecnologia de autodestruição que se apresenta na guerra, mas não é apenas a tecnologia da guerra, é a tecnologia de produção desse sistema. Ela é um resultado iminente do desenvolvimento dessa sociedade. O capitalismo é o desenvolvimento dessas forças destrutivas. Portanto, é esse o problema que a humanidade precisa enfrentar.

Agora, se a gente convive com esse ambiente de evolução dos armamentos e de produção dos materiais de destruição, ao mesmo tempo fica uma ansiedade de nomear uma possível terceira guerra mundial. A gente está vivendo isso de novo nesse momento. Eu li numa entrevista recente sua, Marildo, essa ideia de como a gente naturalizou a elevação do número de mortes, até pensando em violência urbana, mortes provocadas contra civis ao redor do mundo. Enfim, como a gente convive com isso, essa banalização de uma violência diária, com também uma expectativa de que pode chegar um grande acontecimento, uma terceira guerra de fato.

A ideia de guerra, o que ela vai significar para a sociedade moderna, é uma coisa que tem continuidade com outros tempos históricos e é claro que tem uma mudança de qualidade que a gente não pode nunca perder de vista. O capitalismo nasce no surgimento das armas de fogo. Essa é uma tese muito importante. A tese do Kurtz, que a gente encontra também no Geoffrey Parker, no Werner Sombart, uma tese já trabalhada por vários autores, como Charles Steele, de que as armas de fogo dão origem a uma forma Estado-mercado em que a guerra é essencial. A guerra não é um acaso no capitalismo. Ela é constitutiva dessa forma social. E é uma forma social que, como eu insisti no momento anterior, é uma forma social que ela é cega, porque ela é fetichista.

O que é uma forma social fetichista? É uma forma social que faz as coisas, mas ela não compreende o que faz. Ela faz, mas não sabe por que faz. Isso é uma coisa absolutamente perigosa, principalmente porque você está brincando com fogo. Está brincando com formas destrutivas. Então, veja, essa sociedade que faz, mas não compreende o que faz, e, portanto, ela não tem um limite, ela não tem um freio, ela não para. Ela vai levar a destruição ao seu limite máximo.

Ela fez vários usos possíveis da guerra como parte dessa cegueira e como parte de organização desse sistema de produção de valor, de mercadorias, que é o capitalismo, que é uma forma maluca, tautológica, porque se nós analisarmos o que é o capitalismo ele é uma insanidade, ele é um processo de reprodução ampliada de uma forma abstrata, que é o valor, que é uma abstração. O Marx, quando define valor, ele diz que não tem um átomo de matéria, mas é uma forma objetiva, real. Então a humanidade está articulada de forma insana nesse processo de produção de valor, e a guerra é parte da estruturação deste processo, porque valor é gasto de energia, ele se mede a partir exatamente do gasto de energia da força de trabalho. E esse gasto de energia é generalizado, ele é um conceito amplo da sociedade, ele vai desde a energia que move as máquinas até a energia do trabalho humano e a energia da destruição do planeta. Tudo isso é um gasto imenso de energia.

Então a guerra está na estrutura do sistema capitalista, ela é uma parte inerente a esse gasto destrutivo de energia. Claro que ela tem suas particularidades diferentes da produção de mercadorias, no sentido da produção de valor mesmo. Mas, durante muito tempo, qual era o papel da guerra no capitalismo? Era um papel tipicamente colonial, que era enfrentar regiões que iam da Europa para os outros continentes do mundo, era enfrentar formas sociais ainda não capitalistas, formas sociais que podiam ir desde o leste europeu ou parte do sul da Europa, passando pela África, pela América e por aí afora. Então a guerra, durante esse tempo, ela teve, curiosamente, um caráter que aparecia no pensamento iluminista como um caráter progressista. E o próprio marxismo tradicional, ele bebe nessa fonte. O Marx achava mesmo que a penetração do capitalismo na Índia, as formas de guerra que lá implicavam, elas eram uma desgraça, mas elas tinham um papel progressista. Por meio dessa desgraça se desenvolveu uma sociedade racional, ilustrada e por aí afora.

Esse modelo da guerra, que era o modelo pelo qual o capitalismo se espalha pelo mundo, é a guerra típica do Karl Clausewitz, que é um oficial do exército prussiano que escreve um livro muito importante no século XIX, o Da guerra. A guerra que o Clausewitz analisa é essa, essa guerra napoleônica que vai se expandindo até a Primeira Guerra Mundial. A Primeira Guerra Mundial e a Segunda Guerra Mundial são dois tipos de guerras novas, porque eles vão fazer um corte nessa história, que é quando o capitalismo deixa de ser uma forma social em desenvolvimento, em expansão, que está dando seus grandes saltos para se tornar planetária, para se tornar o que ela é no fim da Segunda Guerra Mundial.

O capitalismo é o que tem de forma de vida, de produção de vida no planeta. Neste momento em que o capitalismo se torna uma forma mundializada, a guerra muda de lugar. Não é por nada que se inicia a Guerra Fria. E a Guerra Fria se inicia produzindo um acúmulo de aparatos destrutivos por via da produção de bombas nucleares, bombas cada vez mais potentes, que é uma coisa assombrosa. Veja, é um outro tipo de guerra já. É uma guerra abertamente de aniquilação total. Ela não é mais apenas essa forma histórica de expansão de um modo de produção. E, junto com isso, a guerra não só se torna uma forma destrutiva do todo, mas ela também vai mudar na vida cotidiana. Porque uma vez que o capitalismo chega a este ponto, ele se torna uma forma mundial, ele começa a viver seus limites.

Este é um ponto importante do tempo do fim do Günter Anders. Mesmo que ele não tenha pensado dessa forma, a gente pode aprofundar essas ideias dele e incorporar essas formas. É um tempo do fim porque é o limite histórico desse sistema, e não apenas porque o tempo histórico dele acabou, é porque a lógica do sistema, historicamente, ela já não tem mais como se expandir. Ela não se expande mais para novas regiões e ela não se expande mais para dentro dela mesma. Nós chegamos a um momento em que a possibilidade de você inovar produtos, inovar processos de produção, eles também chegam a um limite. Pode pensar isso por motivos das novas tecnologias, a gente pode pensar isso em torno da inteligência artificial, a gente pode pensar isso em uma coisa muito cara para o indivíduo que vive na sociedade burguesa, que é o trabalho que era aquilo que fazia com que todos os seres humanos pudessem se mediar socialmente… Isso se torna hoje uma raridade, se torna hoje absolutamente escasso.

Então, na medida em que o capitalismo começa a bater nesses seus limites, esses limites absolutos, ele já não consegue mais esse seu processo de expansão e acumulação, e a destrutividade do cotidiano vai se ampliando, vai se amplificando. A gente pode perceber essa violência no cotidiano por um aspecto muito curioso, que é a violência cotidiana que se apresenta para nós em números cada vez maiores. Nós não temos conceitos para dar conta dela, mas nós vamos, de certo modo, perceber que aquilo que era um rodapé das páginas de jornal, que era a violência criminal, se torna o centro das notícias dos jornais, se torna a manchete do jornal. Então, olha só, eu tendo a pensar no seguinte, para fazer uma síntese disso que eu acabei de falar: que esse aumento da violência cotidiana do capitalismo por um novo tipo de guerra, que é um tipo novo de guerra civil – é uma guerra civil, na apresentação fenomenológica dela –, é uma luta de bandos autonomizados, que autonomizam espaços de território, na disputa de recursos. Em geral recursos que envolvem uma reprodução do dinheiro, obviamente, ou mercadorias que permitem a transformação delas em mais dinheiro, por aí afora.

Mas isso vai se generalizando no mundo inteiro. Você olha para o Oriente Médio, você olha para onde foi um dia a Líbia, você olha para onde foi um dia o Iraque, você olha para onde até ontem foi a Síria, tudo isso é um desmonte que tem essas características. Você olha lá para o ex-União Soviética você encontra isso também, vai lá na Geórgia, na Ucrânia, nossa, a Ucrânia era um Estado falido, nós não podemos nos enganar com a guerra na Ucrânia, a guerra na Ucrânia é parte exatamente deste processo que tem a ver com a luta de bandos, em que tem, evidentemente, do outro lado, um grande gângster, líder de um grande bando, que é o Putin. Mas é o mesmo processo, um processo de dissolução das formas sociais que até hoje caracterizavam o capitalismo, e isso também para nós aqui no Brasil e na América Latina, inclusive na América do Norte.

Este fenômeno mostra que a guerra mudou de lugar, nesses sentidos que eu estou aqui assinalando. Primeiro, o aparato da guerra já não é mais uma guerra no sentido regular do termo, já não é mais uma guerra tradicional, que ela tem um lugar para ser travada, ela tem que ir em frente, dois exércitos lado a lado. A guerra se torna uma destruição generalizada do todo, e aí o aparato nuclear. E no seu ponto de vista do cotidiano, enquanto a bomba ainda não é detonada, enquanto aquele cenário da Anne Jacobson ainda não é o movimento, o nosso cotidiano (já que nós batemos no limite do capitalismo, no limite em que a sociedade já não se expande, já que não está mais em ascensão, já que não pode mais incluir todo mundo como força de trabalho, como produtor e consumidor) vai se reproduzindo como um movimento cada vez mais generalizado de autodestruição. E essa autodestruição a gente pode medir por essa quantidade imensa de corpos mortos que se acumulam. No Brasil são 60 mil por ano, você vai na América Central, El Salvador, Honduras, Guatemala, são quantidades imensas, México e por aí afora.

Então é isso, há uma mudança desse aspecto, essa mudança desse aspecto tem a ver com uma mudança da história do capitalismo, da mudança da forma lógica pela qual o processo de acumulação pode se realizar, e isso é apenas um aprofundamento daquele ponto que eu havia me referido com a bomba de Hiroshima. Nós estamos aprofundando essa nossa capacidade de alta aniquilação.

Para fechar, Marildo, trazer algumas ideias desse texto do Anders, pontos interessantes para jogar para você. Tem duas passagens dos discursos que eu queria citar, primeiro quando ele conta que Hitler, a uma semana de invadir a Polônia, disse que o único medo que ele tinha era de que um “canalha” apresentasse um plano de mediação; depois ele lembra que um estadista alemão, numa manifestação pela paz, vai chamar aquilo de “infantil”. O que esses termos e esses textos dizem a você? Como esse olhar do Anders pode colaborar com o nosso debate atual?

Esses textos do Anders são de fato muito inspiradores. Eu estava lembrando um pouco aquela passagem recente em que a ministra Marina Silva é tratada dessa forma no Congresso do Nacional, quando ela está falando coisas muito básicas, de tentar limitar a destruição da Amazônia. O senador vira para ela, o distinto homem branco, e diz para ela: põe-se no seu lugar. É um pouco isso, põe-se no seu lugar, você é uma mulher negra, você não se mete nesses assuntos. Então é isso mesmo, o poder tem essa característica, ele tem a capacidade de, digamos, não apenas de humilhar o outro, de produzir essas imagens, mas ele tem a característica fundamental, que é não poder ser limitado de nenhuma forma.

Mas voltando aqui um pouco para essas questões, que você lembra aqui das passagens do Anders, se nós olharmos para o conflito que hoje se desenvolve, nós temos aqui um movimento em que a crise do capitalismo está se manifestando para nós por meio de guerras generalizadas. São esses novos tipos de guerra civil, são guerras que vêm por formas de extermínio muito aceleradas, como em Gaza e por aí. Mas se nós pegarmos a Rússia e a Ucrânia, Israel e Irã, e toda aquela região do Oriente Médio, nós observamos isso, são guerras em que o escalar delas elimina qualquer possibilidade de mediação. Porque a mediação era isso, a mediação é “a guerra não faz sentido”, “a guerra é uma loucura”, “a gente não sabe como começa e muito menos quando termina”, essas coisas que a humanidade já podia ter acumulado essa aprendizagem. Mas isso não só não funciona, como se nós pegarmos agora, que foi a entrada dos Estados Unidos na guerra Israel-Irã… Bom, foi uma entrada, para lá de… à la Hitler, né? Ou seja, os Estados Unidos, que se esperava uma mediação responsável, ele entra jogando bombas. Da mesma forma que entrou na guerra do Iraque, a partir de um relatório, de um argumento de sua inteligência, que é falso, que é a denúncia de que esses países tenham armas nucleares, no caso do Irã, ou de aniquilação em massa, químicas, no caso do Iraque. Isso mostra já o estado em que estamos, de calamidade generalizada.

Outro ponto sobre o pacifismo hoje em dia: o que é possível na luta pacifista hoje em dia? O Anders, por exemplo, trabalha com uma posição que acho muito interessante. Ele diz, olha, já construímos esse artefato de aniquilação, não é uma mera bomba, um mero meio, mas a capacidade que a humanidade criou de autodestruir a própria espécie e o planeta. Então o que é pacificar? Apenas não usar esse aparato? Porque se for apenas não usá-lo, uma persuasão do outro para evitar a guerra, então as pessoas vão dar de ombros e vão dizer que as bombas nucleares são necessárias na medida em que impedem que elas mesmas sejam usadas. O que é falso, elas são produzidas para serem usadas, é uma bobagem achar que não serão usadas. Ou seja, não é apenas não usar o aparato, nós temos que desmontar esse aparato.

Agora, desmontar não é apenas decidir acabar com sistemas de bombas nucleares ou a produção de bombas, mas se livrar de uma forma de pensar e viver em que o horizonte da construção dessa bomba foi possível e foi natural. Isso só é possível se nós radicalizarmos uma crítica ao capitalismo, se pensarmos uma possibilidade mais ou menos da seguinte ordem: só existe uma pacificação no atual mundo em que ela implique o abandono de qualquer possibilidade do uso de instrumentos de autoaniquilação ou de aniquilação total do planeta se nós produzirmos uma outra forma de vida social que seja capaz de fato de ser, na sua própria constituição, uma superação de tudo isso.

Então não há como ser pacifista sem ser anticapitalista, isso não é mais possível. O próprio Anders, a análise dele é muito refinada. Se pegarmos desde aqueles textos sobre o Kafka, textos belíssimos, um dos primeiros a escrever sobre ele, a chave ali em que ele vai ler o Kafka é a chave do fetichismo da mercadoria do Marx. O Anders está lá chamando a atenção: o Kafka é um autor num processo pelo qual os seres humanos passam por uma forma coisificada. Eles são reificados. Ou seja, esse fenômeno da reificação, em que os seres humanos se tornam coisas e as coisas adquirem uma forma, uma alma e uma autonomia em relação aos seres humanos, é um fenômeno de uma amplitude impressionante. Você tem consequências, impactos sobre a vida.

Quando ele vai analisar então já o problema da bomba nuclear ele mantém essa mesma perspectiva. Só uma sociedade em que os indivíduos fazem, mas não não sabem por que fazem – essa aqui é uma frase que está lá na seção 4, no capítulo 1, do livro 1 do Capital do Marx, quando ele está discutindo o fetichismo da mercadoria, e que o Anders repete a todo momento… Então veja, nós temos que justamente superar essa forma social em que os seres humanos fazem, mas são incapazes de entender por que fazem isso. Isso é uma mudança radical de visa social, não é apenas um mero pacifismo.

Quando digo mero pacifismo é porque já me deparei em vários momentos… Por exemplo, na luta antinuclear no Brasil. O movimento antinuclear no Brasil é mínimo. Nós temos uma parte da esquerda brasileira que é a favor de usinas nucleares, a favor de bombas nucleares, que acha que esse é o equilíbrio de forças entre os estados nacionais. Então o senso crítico contra esse aparato nuclear ele não vai se desenvolver com a ideia de não usar as armas, que o pacifismo propõe. Precisa ir além. Além de não usar armas e desmontar o aparato, produzir uma sociedade que seja capaz de uma autocrítica em relação a esse tempo histórico em que nós criamos as condições da autoaniquilação da humanidade. Nesse sentido, as ideias do Anders se mantêm muito atuais.

Günther Anders (1902–1992) foi um filósofo, ensaísta e crítico cultural alemão — um dos pensadores mais radicais e originais do século XX — cuja obra antecipou muitas das discussões contemporâneas sobre técnica, destruição e crise da civilização moderna. Seu nome verdadeiro era Günther Stern, e ele foi aluno de Edmund Husserl e Martin Heidegger, além de ter sido casado, por alguns anos, com Hannah Arendt, com quem manteve um diálogo filosófico intenso, embora divergente.

Marildo Menegat (1957) é um filósofo e pensador crítico brasileiro contemporâneo, conhecido por articular a crítica do valor (Wertkritik) e a crítica do valor-dissociação com a análise das formas históricas da barbárie, da destruição ambiental e do colapso da modernização capitalista. Sua obra se distingue por combinar um rigor teórico marxiano com uma sensibilidade histórica e literária muito própria, voltada à compreensão do colapso do capitalismo como forma social total.

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Libertário - professor de história, filosofia e sociologia .
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