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O limiar do inverno em Moscavide-uma Crónica de Silvie Armand

arlindenor pedro
Por arlindenor pedro 6 leitura mínima

 Um bairro às portas do frio, entre a esperança e o medo.

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Há lugares que não precisam de mapas: bastam os sons, os cheiros, o modo como a luz se deita nas janelas. Moscavide é um desses lugares. Entre o rumor do comboio e o silêncio das ruas estreitas, o bairro parece guardar o retrato de um país em mutação.Nesta crónica, Silvie Armand observa Lisboa a partir das margens — do bairro popular que espelha o mundo: o calor das vozes imigrantes, a chegada da crise, a solidão dos cafés, o medo que cresce. É um texto sobre o inverno que ainda não chegou, mas já se anuncia. O frio não é apenas meteorológico, é também moral e social — uma estação interior que se insinua nas conversas, nos gestos e nas pequenas hesitações do cotidiano.Entre o desencanto e a esperança, Moscavide surge como um microcosmo da Europa contemporânea — um território de sobrevivências, onde o olhar ainda procura beleza, mesmo quando o mundo parece prestes a esfriar.

o olhar da cronista

O frio que chega nas noites anuncia que Moscavide gradualmente vai se preparando para mais um inverno. As tardes se encurtam, e a cidade aprende novamente a andar em silêncio, despedindo-se do verão. Do meu quarto vejo as janelas ganharem luz uma a uma, como se o bairro tentasse iluminar a própria solidão.

No café da esquina, o senhor Joaquim resmunga sobre o preço do gás. A Dona Amélia diz que o pão vai aumentar outra vez. Os rostos se tornaram mais sérios, as conversas mais curtas. A crise não é um tema, é um clima. Está no modo como as pessoas contam as moedas, na hesitação antes de pedir o café, no olhar que se desvia para o chão.

Hoje à tarde, dois jovens passaram correndo pela rua. Um deles segurava uma mochila. O outro ria, mas não era riso de alegria. A polícia veio pouco depois, perguntando se alguém viu o furto. Ninguém viu nada. O roubo já não choca, somente confirma o que todos pressentem: o país está a mudar.

Como em toda Europa, o bairro sente um clima de incerteza. A guerra está a caminho? É impossível disfarçar o sentimento de insegurança. Moscavide vive esse torpor, uma espécie de espera. As vitrines cheias parecem disfarçar o vazio de quem passa. Portugal, tão habituado à modéstia, talvez não saiba lidar com o medo.

Nos jornais, a palavra imigrante aparece cada vez mais. O país, que antes se orgulhava de acolher, começa a desconfiar. Não dá para evitar o assunto: afinal, eles são muitos e visíveis. A voz da extrema-direita torna-se cada vez mais estridente e ressentida. Moscavide sente isso nas esquinas, nos olhares que endurecem, nas piadas mal contadas.

No mercado, a mistura de vozes é contínua. Escuto bengali, crioulo, árabe, português com sotaques vários. Cada língua traz um pedaço do mundo, um esforço de permanência. O bairro tornou-se uma colcha de retalhos, costurada com trabalho e saudade. Fica visível que os imigrantes mantêm tudo em movimento. Moscavide respira em muitas línguas.

A profusão de etnias nos lembra que a crise chegou. Ela vem da periferia para o centro, como num tsunami. Os tempos de bonança do bem-estar social passaram. Mas percebo nos portugueses uma forma discreta de otimismo. Afinal, talvez se resista a isto tudo. Ficamos fora da Segunda Guerra, me disse sorrindo o senhor Joaquim.

Passo diante da escola onde pintaram o mural de uma menina de tranças olhando para o Tejo. Não vejo o rio daqui, mas o sinto presente. Olho para ela e sinto um ar de esperança, visível nos olhos da menina de tranças que parece saltar do mural.

À noite, o bairro dorme cedo. Escuto o som do comboio e o eco distante da cidade. Penso que escrever é um modo de resistir, uma forma de registrar o que se esvai. Moscavide ensina que a vida é feita de restos, de gestos pequenos, de gente que não desiste. No fim talvez seja isso o que mais importa: continuar a ver beleza mesmo quando o mundo se apaga devagar.

— Silvie Armand, Moscavide, outono, em Lisboa.

Silvie Armand é escritora e agente cultural. Vive entre Lisboa e Paris, onde investiga as formas silenciosas da resistência — na arte, na linguagem e no cotidiano. A sua escrita parte das margens: bairros periféricos, cafés anônimos, rostos sem nome. Adora ouvir atentamente a cidade,seus personagens e as suas diversas visões de mundo.

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Libertário - professor de história, filosofia e sociologia .
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