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O roubo do Louvre e o meu pai-uma crônica de Silvie Armand

arlindenor pedro
Por arlindenor pedro 5 leitura mínima

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Nesta crônica, Silvie Armand nos conduz a uma Paris outonal, onde o brilho discreto das luzes contrasta com a sombra das perdas. Entre o hospital do pai e o eco distante do roubo no Louvre, a narradora entrelaça o íntimo e o histórico, o amor e a ausência. Cada objeto furtado, cada pedra preciosa desaparecida, reflete o esvaziamento do tempo e da memória. Com lirismo contido e ritmo sussurrado, Silvie transforma o cotidiano em meditação poética sobre o que se perde — e o que, mesmo perdido, continua a brilhar. Uma escrita que respira melancolia e beleza em igual medida.

o pulsar de Paris

Cheguei a Paris num voo arrastado, desses que parecem atravessar não o céu, mas o tempo. De Moscavide trouxe a mala leve e o coração cheio. O pai me esperava doente, dissolvendo-se devagar como uma fotografia antiga esquecida ao sol. No metrô, a paisagem passava como um filme gasto, e eu via em cada janela o rosto dele, jovem ainda, chamando meu nome. O outono me recebeu com aquele frio úmido que parece respirar pela cidade inteira.

No hospital, o ar tem cheiro de metal e silêncio. Há máquinas que piscam em intervalos exatos, como se marcassem o compasso da despedida. Eu o olho dormir, e ele me parece frágil como uma folha prestes a cair. As mãos dele, outrora firmes, agora se abrem sem força, pedindo apenas leveza. Fico ali, imóvel, aprendendo o peso do amor quando já não há nada que segure.

No jornal da manhã, o título me cortou como vidro. Roubo no Louvre. E logo me veio a imagem da pedra de Josefina, o topázio mel que Napoleão lhe dera. Dizem que ela mudava de cor conforme o humor da imperatriz, como se sentisse o sangue por dentro. Será que foi roubada?As notícias ainda são confusas. Varias joias foram levadas!A beleza furtada parecia ecoar o mesmo esvaziamento que eu sentia no peito.

Pensei no ladrão. Talvez quisesse apenas tocar o intocável, sentir o calor das coisas que guardam o sopro do passado. Há quem roube por desejo, há quem roube por fé. O museu, afinal, é um templo de ressurreições, onde cada peça vive por empréstimo da memória. Quando uma some, não é só o objeto que desaparece, mas a história que o sustenta. É como se alguém apagasse uma vela em meio à eternidade.

Lembro de quando visitei o Louvre pela primeira vez, ainda estudante, com o bolso vazio e os olhos cheios. Não fui pela Gioconda, mas pelos pequenos milagres: o anel de uma rainha esquecida, o retrato inacabado de um menino, uma pena antiga dormindo dentro do vidro. Foi ali que vi o topázio da Josefina.Tudo parecia respirar comigo, como se me reconhecesse. Saí de lá leve, como quem recebe um segredo e promete guardá-lo.

Hoje, o museu ferido me espelha. Também eu perco o que amo, também eu me torno vitrine do que já foi. A cada respiração do pai, sinto o tempo retirando uma peça de mim. Ele dorme, e eu me torno guardiã de um acervo invisível, feito de vozes e lembranças. Há perdas que doem com nobreza, como se tivessem sido esculpidas em mármore.

Quando anoitece, abro a janela do pequeno quarto do hotel e deixo Paris entrar. A cidade brilha com uma melancolia que me reconhece pelo nome. O ar é frio e doce, cheira a chuva e promessa. Penso na pedra de Josefina e no coração do meu pai, ambos pulsando em lugares desconhecidos. Talvez seja isso que chamamos de beleza: aquilo que ainda brilha mesmo depois de roubado.Será que levaram o topázio?

Paris, outubro de 2025

Silvie Armand

Silvie Armand é poeta, ensaísta e cronista, transita entre jornalismo cultural e escrita experimental, unindo crítica e criação.
Atualmente vive em Lisboa e é correspondente do Blogue Utopias Pós Capitalistas-Ensaios e Textos Libertários

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Libertário - professor de história, filosofia e sociologia .
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