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Em “As Cores de Adrien”, Silvie Armand está ainda no apartamento do pai em Montmartre, agora transformado em espaço de memória e criação. Ao lado dos amigos Adrien e Malek, ela presencia um diálogo entre arte e culpa, entre a França e suas feridas. Adrien tenta redimir o passado pintando; Malek o confronta com a lembrança da Guerra da Argélia, “obra-prima do espírito bárbaro do capital”.

Na manhã seguinte, a luz de Montmartre entrou pelas frestas das cortinas e tocou os livros empoeirados. O apartamento parecia mais claro, mas não menos vazio. Eu havia passado a noite ali, em meio ao cheiro de tinta antiga e silêncio. Ouvi passos no corredor. Era Adrien, trazendo uma mochila e um pequeno estojo de tintas.
Disse que não suportava ver o apartamento assim, suspenso entre o tempo e o nada. “É preciso devolver cor ao que ficou cinza”, murmurou, abrindo os tubos sobre a mesa. As tintas, expostas à luz, pareciam pequenas feridas abertas. Ele moveu as mãos com precisão, preparando a paleta. Cada gesto seu era uma forma de recusa — como se pintar fosse impedir a morte de se instalar de vez.
Observei-o trabalhar. Escolheu o canto junto à janela, onde a luz caía oblíqua. Começou a pintar o casaco do meu pai pendurado na cadeira. Um objeto banal, transformado em relíquia. A cada pincelada, ele parecia se libertar de algo. Eu via em Adrien uma luta muda: o artista tentando salvar o que o tempo insiste em apagar.
Em certo momento, ele parou. Ficou olhando a tela, depois para mim. “Sinto vergonha”, disse, quase num sussurro. “Vergonha de pertencer a um país que aprendeu a dourar as ruínas. Meu pai pintou tanques no deserto da Argélia e chamou isso de missão. Eu pinto o vazio e chamo de arte. Talvez não haja diferença.”
As palavras caíram entre nós como cinzas. Fiquei em silêncio. Malek, que chegara há pouco, encostou-se à parede. “A diferença, Adrien, é que tu pintas para lembrar. Ele pintou para esquecer.” Fez uma pausa breve e acrescentou, com voz firme:
“A Guerra da Argélia é uma obra-prima do espírito bárbaro do colonialismo francês. Ali o capital se apresentou sem máscaras. O horror que jamais será esquecido.”
Adrien o encarou por um instante. Vi no seu olhar algo entre raiva e rendição. Passou a mão pelos cabelos, manchando-os de tinta, e respondeu num tom baixo: “Eu sei, Malek. E é por isso que pinto. Cada traço é uma tentativa de pedir desculpa pelo que o meu país fez ao teu. Mas desculpas não bastam. A arte é um remorso que nunca seca.”
O silêncio que se seguiu tinha peso de confissão. O apartamento cheirava a terebintina e memória. Senti que ali, entre a culpa e o exílio, algo estava sendo purificado — não pela absolvição, mas pelo reconhecimento.
Sentei-me perto da tela. A pintura tomava forma: o casaco, a cadeira, a luz de inverno, um traço de sombra. Havia algo de humano naquela tentativa de reconstrução. O vazio já não era só ausência — era resistência. Pensei em meu pai, em Adrien, em todos os que tentam criar beleza mesmo quando o mundo desaba.
A luz começou a mudar. O amarelo da manhã cedeu lugar ao cinza do entardecer. Adrien lavou os pincéis em silêncio, com um cuidado ritual. Ficamos os três diante da tela ainda úmida, sem saber o que dizer. O apartamento parecia menos morto, como se respirasse outra vez.
Antes de sair, Adrien tocou meu ombro. “A arte não consola”, disse. “Mas às vezes impede que a dor apodreça.”
Olhei para a tela — o casaco do meu pai agora flutuava num fundo azul suave, quase leve. Pela primeira vez, senti que o luto também podia ter cor.
Paris, inverno de 2025.
Silvie Armand

Silvie Armand é poeta, ensaísta e cronista, transita entre jornalismo cultural e escrita experimental, unindo crítica e criação.
Atualmente vive em Lisboa e é correspondente do Blogue Utopias Pós Capitalistas-Ensaios e Textos Libertários
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