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Em “O Rio e Sara ”, sua mais recente crônica, Silvie Armand chega ao Porto para passar o Natal entre amigos e encontra, à beira do Douro, uma história que atravessa fronteiras e tempos: a dor de uma perda causada pelo ódio antissemita. Entre a beleza da cidade, a intimidade do convívio e o peso das notícias do mundo, a crônica reflete sobre memória, violência e a repetição trágica da história. Com sua escrita contida e sensível, Silvie transforma o encontro em vigília e o Natal em exercício de escuta. Uma meditação sobre luto, responsabilidade e a frágil insistência da esperança.

O trem chegou ao Porto ao cair da tarde. A cidade parecia envolta numa névoa dourada que misturava frio e promessa. O Douro, visto da janela, refletia um céu cinzento e pesado, como se carregasse em si todas as histórias que o tempo não quis esquecer. Fernand e Maria José me esperavam na Estação de São Bento com os rostos aquecidos por uma alegria calma. Envolvida pela beleza dos ladrilhos da estação, caminhei até eles. O Natal se aproximava, e a cidade exalava aquele perfume antigo de castanhas, vinho e melancolia. Como em outros anos, ficaria com eles no Natal que se aproximava.
O apartamento deles, voltado para o rio e para as casas da Ribeira, era um refúgio. As luzes piscavam nas janelas e o vento trazia o som distante das igrejas. Ali dentro, o calor do fogão e o riso dos amigos faziam esquecer, por um instante, o mundo lá fora. Fernand era um médico canadense que conhecera Maria José em uma viagem de férias ao Porto e se encantara, como eu, com Portugal. Maria, minha amiga de muitos anos, se apaixonou por ele e ali ficaram. Dividiam juntos a vida. Falávamos sobre isto, riamos muito relembrando o passado. Até que chegou Sara.
Sara tinha um olhar sereno, mas de uma serenidade que nasce da dor. Falava baixo, medindo as palavras, como quem teme que elas se quebrem no ar. Só após algum tempo soube que perdera a irmã no atentado contra judeus em Sydney. As notícias correram o mundo, mas ouvir a tragédia contada pela voz de alguém que a viveu foi como sentir o frio atravessar o corpo. Sara não chorava; narrava. Disse que a irmã era professora, que amava música e que usava um colar com uma estrela de Davi desde criança. “Não era religiosa”, contou. “Era somente memória.”
O silêncio que se seguiu pesou mais do que qualquer palavra. A conversa mudou de tom. Olhei pela janela e vi as luzes refletidas no Douro, tremendo como se também sentissem frio. Pensei no que Sara dissera — e em como o ódio parece sempre encontrar um novo disfarce. O antissemitismo, pensei, não pereceu em Auschwitz; somente aprendeu novas linguagens. Agora veste o discurso político, o ressentimento de redes sociais, o silêncio cúmplice de quem escolhe não ver.
E, também sei haver feridas que se tocam de ambos os lados. O sofrimento do povo judeu é antigo, incontornável, mas a política sionista do Estado de Israel, ao longo das últimas décadas, também semeou rancor — uma mistura de medo e arrogância que transforma vítimas em algozes e que alimenta a espiral de ódio. O mundo, exausto de compreender nuances, prefere escolher culpados. Assim, o antissemitismo cresce sob o disfarce da indignação política, e o horror recomeça, com outros rostos, nas mesmas ruínas.
Sara continuava falando, nos relatando os fatos, e a noite caía devagar. Fernand serviu vinho do Porto, Maria José acendeu velas. A conversa se transformou em lamento coletivo — não somente pela irmã de Sara, mas por todos os mortos que o século ainda insiste em reclamar. Do lado de fora, ouviam-se os sinos das igrejas chamando para a missa de véspera do Natal. Dentro de mim, outro sino soava: o da impotência diante de um mundo que parece repetir as suas lições mais cruéis.
Aproximei-me da janela e fiquei observando o rio. O Douro corria manso, carregando nas águas o reflexo das luzes da cidade. Pensei que talvez a humanidade se parecesse com ele: sempre em movimento, mas sempre a passar pelos mesmos lugares. Sara se levantou e veio até mim, na janela. Percebi lágrimas no canto de seus olhos. Ficamos lado a lado, sem falar. Do alto, a cidade parecia uma constelação caída sobre a terra.
Há algo de sagrado no instante em que o silêncio une o que as palavras não alcançam. Ali, diante do rio, compreendi que a esperança — mesmo ferida — ainda resiste nos gestos pequenos: na escuta, na partilha, na recusa de odiar. Talvez o futuro dependa disso — de aprender, enfim, a não transformar a dor em bandeira.
O vento subiu do Douro trazendo o cheiro do frio e do vinho. Maria José chamou da cozinha. As luzes do apartamento tremulavam como se o Natal, que se aproximava, hesitasse em entrar. E eu pensei, com uma ternura amarga, que talvez o Natal só faça sentido quando lembramos os que já não podem celebrá-lo.
Porto, dezembro de 2025.
Silvie Armand

Silvie Armand é poeta, ensaísta e cronista, transita entre jornalismo cultural e escrita experimental, unindo crítica e criação.
Atualmente vive em Lisboa e é correspondente do Blogue Utopias Pós Capitalistas-Ensaios e Textos Libertários
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