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A Caverna dos Sonhos Esquecidos – Arlindenor Pedro

arlindenor pedro
Por arlindenor pedro 14 leitura mínima

Na instigante entrevista que deu ao jornalista Bill Moyers ( divulgada em vídeo no Brasil em 1988, ) Joseph Campbell relata que ficou muito emocionado quando ele e sua mulher visitaram a caverna de Lascaux , no sudoeste francês e interagiram com as imagens dos artistas do paleolítico que deixaram imortalizadas suas obras de arte nas profundezas das grutas, nas suas paredes.

Antes tinham visitado as catedrais medievais do interior da Europa, e ele então aproveitou para fazer um paralelo entre os objetivos que motivaram os artistas que criaram os belos vitrais dessas igrejas e as imagens que encontrou dos pintores rupestres.

O ambiente criado por essas figuras não cumpririam as mesmas funções? Não seriam locais de adoração aos deuses, onde os reflexos do mundo real seriam afastados e as mentes poderiam ser tocadas pelas imagens, levando o observador para o mundo do oculto, do irreal, do fantástico- o mundo dos espíritos?

Levados pelos xamãs, assim descreveu Campbell, os jovens que se iniciariam na caça desciam as profundezas da caverna e ali, em plena escuridão, que só desparecia com as luzes dos archotes, desenvolviam cerimonias de contato com os espíritos presentes nos animais que iriam abater mais tarde.

As figuras desses animais, dispostas ao longo das paredes, aproveitando as protuberâncias das pedras, numa postura de movimento, iluminadas pelo fogo, tomam então vida, e como num filme, saltam aos olhos. Ao som de musicas ritual e fumaças de ervas inebriantes, chega-se então ao êxtase e ao desprendimento do mundo lá de fora-o rito de passagem muito presente nas sociedades primitivas.

Campbell deduz, então, que esta é a razão de que essas obras, feitas pelos homens do paleolítico, se encontram, invariavelmente no fundo das cavernas, aonde não existe luz e o som do exterior. Isto é, sem a interferência do mundo real.

Tais cerimonias tornam-se incompreensíveis para nós – cidadãos das polis contemporâneas. Mas, são plenamente aceitáveis e necessárias num mundo onde se articulam os conceitos de fluidez (onde é possível uma parede falar, um animal se manifestar, um homem se transformar em uma árvore, etc.) e de permeabilidade (onde não existem barreiras entre o mundo dos espíritos e o nosso mundo, o chamado mundo real). Dessa forma, no seu êxtase, o xamã se eleva ao mundo dos espíritos e leva com ele os participantes do cerimonial.

O cineasta alemão Werner Herzog também viveu essa experiência do que nos fala Campbell. Mas, desta vez em outra caverna, a caverna de Chouvet, próximo ao rio Ardèche, no sul da França.

Esta caverna foi descoberta pelo cientista Jean-Marie Chouvet (de onde vem o nome da caverna) acompanhado dos cientistas Cristian Hillaire e Elliete Brunel, em 1994, três dias antes do Natal.

Eles estavam à procura de uma corrente de ar indicativa da presença de cavernas e toparam com uma fenda em um grande rochedo que os levou a uma das maiores descobertas cientificas de todos os tempos: uma grandiosa caverna, com cerca de 400 metros de extensão, aprofundando- se terra adentro. No seu fundo depara-se com majestosos painéis, com inúmeras pinturas, praticamente intactas, com cerca de 30 mil anos de existência.

Devido ao fato de que há algumas dezenas de milhares de anos ter ocorrido um deslizamento que tampou toda a entrada desta caverna, ela manteve-se intocada, transformando-se numa verdadeira cápsula do tempo, com a história congelada em um momento.

Herzog, ciente desta descoberta e do seu valor para a humanidade, desenvolveu um processo de negociação com o Ministério da Cultura da França conseguindo, então, o feito de ser o único cineasta que conseguiu mostrar imagens da Caverna de Chouvet, produzindo um documentário que tem um inestimável papel para o debate da formação da cultura humana e do papel dos mitos na nossa existência. Ele deu o nome ao documentário de “A Caverna dos Sonhos  Esquecidos ”, que exemplifica bem a sua visão do que viu e queria mostrar.

O governo francês, já experiente com os problemas que surgiram em Lascaux, que teve que ser fechada devido ao mofo que surgiu nas paredes, motivado pela respiração dos turistas, montou uma política de quase total restrição de acesso ao sítio. Sua entrada está lacrada com uma porta, que lembra a porta de um banco, e a permanência no seu interior é monitorada, restringindo-se a um pequeno tempo.

Desta forma, o tempo de Herzog e sua pequena equipe, foi restringido ao máximo, e ele só conseguiu a licença de filmagem no interior da caverna pelo prestígio que desfruta junto aos franceses, e ao tornar o filme disponível ao público francês como elemento cultural, sem fins comerciais.

Temos então um filme muito bem acabado, escrito, dirigido e narrado por ele, com imagens em 3D, o que dá a esta obra um caráter espetacular, que merece ser visto. Destacam-se nele a fotografia, a música inquietante do violoncelo do compositor Ernest Reijseger, além do texto recitado pelo diretor, que nos leva a profundas reflexões.

Uma obra que foge ao clichê dos documentários científicos, possuindo a chancela característica de um dos cineastas mais criativos do cinema contemporâneo, que sempre encarou o seu oficio de forma intuitiva e como parte da sua própria existência, nos legando uma obra extensa, onde a realidade funde-se com a ficção.

Participante do movimento do Cinema Novo Alemão e influenciado pela Nouvelle Vague francesa e do Cinema Novo do Brasil, amigo e admirador de cineastas e artistas brasileiros, como Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha, Milton Nascimento, e outros, Werner Herzog produziu grandes clássicos do cinema pós-guerra, filmando várias obras na América do Sul.

O público brasileiro certamente conhece os filmes de 1972 “Aquire – A Cólera dos Deuses ( que retrata a natureza humana submetida a um processo limite de tensão que leva ao caos e a um total descolamento com a realidade ) e o de 1982, Fitzcarraldo ( onde é vivida a determinação de um alemão que move um barco por sobre uma montanha na busca de concretizar a utopia de ver sua opera encenada em plena Amazônia).

Ambos os filmes têm um elenco grandioso, com elementos estéticos inesquecíveis, onde, sem dúvidas, se destaca o polêmico ator Klaus Kinski, amigo-inimigo de Herzog. Filmes com a marca registrada do diretor, inclusive com o seu humor ácido e desconcertante nas falas de alguns personagens.

Em determinado momento do documentário, com a câmera acompanhando as sobras e luzes que emanam das figuras postas nos murais, um dos cientistas pede aos visitantes um silêncio total, para que o som da caverna se destaque. Nessa hora, chegamos a escutar o bater do coração dos visitantes. Herzog propõe então a seguinte questão: ¨será o som dos nossos corações o que escutamos, ou será o dos artistas que pintaram nessa caverna? Será que seremos capazes de compreender a visão dos artistas através desse abismo de tempo?¨.

A câmera sai então da caverna e ao som da musica incidental, nas imagens em 3D, tomamos contato com o entorno, com a exuberância do vale do rio Ardèche, e para um pórtico de pedra chamado Ponto D’Arc . Herzog diz: “há certa áurea de melodrama nesta paisagem (o rio, o marco, as árvores), retirada de uma ópera de Wagner ou de uma pintura do romantismo alemão.

Seria essa a nossa ligação com eles? Esta representação da paisagem como um evento operístico não pertence apenas ao romantismo: os homens da idade da pedra podiam ter tido a mesma percepção ao retratar essa paisagem.”

Esta é também a minha opinião.

Fica claro, é plenamente perceptível, que perdemos nos dias de hoje esta integração com a totalidade do cosmos, com a natureza. Somos seres dissociados da totalidade, vivendo uma vida partida que se contrapõe ao mundo natural. Na escalada da nossa história, na busca do conhecimento, do esclarecimento, fomos nos afastando do mundo mágico das incursões fantásticas de nossos ancestrais, tornando-nos escravos dos ditames da ciência. Para nós, torna-se ridículo qualquer movimento nesta área, pois as tachamos próprias de sociedades primitivas e sem cultura.

Observando-se tais tais murais, a elegância contida nos cavalos e demais animais da Caverna de Chouvet, percebemos que existe um artista em cada um de nós, em cada ser humano.

Mas, como exercer essa arte num mundo tomado pela mercadoria? Como é possível integrar-se à passagem, se todas as nossas ações foram tomadas pela economia, que controla o nosso tempo e a nossa alma?

Associamos a arte ao dinheiro e ao valor no mercado. Isto se faz com a pintura, a música, o cinema, enfim, com a tudo o que possa pertencer à “indústria cultural”.

Herzog associa a arte das cavernas a movimentos grandiosos, tais como o que nos deu Schiller e Goethe.

E ele tem razão, pois a manifestação artística está associada ao mundo em que ela foi gerada. Um movimento, como o romantismo alemão, é um momento único e se deu quando almas sensíveis fizeram aflorar a sua arte a despeito das amarras sociais, avançando para um novo tempo. A percepção do ambiente estava tanto presente para os artistas alemães como para os artistas do paleolítico.

Acredito que na atualidade, com a força que tem a mercadoria e o dinheiro, que se divide o homem da natureza e o impede de ter com ela uma relação direta, isto está cada dia mais difícil de ocorrer. Dai então, a atual crise do processo criativo onde se vaticina a morte da arte.

Platão nos propõe que saiamos da caverna para conhecer a realidade, onde está a luz do sol. Mas, através das palavras de Sócrates, nos diz que somos como um rebanho de carneiros que precisam de um pastor para sobreviver. E nos diz, então, que o pastor (aquele que sabe) é quem deve conduzir as nossas vidas.

Sairíamos da caverna, porém veríamos os dias com os olhos dos outros ( como fazemos no dia-a-dia com os especialistas nos meios de comunicação, que nos explicam o que ocorreu e o que ocorrerá ), acentuando a nossa postura de contemplação no mundo.

Ao contrário, acredito que devamos voltar à caverna, e pelas mãos do xamã (nesse caso o artista) devamos experimentar o êxtase diretamente, vivendo a sensação da inter-relação com a natureza e seus elementos míticos – como os jovens caçadores, dos quais nos falou Joseph Campbell. A forma de escaparmos da intermediação do mercado e do dinheiro ( que se coloca entre o homem e a natureza) é chegarmos a uma relação direta com o cosmos e experimentarmos nossas emoções num processo direto de vida-vivida.

Afinal, cada sensação na relação com o mundo é única, pois certamente cada jovem caçador reagia à sua maneira aos estímulos dos espíritos da caverna.

Serra da Mantiqueira, junho de 2012.
Arlindenor Pedro 

Asistam ao trailer do filme

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Libertário - professor de história, filosofia e sociologia .
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