Marcello Cerqueira
No Górgias, Platão faz Sócrates dizer que a “retórica é a culinária da filosofia”. Com tal, o filósofo não desconsiderava o alimento e nem esbeltos rapazes, era apenas peripatético.
Talvez pretendesse dizer que quando determinada lógica se afasta da realidade, então o logicista (que tem o conhecimento do verdadeiro, não sei se ontológico ou gnosiológico) preenche o buraco com a retórica.
Na sequência dos atos espontâneos que sacudiram (e ainda sacodem) o país, e mal refeita da surpresa, a presidente da República (escarafunchei inutilmente a Constituição Federal para ver se encontrava algum dispositivo que permitisse chamar a chefe da Nação de “presidenta”. Inútil a pesquisa: o gênero é comum de dois) corre a ouvir o marqueteiro, que certamente recomenda o protagonismo de atos políticos, importando pouco se factoides ou não.
E surge a ideia da “constituinte exclusiva” para uma pretendida reforma política. De logo, rejeitada pela impossibilidade de infiltrar na dogmática constitucional brasileira um poder paralelo ao Congresso. A característica das “constituições rígidas” é que elas só podem ser modificadas de acordo com o que elas estabelecem. Assim, qualquer modificação constitucional deve obedecer ao rito próprio da “emenda constitucional”, com o quorum apertado de aprovação por 3/5 de cada Casa do Congresso em duas votações permissivas.
Não dando, que tal o “plebiscito”? De logo, como é competência exclusiva do Congresso Nacional a convocação de plebiscito, o governo socorreu-se do que chamou de “mensagem”, também inapropriada: foi mais uma “carta de intenções”. Mas também esbarrava em dificuldades insuperáveis. De regra, o plebiscito indaga do eleitor (poder constituinte permanente e não “derivado” ou “constituído” como o que detém o Congresso Nacional) sobre matéria de lei ordinária ou administrativa, exclusivamente.
Com efeito, determinada corrente do pensamento jurídico entende que em se tratando de plebiscito que implique reforma constitucional, sua convocação obedecerá ao rito da modificação que pretende. De qualquer sorte, a corrente democrática do Direito tem muita resistência ao plebiscito cesarista (Hitler assim anexou a Áustria). A Constituição Federal de 1946 foi mais sábia ao restringir o plebiscito à divisão de estados e municípios (especificamente de membramento e desmembramento de entes da federação).
O Professor José Afonso da Silva, ícone do pensamento democrático do direito constitucional, em seu festejado Comentário Contextual à Constituição (Malheiros, 2005, p. 223), ensina:
“(…) Esse prazo [30 dias a contar da promulgação do ato] é indicado no art. 11 da Lei 9.709/1998. Por ele se vê que, embora o art. 2º da lei fale em plebiscito e referendo também em matéria constitucional, o certo é que ficou restrito à apreciação de lei ou medida administrativa, perdendo-se a oportunidade de se avançar também nessa direção” [modificação de dispositivo constitucional].
O mestre gostaria que o plebiscito tivesse maior alcance, mas parece sequer admitir a convocação sobre matéria constitucional, ainda se observado o quorum de 3/5. A Constituição rígida só pode ser modificada na forma estabelecida por ela, reitere-se.
Além do mais, de regra, a indagação plebiscitária é binária (e simples). Pergunta-se ao eleitor: República ou monarquia? Presidencialismo ou parlamentarismo? Contra ou a favor de armas.
É impossível plebiscitar uma questão complexa, por exemplo, o tal do “voto distrital”, como pretendia a “mensagem-carta”. Os Tribunais Eleitorais reunidos com a presidente do TSE demonstraram a “dificuldade” (na verdade a “impossibilidade”) de realizar o plebiscito. E lá foi a proposta para a gaveta e substituída por “Reforma Constitucional” a ser submetida ao eleitorado juntamente com as próximas eleições e para ter vigência, se aprovada, nas eleições de 2016. É razoável, embora antigo parlamentar, o escrevinhador destas notas, duvide que o Congresso aprove substancial reforma eleitoral. Não aprovará.
Considerando que os governos anteriores nada fizeram pelos transportes urbanos, agora chamados de mobilidade social, a não ser no final do governo Lula e no “meu” governo, como declarou, enfática, a presidente da República.
Então, com o início das vultosas aplicações dos últimos anos, a população “descobriu” que era dever do Estado prover a melhoria do transporte urbano. Com a descoberta, pensou: bom, se é assim, então vamos cobrar mais – o que naturalmente antes não cogitavam, já que jamais houve aplicação de recursos na área. E passaram a cobrar país em fora. Nem sempre nos trilhos corretos, já que falamos de transporte.
E se foi a democracia que permitiu tal descoberta, logo é preciso mais democracia, embora ela não se expresse sempre como devera, especialmente quando vaia as zelosas autoridades.
Foi o que ouvi do discurso da presidente na cidade de Fortaleza.
O buraco foi preenchido pela “retórica”, e confirmou o Sócrates, não sei se o saudoso jogador ou o filósofo e nem em que ordem.
E já saindo do terreno arenoso da retórica, tenho que foi dada recomendação aos estados-maiores para que organizem “planos de contingência” para eventualmente, e se necessário, preservar a ordem. Ensaiam com o Papa.
E liberada foi a PM do Rio pra dar porrada a valer!
*Marcello Cerqueira, advogado, estudou no Ginásio Nova Friburgo da Fundação Getúlio Vargas. É cidadão friburguense. 18.07.2013
É prazeroso ler um texto de Marcelo Cerqueira; ele consegue escrever sobre temas técnico e áridos, na área do Direito, com simplicidade de um cronista de jornal.
Marcello é um pensador e defensor da democracia …