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A Nova Crítica do Valor em debate

arlindenor pedro
Por arlindenor pedro 66 leitura mínima

Publicado na Revista Sinal de Menos – 11/parte 2 

SOBRE O LIMITE ABSOLUTO DO CAPITAL

Um texto de Daniel Feldeman 

Publicado na Revista Sinal de Menos – 11/parte 2


1- Apresentação de uma hipótese teórica 

O texto que ora apresentamos é de caráter eminentemente especulativo. Em nossa investigação, a hipótese que queremos esmiuçar seria a de que o capitalismo estaria vivendo em uma era de limite absoluto – e portanto não meramente relativo e passageiro. Tal limite se expressaria no fato de que com o desenvolvimento das forças produtivas contemporâneas – aquilo que muitos chamam de a Terceira Revolução Industrial baseada na informática e na robótica – teria sido estabelecido um padrão estrutural de produção que torna cada vez mais o trabalho vivo redundante para a produção de riqueza. Nesse novo “capitalismo cognitivo” – para usar uma expressão em voga – seriam os poderes, informações e conhecimentos acumulados da ciência e da tecnologia cada vez mais os verdadeiros responsáveis pela riqueza material, cabendo ao esforço laboral humano um papel cada vez menor.

Para ilustrar tal hipótese, podemos exemplificar como nos dias de hoje em certos casos a retirada de cena do trabalho humano chega às raias do paroxismo. Um exemplo extremo, mas bastante emblemático deste novo paradigma produtivo, seriam as impressoras 3D. A utilização deste instrumento – ainda embrionário e em desenvolvimento – que permite a produção de virtualmente qualquer objeto sem a utilização de operários desvela todo um conjunto de potenciais e revolucionárias transformações futuras na organização da produção cujos resultados efetivos podemos somente imaginar no presente. Recentemente, na China, um bloco de apartamentos foi construído com tal tecnologia, fato que por si só deve chamar atenção, ainda mais se considerarmos que a construção civil é um dos setores da economia em que a utilização de trabalho vivo costuma ser bastante importante.

Entretanto e de forma contraditória, tal feito grandioso da economia capitalista seria o prenúncio de seu próprio fim. Pois se partimos aqui da premissa mais básica de que capital é a “valorização do valor” sem fim, e que essa valorização para se efetivar necessita da incorporação de trabalho humano como seu pressuposto, estaríamos então diante de uma crise estrutural muito mais profunda e grave do que as inúmeras crises cíclicas que marcam a história do capitalismo. Esta é justamente a tese de autores alemães que se organizam em torno da revista Exit! que tem em Robert Kurz (falecido em 2012) o seu teórico mais conhecido e da revista Krisis da qual participam Ernst Trenkle e Norbert Lohoff. A grande contradição de nosso tempo dentro de tal marco teórico não seria portanto aquela mais conhecida e amplamente difundida pelo marxismo tradicional que enfatiza a luta de classes como motor da história e a disputa pelo excedente econômico entre capitalistas e trabalhadores como a questão econômica fulcral. Para a Exit! Krisis não se trataria de buscar uma efetiva transformação social do ponto de vista do trabalho – como tem sido a tradição entre os marxistas – mas sim uma transformação contra o trabalho. O que importa para nós, nos limites deste texto, é mostrar que para estes autores alemães estaríamos efetivamente vivendo hoje aquilo que Marx nos Grundrisse apontava como possibilidade ainda em germe:


“Nesta transformação o que aparece como o pilar fundamental da produção e da riqueza não é nem o trabalho imediato executado pelo homem nem o tempo que este trabalha, mas sim a apropriação de sua própria força produtiva geral, sua compreensão da natureza e seu domínio da mesma graças à sua existência como corpo social; numa palavra, o desenvolvimento do indivíduo social. O roubo de tempo de trabalho alheio sobre o qual se funda a riqueza atual, aparece como uma base miserável comparada com este fundamento, recém desenvolvido, criado pela grande indústria mesma. Tão pronto como o trabalho em sua forma imediata tem deixado de ser a grande fonte da riqueza, o tempo de trabalho deixa, e tem de deixar, de ser sua medida e, portanto, o valor de troca [deixa de ser a medida] do valor de uso. O sobretrabalho da massa tem deixado de ser condição para o desenvolvimento da riqueza social, assim como o não-trabalho de uns poucos tem deixado de sê-lo para o desenvolvimento dos poderes gerais do intelecto humano. Com isso, se perde a produção fundada no valor de troca, e ao processo de produção material imediato se retira a forma da necessidade premente e o antagonismo .Desenvolvimento livre das individualidades e, p o r consequência, não redução do tempo de trabalho necessário com vistas a pôr sobretrabalho, mas sim, em geral, redução do trabalho necessário da sociedade a um mínimo, ao qual corresponde então a formação artística, científica etc. dos indivíduos graças ao tempo que se torna livre e aos meios criados para todos.1

Para melhor apreendermos o sentido da citação acima, é preciso aqui fazer uma distinção entre riqueza material e valor. A primeira significa pura e simplesmente o conjunto de produtos concretos que satisfazem determinada s necessidades dos indivíduos. O segundo trata-se de uma medida abstrata e geral que é a expressão da forma mercantil da sociabilidade sob o capitalismo. Isto é, na medida em que o trabalho dos indivíduos só se torna social através da mediação de mercados, a forma valor torna- se ela própria a reguladora impessoal e inconsciente da produção e do consumo. Mais ainda, na medida em que o capitalismo se impõe historicamente, a forma valor e não a riqueza material torna-se o objetivo último da produção. Ou seja, o trabalho torna-se também ele abstrato na medida em que conta para o capital como unidade de tempo em geral, independentemente tanto do caráter qualitativo e concreto dos produtos quanto de sua quantidade numérica. E para que o capital cumpra sua missão – isto é, se valorizar – ele precisa se apropriar de uma quantidade maior de trabalho abstrato do que aquela posta por ele em movimento no início do processo produtivo.

No entanto, como sugere a citação acima, o próprio modus operandi capitalista – marcado pela incessante concorrência entre capitais – tende a aumentar exponencialmente a produtividade e tornar o trabalho uma “base miserável” no que tange à produção de riqueza material ou valores de uso. No entanto, na medida em que a forma valor permanece como esteio da sociedade em que vivemos, a constante incorporação de trabalho vivo há de permanecer como questão de vida ou morte para a permanência do capitalismo. O aumento da produtividade jamais pode por si apenas aumentar o valor produzido. Uma jornada de oito horas de trabalho vivo sempre irá adicionar ao “trabalho morto” das máquinas e matérias-primas o equivalente a oito horas de trabalho. Se a produtividade do trabalho aumentar será possível nestas oito horas aumentar a quantidade de riqueza material produzida, mas jamais o valor incorporado, posto que este por definição se mede pela quantidade de trabalho abstrato. Uma mesma quantidade de trabalho – desconsiderando-se diferenças de intensidade e complexidade – sempre representa uma mesma quantidade de valor.

Aqui, portanto, residiria a contradição fundamental contemporânea posta por Kurz, Trenkle, Lohoff e cia. Desde o final do século XX e ainda mais no decorrer deste início de século XXI, a nova estrutura técnica do capitalismo estaria criando novos padrões que estariam minando sua própria base de valorização: o trabalho vivo. Tal dinâmica suicida do ponto de vista do capital revela-se no fato deste último tornar cada vez mais desimportante o trabalho para a produção de riqueza – sendo substituído por aquilo que Marx em outra passagem dos Grundrisse chama de “Intelecto Geral”– ao mesmo tempo que não pode deixar de recolocar este mesmo trabalho como base de sua contínua autovalorização. 

Nesta contradição estaria escancarado de maneira cabal o fato de que as relações fetichistas que governam a economia capitalista criam imperativos aos capitais tomados individualmente que do ponto de vista sistêmico acarretam uma crise insolúvel. O drama se acentua pelo fato de que – caso a tese aqui exposta esteja correta – evidentemente não há como se “voltar atrás”. Se os novos padrões de produção num dado setor econômico tendem a impor uma diminuição da quantidade de trabalho vivo com relação ao trabalho morto, a tentativa de se engendrar técnicas que ponham em movimento mais trabalhadores em nome de se “salvar” globalmente o sistema em sua busca pela expansão do valor não implicam apenas num “retrocesso”, mas sim tendem a ser inviabilizadas pela concorrência e pelo processo de racionalização que não perdoaria a menor eficiência destes “capitalistas utópicos”.

No enfoque dos autores alemães, a citação de Marx, mesmo se bastante conhecida entre aqueles que estudam sua obra, não teria sido absorvida em sua devida profundidade e relevância. Ou, na melhor das hipóteses, a citação de Marx teria sido tomada como mais uma previsão distante que só poderia ser objeto de preocupações futurológicas e especulativas. Justamente o recado de Krisis Exit! é de que estaríamos hoje vivenciando o contexto acima citado. Isto redimensionaria profundamente o debate econômico de inspiração marxista. Afinal, se de fato é a própria produção de valor que está em questão, o eterno debate sobre as crises periódicas do capitalismo que tantas polêmicas incutiu no marxismo torna-se supérfluo. Ou, melhor dizendo, apenas o que sobraria do velho debate das crises seria a ideia – minoritária entre os marxistas – de que o capitalismo teria uma tendência inexorável ao colapso. 

Tais foram as teses defendidas por Rosa Luxemburgo e H. Grossman, evidentemente com argumentos e num contexto diferentes dos de Kurz, e que foram de maneira geral rechaçados no debate marxista.

2- Acerca da validade desta hipótese teórica

O que expomos acima não é por certo novidade para todos aqueles que já tiveram algum contato com a obra de Kurz, em especial com seu livro mais conhecido, O Colapso da Modernização. Este último teve um impacto considerável no Brasil e em outros países no início dos anos 1990, apesar de que mesmo então tenha sido duramente criticado. Todavia, a influência de Kurz e seus parceiros tendeu a esmorecer bastante nos anos subsequentes. Independentemente disso, persiste a questão: a hipótese aventada acima é válida? Nosso esforço subsequente neste texto não pretende responder de maneira inequívoca a tal questão. Trata-se muito mais de tentar juntar elementos, buscar organizar melhor a discussão e propor certos pontos para posteriores pesquisas e reflexões que dialoguem com os elementos postos por tal hipótese.

Pensamos que uma primeira aproximação à proposta acima é ligar a hipótese de Kurz ao conceito do livro III de O Capital de Marx de Queda Tendencial da Taxa de Lucro. Tal conceito a nosso ver permite pensar melhor a hipótese de uma crise permanente da valorização do capital. Como é sabido, seria a aumento da composição orgânica do capital, isto é, o aumento do peso relativo em termos de valor do trabalho morto com relação ao trabalho vivo que configuraria a queda da taxa de lucro no transcorrer do desenvolvimento das forças produtivas do capitalismo. Tal queda da taxa de lucro – caso não fosse contrarrestada pelas tendências atenuantes discutidas pelo próprio Marx – significa a iminência de uma crise absoluta do capitalismo. Não é à toa que justamente a discussão sobre um eventual colapso do capitalismo aparece em Marx num capítulo em que trata do problema da taxa de lucro. E não poderia ser de outra forma, posto que a taxa de lucro dentro da construção teórica marxiana é a medida da expansão de valor do capital em relação a si próprio. Se esta taxa vai a zero, ou declina muito, a continuidade da acumulação é travada e o processo de valorização se esboroa. A crise que daí advém, na medida em que desvaloriza o capital existente, pode reerguer a taxa de lucro e colocar na ordem do dia um novo ciclo de acumulação. Mas se a composição orgânica do capital prossegue sua escalada ascendente, esta breve recuperação será apenas um respiro dentro da inexorável agonia que o capitalismo a t r av e s s ar ia .

A similitude do conceito de queda tendencial da taxa de lucro com a da tese de Kurz é enorme, e poder-se-ia dizer que seriam diferentes formas de se dizer a mesma coisa, ainda mais quando se leva em conta a teorização do colapso do capitalismo que daí se derivaria. Até certo ponto isto é correto, mas desde que se façam certas qualificações. Se é inegável que as transformações tecnológicas implicam numa enorme substituição de trabalho humano por máquinas, equipamentos, informação, conhecimento etc. isto não decreta por si só a impossibilidade da continuidade da dinâmica capitalista, pois não se pode inferir daí diretamente a interrupção da relação de valorização do capital consigo próprio. Para tanto não há como fugir da análise das contratendências à queda da taxa de lucro tais quais formuladas por Marx e buscar contrapô-las a Kurz, na tentativa de falsear sua tese de crise absoluta do valor e da valorização. Mais especificamente, a nosso ver, é preciso ver quais os efeitos da  incidência da chamada Terceira Revolução Industrial e do Capitalismo Cognitivo sobre 1) a taxa de mais-valia; 2) o valor dos elementos materiais do capital constante. 5

No que tange ao primeiro caso, a tentativa de se falsear a tese de Kurz se daria em função da simples constatação de que o mesmo aumento da produtividade que tem como corolário a redução de trabalho vivo poderia aumentar a mais-valia relativa (e por tabela a taxa de mais valia). À medida que cai o valor dos bens que fazem parte do custo de vida dos trabalhadores, é possível extrair deles mais tempo de trabalho excedente. Se antes era necessário que o trabalhador recebesse o equivalente a 4 horas da sua jornada de trabalho de 8 horas para manter seu padrão de vida, é possível que com o aumento da produtividade na elaboração dos bens que ele consome, agora sejam necessárias apenas 2 horas que correspondam ao seu salário, sobrando 6 horas agora como mais valia ao capitalista. Em outras palavras, é possível que a redução relativa da quantidade de horas de trabalho vivo na produção seja compensada por uma maior absorção relativa de horas de trabalho sobre cada jornada realizada.

Entretanto, como bem mostrou Rosdolsky em seu Gênese e Estrutura de O Capital de Karl Marx, a possibilidade de se atenuar a queda da taxa de lucro pela via da produção de mais-valia relativa é bastante limitada e não pode ter um longo fôlego. No nosso exemplo anterior, para que seja possível reduzir a quantidade de horas equivalentes ao salário em termos de valor de 4 para 2 horas, seria necessário dobrar a produtividade dos bens de consumo para que seu valor caísse pela metade. No entanto, este processo caso continuado por mais vezes traria um efeito cada vez menor em termos de geração de mais-valia. No caso em discussão se a produtividade dobrar mais uma vez o salário poderá ser equivalente a 1 hora de trabalho, mas isto significaria então apenas mais 1 hora – e não 2 como no caso anterior – de mais-valia incorporada pelo capital. De forma análoga, nas próximas vezes em que dobrar a produtividade – o que convenhamos não ocorre do dia para a noite – na feitura dos bens que o trabalhador consome renderiam respectivamente como tempo excedente ao capital 30, 15, 7.5 minutos etc. Em suma, por esta via, não parece ser possível que se negue a tendência à queda da taxa de lucro.

Caso mais complexo parece ser o da relação entre as recentes mudanças produtivas e a outra das contratendências à queda da taxa de lucro, a saber, a do barateamento dos elementos do capital constante. Mais uma vez, tentando falsear Kurz, podemos aqui argumentar que se de um lado é inquestionável que do ponto de vista técnico-material o trabalho morto torna-se cada vez mais relevante em detrimento do trabalho vivo, não necessariamente o mesmo pode-se afirmar sobre esse processo do ponto de vista do valor. Ou, dito de outra forma, não se pode negar que a mesma estrutura produtiva da Terceira Revolução Industrial que faz com que um único trabalhador coloque em movimento um volume de equipamentos e matérias-primas maior do que em etapas pretéritas do capitalismo possa, por outro lado, reduzir o valor unitário destas matérias-primas e equipamentos de forma que o efeito em termos de “custos” globais não aumente, ou mesmo caia. Ou seja, usando o mesmo exemplo que já tratamos da impressora 3D, podemos intuir aqui que esta nova tecnologia vá produzir de forma bem mais barata não só bens de consumo mas também máquinas e equipamentos, de forma a aliviar a taxa de lucro das consequências advindas da substituição de trabalho vivo por trabalho morto. Por outro lado, também se pode contrapor o dito anteriormente se se tiver em conta que a possibilidade de que a queda do valor unitário dos elementos do capital constante sobrepuje o aume nto de quantidade destes elementos enfrenta dificuldades que não oferecem fácil solução. Uma destas dificuldades é de que as matérias-primas – ou ao menos uma parte considerável delas – oferece limites para redução em seu valor unitário.Como uma primeira aproximação, consideremos por ora que, no que tange ao barateamento dos elementos do capital constante, não é possível uma afirmação taxativa sobre sua eficácia em conter a queda da taxa de lucro. Mais à frente, neste texto, retomaremos o assunto.

Em síntese, nossa proposta até aqui é a de que para se negar ou corroborar a hipótese de bloqueio da valorização do capital é mister uma investigação mais detida  sobre a queda (ou não) da taxa de lucro. Por mais que este conceito tenha sido largamente debatido na história do marxismo produzindo infindáveis controvérsias, achamos que ele é inescapável quando se trata de auferir a existência de uma possibilidade de uma crise estrutural e de um colapso do capitalismo. Ademais, outro motivo pelo qual a análise em termos da taxa de lucro tende a ser preferível do que a mais genérica constatação de que estaria produzindo-se a obsolescência do trabalho vivo na produção reside na possibilidade maior de inferências empíricas. É certo que não é simples aferir o conceito marxiano de taxa de lucro a partir dos dados estatísticos existentes acerca da economia. Entretanto, existem tentativas de se estimar as taxas de lucro no sentido marxiano a partir de certas mediações, seja para países importantes, ou mesmo para o mundo como um todo, cobrindo longos períodos que podem sem dúvida ilustrar fenômenos e tendências importantes.

Citamos como exemplo, o livro dos economistas franceses Duménil e Lévy, A Crise do Neoliberalismo, no qual fazem este exercício para a economia dos EUA, e também o texto “A Taxa de Lucro Mundial”, de Michael Roberts.Entretanto, tais estudos não parecem ser conclusivos acerca de uma queda substancial da taxa de lucro, nem para os EUA, nem para o mundo como um todo. Seria então o caso de dizer que o conjunto de considerações feitas até aqui estariam enviesadas, ou então que na melhor das hipóteses elas dizem respeito a um futuro muito longínquo que nossa atual geração não irá vivenciar?

3- Sobre dois fenômenos que podem reforçar a referida hipótese

Ainda achamos que há lenha para se queimar nesse debate. Iremos neste tópico realizar um dado percurso para tentarmos aprofundar a reflexão da tese sobre a crise do valor e limite absoluto do capital. Mais precisamente, iremos abordar dois fenômenos fundamentais do capitalismo contemporâneo e tentaremos pensá-los à luz do exposto mais acima. O primeiro deles é a crescente tendência à profusão de capital fictício das últimas décadas que se liga ao exaustivamente debatido processo de financeirização da  economia global. O segundo deles reside na constatação de que o novo padrão tecnológico da Terceira Revolução Industrial tem sido acompanhado por um incremento considerável das tentativas de se monopolizar e privatizar o conhecimento, a informação e os saberes. No que tange ao primeiro destes fenômenos, iremos aqui reproduzir em certa medida as análises que já têm sido realizadas pelos apoiadores de Krisis Exit!, ao mesmo tempo em que iremos avançar algumas observações nossas. Já no que diz respeito ao segundo, até onde sabemos, não existe uma elaboração da parte dos referidos autores sobre o tema, de forma que as análises que aqui faremos refletem considerações pessoais.

Afirmamos de antemão que realizaremos neste tópico um exercício não muito usual. Mesmo não tendo provado a vigência das teses dos autores alemães, vamos assumir sem mais nas linhas que se seguem que tais teses são de fato convincentes e verdadeiras. Assim, buscaremos mostrar que ambos os fenômenos mencionados no parágrafo acima (capital fictício e monopolização do conhecimento) podem ser em larga medida explicados a partir das proposições explicitadas nas contribuições de Kurz e cia. Argumentaremos no sentido de que os dois fenômenos constituem uma tentativa de “fuga para frente” diante da crise geral de valorização na produção. Ao mesmo tempo, sugeriremos que os dois fenômenos, apesar de serem eles mesmos produtos da crise do valor e da queda da taxa de lucro, poderiam estar ao menos no curto prazo engendrando uma atenuação provisória da queda de tal taxa. Com isto, estaríamos propondo uma possível solução para a contradição entre o alegado limite absoluto do capital e ausência de dados empíricos que corroborem a vigência de uma queda pronunciada da taxa de lucro.

a) Capital fictício e financeirização

A teoria de que por trás da fabulosa profusão de capital fictício que tem se desenvolvido num ritmo crescente desde os anos 1970 estaria uma crise da valorização real do capital na produção é uma das marcas da análise econômica tanto na revista Krisis como na Exit!. Para explicitar por que ela poderia ser convincente, procederemos aqui inicialmente pela lógica da exclusão, isto é, mencionando porque outras visões  acerca do tema são insuficientes. É comum dizer que a financeirização reflete uma espécie de vitória política e social do lado “rentista” em detrimento do lado “empreendedor” ou “produtivista” do capitalismo. Uma versão mais sofisticada dessa ideia aparece nos últimos trabalhos do famoso historiador econômico francês Fernand Braudel. Para este último, um olhar de longo prazo na história do capitalismo mostra que ao contrário do que muitos aventaram o lócus preferido do capital não seria a fábrica, a fazenda, as unidades produtivas em geral, mas sim espaços por assim dizer externos à produção como a articulação de rotas de comércio monopolistas, relações privilegiadas com o poder e a alta finança. Neste sentido, a volta da financeirização dos anos 1970 seria nada mais do que a afirmação de uma vocação quase ontológica do capital em submeter a dinâmica produtiva externamente e pelo alto, sem ter que se ver com as vicissitudes corriqueiras e desconfortáveis do “chão de fábrica”. Em suma, o capital nas finanças estaria de volta a sua “casa”. Todo o processo de desregulamentação e globalização dos mercados financeiros subjacente ao período recente seria visto dentro dessa ótica também como a coroação de tal vitória do “rentismo”. Os Estados Nacionais, cada vez mais reféns de tal fração capitalista hegemônica, não apenas acomodariam seu poder como ainda o estimulariam ao endossarem a desregulamentação e a abertura global dos mercados financeiros.

O problema com tal interpretação a nosso ver é que ela não explica por que justamente nos últimos 40 anos esse processo de “dominância financeira” cresce exponencialmente, e nem mesmo a hecatombe causada a partir de 2008 com a crise mundial parece apontar para qualquer caminho para questioná-la de forma substancial. Ao imputar o fenômeno da multiplicação do capital fictício simplesmente a um determinado poder consciente dos capitalistas ou de setores deles, tal explicação só pode se tornar subjetivista e tautológica. Subjetivista, pois em última instância trata-se de afirmar que a financeirização é forte porque os interesses pessoais (ou de classe) em torno dela são fortes. As origens e os meios de sustentação desses interesses são tomados como dados – como em Braudel, que diria que “sempre foi assim” – e se oblitera o processo objetivo que tem permitido a sua vigência tão longínqua, profunda e intensa. Justamente por isso trata-se de uma explicação também tautológica, pois se explica a força da financeirização pela sua própria força.

 Por outro lado, outra explicação para o fenômeno reside na ideia de que a queda da rentabilidade do capital ao fim da “era de ouro” nos anos 1970 teria incentivado um processo de “fuga para frente” diante das dificuldades de valorização na produção, estimulando a profusão de diferentes formas de valorização fictícia do capital. Entretanto, mesmo que esta explicação não seja subjetivista e tautológica como a anterior, ela tampouco parece ser satisfatória. Afinal, uma coisa é explicar a origem de um dado fenômeno. Outra coisa é e explicar sua perenidade, desenvolvimento e o caráter aparentemente insuperável de que se revestiu a financeirização recente. Guardam certa relação com esta tese por nós criticada as explicações cíclicas como a de Giovanni Arrighi, que mostram a existência no passado capitalista de recorrentes ciclos ligados a hegemonias geográficas de acumulação produtiva seguidos de ciclos de acumulação financeira. Tais explicações podem ter seus méritos em ilustrar o quadro histórico. Todavia, não nos aparece correto situar a etapa em que vivemos apenas em mais um destes momentos cíclicos – agora hegemonizado pelos EUA. Não apenas tal afir maçã o r e duzir ia a imp or t ância de apr e e nde r mos o co nju nt o de muda nças qualitativas em curso, isto é, o seu caráter sui generis, como também isso nos obrigaria a prever qual seria o próximo hegemón que lideraria um novo ciclo de acumulação produtiva. Neste caso, o erro de análise não seria subjetivismo ou tautologia, mas sim teleologia: estaríamos supondo um dado sentido pré-determinado para o curso da história a partir da mera repetição de eventos passados.9

Feito este percurso, voltemos então à nossa hipótese de queda estrutural da taxa de lucro como razão última da financeirização recente e da hipertrofia do capital fictício. Ela nos parece, sem dúvida, uma explicação bem mais convincente para o fenômeno que  estamos a considerar. É quase lugar comum em debates econômicos alguém citar uma estatística que mostra como o valor dos ativos financeiros tem crescido em escala imensamente maior do que a da produção ou do comércio mundiais. Se se aceita a ideia de que de um ponto vista sistêmico a valorização produtiva do capital tem encontrado dificuldades crescentes, dificuldades estas que não são passageiras mas sim permanentes e que tendem a se agravar no médio prazo, tais dados talvez deixem de causar o assombro costumeiro. Ademais, também com este ponto de vista, poder-se-ia abandonar a perspectiva subjetivista que explica a ascensão das finanças pela suposta força incontrolável de desejos individuais ou de grupos. Longe evidentemente de se negar a ocorrência de tais desejos e interesses, poderíamos agora inclusive melhor compreendê-los, inclusive para explicar fenômenos como a generalização do rentismo para amplas camadas populacionais através de fundos de pensão de assalariados, da valorização imobiliária etc. 1 0

Para além disso, é plausível também arguir que a própria explosão da valorização fictícia, a despeito dela mesma se originar no bojo da crise do valor, possa ser um elemento de impulso da própria valorização real. A expansão de crédito e as bolhas financeiras podem criar lucros fictícios que se expressam em ganhos de capital realizados via títulos, ações, imóveis etc. Nesse processo, pode-se criar uma dada situação de estímulo “artificial” que coloque em movimento capitais “reais” que de outra forma não se aventurariam pela produção. Esse processo, como se sabe, pode se realizar de diferentes maneiras e deu o tom da dinâmica macroeconômica em vários países até a crise de 2008, com especial destaque aos EUA. A profusão creditícia pode inflar o consumo e o investimento e com isso aumentar as expectativas de lucro e o engajamento de capitais na produção de nova mais-valia. A bolha imobiliária ao inflar o preço dos imóveis torna rentável uma maciça incorporação de trabalhadores e produção de valor  na construção civil. O mesmo vale para as corporações cujas ações têm seu valor majorado com a bolha vis à vis o custo de seu estoque “real” de capital e que com isso sentem-se estimuladas a investir. Ou ainda, o efeito riqueza que as famílias sentem a partir da inflação de seus patrimônios imobiliários estimula um aumento do consumo, o que por sua vez aumenta as vendas, a utilização da capacidade e os lucros das empresas etc.

Evidentemente, tal processo não pode indefinidamente substituir o que seria um processo “normal” de acumulação produtiva de capital. Daí o fato de que – diante da débâcle estrutural do valor – as crises econômicas tenham se tornado cada vez mais recorrentes a partir dos anos 1970, sendo a crise recente sua manifestação mais substantiva. Ademais, há outra ilação possível, talvez espantosa para muitos, das questões aqui levantadas. Como se sabe, o crescimento da produção mundial dos anos 1970 para cá tem sido muito menor do que em outros períodos anteriores da história do capitalismo. Entretanto, ao contrário do que é comum afirmar, a financeirização da economia não teria sido o freio da expansão do PIB mundial, mas ao contrário, teria sido justamente responsável por evitar que tais resultados pífios fossem ainda piores.

b) A luta pela monopolização do conhecimento

Antes de situarmos a temática deste tópico com o sentido geral de nosso texto, façamos uma breve digressão. Como é largamente sabido, desde fins do século XIX o capitalismo é marcado pela existência de monopólios/oligopólios que realizam práticas restritivas para sustentar preços acima dos “competitivos”, criar barreiras à entrada e proteger seus mercados. Mas a monopolização é per se totalmente estéril do ponto de vista da criação de mais valor. Ao contrário, as taxas de lucro monopolistas baseiam-se via de regra na obtenção de sobrelucros que são obtidos com a apropriação de mais- valia dos demais setores não monopolizados. É esta transferência de valor que está por trás da existência de taxas de lucro substancialmente maiores em determinadas empresas e setores econômicos vis-à-vis aos demais. Impedir a equalização das taxas de lucros, seja por dispositivos jurídicos e políticos, ou por uma produtividade maior  enquanto fruto de técnicas não passíveis de serem obtidas economicamente por outros capitais é a essência do monopólio moderno.

Tal dinâmica, à luz da chamada Terceira Revolução Industrial, deve ser lida tendo-se em vista o desenvolvimento de uma efetiva mudança de qualidade. Tal mudança residiria no fato de que agora o poder de monopólio estaria de forma muito mais conspícua consubstanciado no domínio restritivo de conhecimentos, informações, processos e mesmo marcas de produtos. A possibilidade diferenciada de se acumular amplas quantidades de capital fixo que em períodos mais antigos impuseram ganhos monopolistas para certos capitalistas em detrimento de outros, podem e devem ainda jogar o seu papel, mas no caso eles seriam apenas a continuidade de um processo histórico de concentração e centralização de capitais. A dimensão efetivamente nova seria a do chamado “capitalismo cognitivo” em que uma nova elevação do padrão científico-tecnológico radicalizaria a obsolescência do trabalho vivo na produção de riqueza no sentido do “Intelecto Geral” preconizado por Marx. E para que se tenha em vista a profundidade de tal mudança de qualidade, é preciso reter por um momento o sentido do conceito de “Intelecto Geral”. O conhecimento como “fator de produção” pela sua própria natureza tem uma tendência a se socializar quase que instantaneamente e de forma muito mais abrangente do que, por exemplo, a pesada linha de produção clássica do fordismo. O desenvolvimento de um software operacional da Microsoft certamente envolve em si trabalho vivo – qualificado e não qualificado– para a sua produção. Entretanto, uma vez desenvolvido, potencialmente o software é passível de utilização gratuita e instantânea por todos aqueles que tem um microcomputador e só não o é na prática por conta dos mecanismos jurídicos de propriedade intelectual que exigem o seu pagamento. Em outras palavras, se há trabalho(valor) para a produção originária deste bem, não há qualquer trabalho(valor) na sua reprodução.1 1

Feito este percurso, é possível tentar estabelecer uma ponte entre o vertiginoso crescimento de patentes e artifícios de proteção de conhecimentos, técnicas e informações que marca o capitalismo contemporâneo com a problemática da crise do valor. Assim como buscamos sugerir mais acima que a multiplicação de capital fictício não pode ser atribuída simplesmente a uma “vitória política do rentismo”, tampouco a obsessão com a propriedade intelectual e com diferentes formas de privatização e proteção do conhecimento pode ter a ver apenas com uma vontade consciente e subjetiva mais pronunciada de patenteamento da parte das corporações e seus líderes. Ora, nos parece claro que o motor objetivo de tal obsessão é o fato de que o próprio caráter de “Intelecto Geral” das técnicas exige sua imediata monopolização, posto que do contrário a sua generalização quase que imediata e sem custos de reprodução inviabilizaria o empreendimento de um ponto de vista capitalista.

Se as patentes e demais formas de defesa da propriedade intelectual sempre fizeram parte de certa forma da história do capitalismo como artifícios de restrição da concorrência, agora elas se tornam questão de vida ou morte para muitos dos setores mais importantes e dinâmicos da economia. Do ponto de vista imediato do capital individual tais formas de restrição à concorrência devem ser concebidas como decisões lógicas e racionais. Seja pela exclusividade total do uso de tais técnicas e know-how, seja pela cobrança de d inhe iro de outros usuários por sua utilizaçã o, ou então por mecanismos tácitos12 que vedem a sua difusão, busca-se assim se cristalizar a posse exclusiva de tais vantagens econômicas. E com isso também radicaliza-se a transição contínua dos lucros convencionais oriundos da produção e reprodução de mercadorias através da mobilização da força de trabalho para rendas de monopólio que permitem uma apropriaç ão de v alor em prop orções absurdamente superiores ao v alor acrescentado (em termos de quantidade de trabalho vivo) por tais capitais à massa global de valor.1 3

A obsolescência do trabalho vivo implícita em tais mudanças ganha contornos ainda mais críticos se pensarmos por exemplo no próprio caráter de que se reveste a substituição de trabalho vivo por trabalho morto que tende a assumir a mercadoria “conhecimento”. Mesmo quando as técnicas da indústria pesada tipicamente “fordistas” já implicavam em substituição de trabalho por máquinas, a produção e a reprodução das referidas máquinas ainda implicavam o empenho de certa dose de trabalho vivo para a sua confecção, acrescentando assim valor ao sistema econômico. Já no caso da substituição de trabalho vivo pelo insumo “conhecimento”, abstraindo-se o trabalho necessário para sua obtenção primária, a sua multiplicação não envolve qualquer acréscimo de valor.

Em suma, a sugestão aqui seria a seguinte. Em fases anteriores do capitalismo, mesmo que o padrão técnico estabelecido já acarretasse altas composições orgânicas de capital nos mais importantes ramos de produção, ele ainda env olv ia montantes substanciais de trabalho vivo na sua dinâmica e no seu processo de acumulação. Com a chamada Terceira Revolução Industrial e seus desdobramentos, não apenas se radicaliza a substituição de trabalho vivo por máquinas etc. como também a própria acumulação, ao menos no que diz respeito ao bem “conhecimento”, se daria em bases distintas. Em vez de, como em períodos anteriores, a própria acumulação implicar na ampliação da massa global de valor à medida que acarretava a produção de novas máquinas, equipamentos etc., agora a acumulação de “conhecimento” se reveste de um caráter “once and for all”, isto é, torna-se um ativo cuja função econômica é promover a apropriação de rendas monopolistas que só podem ser auferidas a partir da drenagem do valor produzido em outros setores/empresas. A própria ideia de rotação do capital, nesses termos, deve ser repensada, posto que no caso em tela não se trataria da reprodução dos elementos materiais do capital constante e variável. Mesmo que se considere aqui a necessidade de se atualizar de tempo em tempo o conhecimento acumulado – o que seria o análogo a “repor o capital fixo depreciado” de padrões mais antigos de capitalismo – não obstante o fato de que isso implique sem dúvida a mobilização de certa dose de “trabalho vivo” qualificado, trata-se muito mais de aperfeiçoamentos a partir de um “fundo” social e global de informação e ciência. Portanto, mesmo no caso das melhorias e renovações no estoque de saberes à disposição do capital não se pode vislumbrar aí uma dinâmica pautada na produção de mais- trabalho. Se o que dizemos até agora é correto, estaria então posta a radicalização explícita da contradição referida acima entre trabalho vivo como “base miserável” para a produção de riqueza material e o trabalho vivo como condição para o prosseguimento da valorização do capital. No centro desta contradição está ascensão do “Intelecto Geral” como ator preferencial da produção. Tanto porque de forma “estática” com ele se aprofunda a subida da composição orgânica do capital, como também de forma “dinâmica” e prospectiva elimina o trabalho vivo do processo de acumulação e da continuidade da valorização do capital.

O que foi dito acima pode facilmente servir para retomarmos a questão da queda da tax a de lu cro. Mencionamos mais acima a possibilidade de que a produtividade elevada da Terceira Revolução Industrial consiga contrarrestar a tendência à queda da taxa de lucro via barateamento dos elementos unitários de capital constante, o que poderia conter ou mesmo em tese reverter a subida da composição orgânica do capital. De um lado, é verdade que se uma máquina convencional pode ser produzida de forma mais barata, ao ser usada como insumo ela reduz custos e aumenta os lucros dos que a compram. Só que isso não é o fim de toda a história, pois do ponto de vista do capital social se o padrão produtivo tornar imperativo a apropriação de doses crescentes do “Intelecto Geral” ele contribuirá para o aniquilamento das fontes de mais- valia e lucratividade mediante uma nova subida exponencial da composição orgânica. Ou seja, se o conhecimento imaterial tende a suplantar as próprias máquinas “físicas” no evolver da própria racionalidade da produção, o mais-trabalho obtido hoje com o barateamento de tais máquinas será anulado pelo não-trabalho que tende a se impor como paradigma. Em outras palavras, o barateamento dos elementos unitários do capital constante, por mais significativo que seja, não pode compensar uma situação em que potencialmente o trabalho vivo é praticamente excluído do processo produtivo e que por definição tende a levar ao infinito a composição orgânica do capital. Assim, a taxa de lucro g loba l, com o desenv olv imento d os processos em curso, s ó poderá tendencialmente cair, e, no limite, zerar.

Destarte, numa sociedade mercantil, ainda governada pelo valor, a crescente busca de monopólio da ciência produtiva apareceria como algo totalmente compreensível. Não se pode interpretar tal fenômeno apenas como fruto de um eterno desejo do capital de deslocar seus rivais e de obter taxas de lucros mais altas e protegidas, pois com isso se perderia de foco a mudança de qualidade em curso. 

Neste preciso sentido, a emergência do “Intelecto Geral” como elemento decisivo para produção de valores de uso poderia então ser interpretada como causa da crise geral da forma valor, assim como o afã por sua privatização e controle monopolista uma das consequências de tal crise. Trata-se aqui, do ponto de vista dos capitais individuais, da defesa do seu quinhão “particular” de valor diante da iminência de dada estrutura que nega globalmente o valor a partir de seu próprio desenvolvimento inconsciente e fetichista.1 4 Ou, dito de outra forma, este seria mais um capítulo (final?) da contradição entre forças produtiv as e relações de prod uçã o. De um lad o forças produtiv as socializadas num grau extremo, de outro, relações de produção que asseguram a apropriação privada através de mecanismos cada vez menos puramente “econômicos”, escancarando-se, também aqui, outra faceta da crise terminal do valor.

Todavia, este mesmo processo de privatização do conhecimento socialmente produzido, justamente por retardar a generalização do “intelecto geral” como elemento predominante da produçã o, poderia também estar contendo uma queda mais pronunciada da taxa de lucro. Na medida em que muitos capitais menos afortunados ainda estariam privados do usufruto do conjunto de conhecimento socialmente produzidos, a substituição de técnicas seria mais lenta e os efeitos referidos sobre a composição orgânica ainda não seriam sentidos na escala em que potencialmente se dariam caso a monopolização do conhecimento não estivesse vigorando. Nesse sentido, assim como a financeirização e o capital fictício podem se constituir numa atenuação provisória diante de dos limites absolutos do capital, o mesmo pode ser dito da monopolização do conhecimento. Também este poderia ser um fator que ajuda a explicar por que do ponto de vista empírico não há indícios de queda pronunciada da lucrativ idade.

No entanto, tal “alívio” do ponto de vista da valorização do capital não pode por certo ter vida muito longa. Afinal, aqueles capitais que ainda geram maiores doses de valor via trabalho vivo, mas cuja apropriação se dá cada vez mais por capitais que monopolizam o conhecimento, necessariamente terão de buscar acompanhar os novos padrões em função da pressão competitiva ou tenderão a perecer. Num ou noutro caso, o desdobramento será aprofundar a crise do valor e a queda global da taxa de lucro. Em síntese, o processo aqui descrito pode no máximo consistir numa sobrevida.

4- Considerações finais

Como frisamos no início, não esperamos ter provado nada com este breve texto e conscientemente o produzimos com intuito de provocar o debate. Buscamos apenas explicitar em que medida ao se assumir como verdadeiras as ideias de Kurz e cia. é possív el v islumbrarmos diferentes formas de interpretar fenômenos cruc iais d o capitalismo contemporâneo. Isso não nos impede, por outro lado, de nessas linhas finais considerar muito sucintamente certas consequências que a veracidade das hipóteses e s m iu ç a d a s m a is a c im a p o d e r ia a c a r r e t a r p a r a a r e f lex ã o c r ít ic a d os r u m os d a sociedade.

Em primeiro lugar, estaríamos diante de um desenvolvimento substancialmente maior da irracionalidade no processo de reprodução da sociabilidade capitalista, em que aquilo que aparece como sendo um generalizado parasitismo – financeiro e tecnológico – em realidade consiste num sopro de vida na cambaleante dinâmica do sistema econômico como um todo. Em segundo lugar, em paralelo à crise do valor, é forçoso constatar a crise do trabalho enquanto tal. Daí decorre que uma profícua transformação social não poderá mais ser pensada nos termos de uma emancipação do trabalho enquanto tal, mas sim de uma emancipação contra o trabalho. A utilização da disputa pelo excedente produzido pelo trabalho como norte principal da luta política não pode ter qualquer futuro se é o próprio trabalho que se torna uma “base miserável” para a reprodução da vida humana. A reapropriação consciente, racional e liberta da forma valor pela humanidade do Intelecto Geral que foi produzido na história de forma alienada e inconsciente seria a tarefa da ordem do dia.

Daniel Feldeman 

Professor do Curso de Economia da UNIFESP.


Notas
MARX, Karl. Elementos fundamentales para la crítica de la economia política (Grundrisse) – 1857/1858. 15a ed. México: Siglo Veintiuno Editores, 1987, v. 2, p. 228-229.
Sobre uma boa discussão do conceito de intelecto geral, ver o artigo do professor Eleutério Prado intitulado “As interpretações da noção de “intelecto geral” dos Grundrisse” (Crítica Marxista, no 34, 2012).
 Ao longo de nossa exposição nos referiremos mais a Robert Kurz do que aos outros autores tanto da Exit! e da Krisis, pelo simples fato de que sua obra é mais conhecida por nós do que a dos outros.
 A taxa de lucro para um dado período para Marx é expressa na fórmula m/c+v, sendo m (mais-valia), c (capital constante) e v (capital variável). Uma notação útil da mesma fórmula se obtém quando dividimos tanto numerador como denominador por v, obtendo-se m/v: c/v+1, o que permite correlacionar diretamente a taxa de lucro a variações na taxa de mais-valia (m/v) e composição orgânica do capital (c/v).
Do que pudemos apreender em nossas leituras, Robert Kurz poucas vezes utiliza o conceito de taxa de lucro em seus textos. Uma importante exceção é o capítulo 16 de seu livro “Dinheiro sem Valor” onde ele avança a ideia de que no capitalismo contemporâneo estaria ocorrendo não apenas uma queda substancial da taxa de lucro, como também a ideia de que a própria massa absoluta de mais-valia já estaria declinando de forma pronunciada. De toda forma, por motivos que nos tomariam muito tempo aqui descrever, pensamos que a justificativa dada por Kurz para a queda da taxa de lucro carece de rigor e consistência. Justamente um dos motivos de escrevermos este texto é o de tentar melhor refletir a hipótese de crise absoluta da valorização do capital nos apoiando na análise da taxa de lucro marxiana.
Cf. capítulo 16 deste livro.
 Cf. apêndice do Cap. 27 da referida obra de Rosdolsky.

Este texto pode ser acessado no site do professor Eleutério Prado, no link

https://eleuterioprado.files.wordpress.com/2012/07/taxa-de-lucro-mundial.pdf

 Para Arrighi, seria justamente a China a cumprir o requisito de liderar este novo ciclo. Aqui cabe um parêntese. Evidentemente é fundamental incorporar o fenômeno chinês em qualquer avaliação sobre os rumos da dinâmica global do capitalismo. No bojo do assunto que estamos debatendo, caberia por certo discutir melhor se a incorporação da China como nova “fronteira” do capitalismo não estaria provendo o capital de um novo e gigantesco manancial de trabalho vivo que poderia estar por trás da ausência empírica de sufocamento as taxas de lucro. Todavia – seguindo-se aqui como já dito a perspectiva de crise do valor – outra coisa muito distinta seria afirmar que no século XXI a China poderia liderar um pronunciado ciclo global de valorização produtiva do capital tal qual os EUA fizeram no século XX e a Inglaterra no século XIX. Sinteticamente: o milagre chinês poderia talvez se constituir num fôlego a mais para a produção de mais valia, mas a China não pode também estar imune aos processos de racionalização que tornam o trabalho obsoleto no médio prazo. Ainda mais quando temos em vista que a inserção global da China se dá através em parte considerável pela mediação de grandes empresas multinacionais.
10 Não se trata aqui, por certo, de sugerir que tal processo implique numa democratização da distribuição de renda e riqueza a partir do aumento da importância da ampliação do número de pessoas que tem acesso a formas de riqueza patrimonial e financeira. O contrário disso seria muito mais próximo da verdade, posto que tal contexto tende a reforçar os direitos acumulados da riqueza passada sobre a renda presente em detrimento dos rendimentos do trabalho. Esta seria a contribuição relevante do livro de Piketty, muito mais do que suas propostas de taxação da riqueza que nos parecem utópicas dentro da ordem econômica e política vigente. E vale também, por fim, nos perguntarmos sobre o seguinte dilema: se é a própria sociedade do trabalho e o valor como tal que se encontram em crise crônica, qual seria a efetividade de se colocar como tarefa central a alteração distributiva em favor dos assalariados?
 11 O texto da professora Leda Paulani, “Acumulação e Rentismo: resgatando a teoria da renda de Marx para pensaro capitalismo contemporâneo” (cf. bibliografia), aborda bem esta questão a nosso ver.
12 Nos referimos aqui ao fato largamente estudado pela literatura neo-schumpeteriana de que grande parte do know-how obtido pelas principais empresas se dá de forma silenciosa e oculta, fator que naturalmente veda a sua difusão para as demais empresas. Justamente por isso, este seria mais um importante reforço ao poder de monopólio do conhecimento para muitos capitais.
13 Um caso emblemático deste processo é o caso do aplicativo Whatsapp. A empresa responsável pelo aplicativo foi comprada recentemente pelo Facebook pela bagatela de US$ 21,8 bilhões, tendo apenas 14 funcionários! Certamente, a renda prospectiva que se espera ter a partir de tal aquisição, só pode ser – em termos marxianos – a de uma brutal extração de valor da economia global em virtude do monopólio de uso do aplicativo que se estabelece.
 14 É sintomático que mesmo alguns economistas que estão muito longe de partilharem uma visão afinada com o aporte marxiano cheguem a conclusões semelhantes, mesmo que por outras vias. O conceito de “custo marginal zero”, que é o fulcro da análise recente de economistas como Jeremy Rifkin, guarda relação com a problemática aqui exposta. Como as novas tecnologias já estariam produzindo em determinados ramos econômicos produtos em que podem ser multiplicados em quantidades enormes sem custos adicionais- justamente o “custo marginal zero” – haveria aí o fim de qualquer escassez relativa. Mas justamente o problema é que isso significaria também no limite zerar os preços e por tabela também o “lucro normal” que numa perspectiva neoclássica é um dos componentes dos custos. Numa entrevista recente de Rifkin, ele faz referência a um comentário do ex -secretário do Tesouro dos EUA Lawrence Summers sobre o assunto. Perguntado ainda em 2001 se a Internet teria o mesmo impacto que a eletrificação sobre a economia mundial, Summers respondeu “Olha, nós teremos um problema aqui. Em breve seremos capazes de produzir a um custo marginal zero e isso vai tornar virtualmente impossível a obtenção de lucros”. Rifkin menciona ainda, em tom de desaprovação, a solução dada por Summers ao dilema “Então o que ele propôs? Ele propôs monopólios, imagine isso! Esta era, na sua opinião a única maneira de superar o limite do custo marginal zero ”. Rifkin, ao longo da entrevista, afirma acreditar que é possível conciliar a continuidade do capitalismo com a nova perspectiva tecnológica sem o uso de monopólios. De nossa parte, o comentário de Summers nos parece bem mais realista. A entrevista de Rifkin pode ser lida em http://www.theeuropean- magazine.com/jeremy -rifkin–2/9652-implications-of-the-third-industrial-revolution
 Referências bibliográficas
DUMÉNIL, G. e LÉVY, D. A crise do neoliberalismo. São Paulo: Boitempo, 2014.
KURZ, R.

KURZ, R. 
Dinheiro sem valor. (Linhas gerais para uma transformação da crítica da economia política). Lisboa: Antígona, 2014.
MARX, K. Elementos fundamentales para la crít ica de la economia política
(Grundrisse) 1857/1858. 15a ed. México: Siglo Veintiuno Editores, 1987, v. 2. PAULANI, L. Acumulação e Rentismo: resgatando a teoria da renda de Marx para pensar o capitalismo contemporâneo.
In:
http://www.sep.org.br/artigos/downloa d?id=201 4&title=Acumu la%C3%A7%C3%A3 o+ e+Rentismo%3A+resgatando+a+teoria +da+renda+de+Marx+para+pensar+o+capitalis mo+c ontemp or%C3%A2neo
PRADO, E. As interpretações da noção de ‘intelecto geral’ dos Grundrisse. Crítica Marxista, no 34, 2012. In: http://www.ifch.u nicamp.br/criticam arx ista/arquiv os_biblioteca/comentario46asinter pretacoes.pdf
__________. A grande desvalorização. Parte I-III. In: https://eleuterioprado.wordpress.com/201 4/1 2/01 /a- grande- desv alorizacao/
ROBERTS, M. A taxa de lucro mundial.
In: https://eleuterioprado.files.wordpress.com/2012/07/taxa-de-lucro-mundial.pdf
 RIFKIN, J. Implications of the third industrial revolution. In: http://www.theeuropean-magazine.com/jeremy-rifkin–2/9652-implications-of-the- third- industrial- rev olution
ROSDOLSKY, R.. Gênese e estrutura de O capital de Karl Marx. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001. 

 

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Libertário - professor de história, filosofia e sociologia .
2 Comentários
  • Daniel Feldmann

    Publicado no Grupo Revista Sinal de Menos

    RESPOSTA AO COMENTÁRIO DO MARCOS BARREIRA

    – Peço perdão por criar novo post mas não consegui postar minha resposta no post criado pelo Márcio
    Antes de tudo saúdo a leitura atenta do Marcos , agradeço os elogios, mas também agradeço os comentários críticos pois eles permitem fazer avançar o debate. Parte das críticas eu acato, mas há coisas que Marcos argumenta que vou tentar me contrapor nestas linhas. Tentarei num primeiro momento uma resposta mais enxuta, e depois se for o caso posso tentar ampliar melhor meus argumentos. Peço perdão por eventuais erros de português, mas não tive tempo de revisar.

    Antes de entrar nos pontos específicos, cabe contextualizar o intuito desse meu texto:

    1- Servir para eu mesmo organizar no pensamento as leituras e reflexões que tenho feito em cima do tema

    2- Difundir a tese do “limite absoluto”– tese que acho sim muito pertinente – para pessoas que não tem qualquer contato com ela ou ainda tem resistências prévias ao Kurz, etc. Ou seja o texto não pretende dialogar com toda a elaboração da crítica ao valor, mas apenas com este aspecto

    3- Apontar o que acho que são sim incongruências no Kurz na apresentação desta tese, que é o único dos autores da Krisis/Exit que acumulei mais leituras

    Digo isso, antes de tudo com objetivo de situar precisamente o que eu queria com o texto e assim explicar suas lacunas e debilidades.

    Agora, vou buscar responder as críticas do MArcos citando os parágrafos onde elas aparecem….

    No parágrafo que começa “Na primeira parte, podemos ler que há no capitalismo” e também no parágrafo seguinte do Marcos: Concordo que o conceito de riqueza material engloba valores de uso que não são mercadorias e que a tal riqueza não se resume àquela produzida pelo trabalho(vivo ou morto). Todavia, imprecisões minhas à parte, mantenho o sentido geral do texto. Pois o que justamente quis realçar é o fato de que no capitalismo contemporâneo a riqueza material – cuja esmagadora maioria é produzida pelas relações fetichistas de valor diferentemente de períodos anteriores de formação/imposição do capitalismo – cada vez mais prescinde do trabalho humano ao mesmo tempo que a relação-capital coloca o tempo de trabalho vivo como medida da sua autovalorização. Talvez pudesse ter redigido melhor tais passagens mas não acredito que tenha ocultado o “duplo caráter da mercadoria” na minha formulação. Apenas quis expressar de uma forma cristalina e didática que tal duplo caráter vive hoje a acentuação de sua contradição, contradição esta que justamente embasa a idéia de crise estrutural, etc. Por outro lado, a proposta do Marcos de trocar “Riqueza Material” por “produção capitalista de bens” me parece pouco satisfatória posto que justamente não salienta a DIFERENÇA entre dimensão da riqueza abstrata na forma de valor e a riqueza concreta da sociedade com suas diferentes qualidades e características. Evidentemente, que num caso e no outro estou me referindo ao modo de produção capitalista mas usar o conceito “produção capitalista de bens” para tratar da dimensão “valores de uso” pode causar confusão com a dimensão “valor como riqueza abstrata”.

    Acho ainda que justamente através da formulação que expus ao longo do meu texto é possível reforçar a frase do próprio Marcos que concordo, a saber: “O importante é compreender que a riqueza na sociedade capitalista não é apenas um conjunto de bens de uso, mas TAMBÉM riqueza em sentido abstrato”

    No parágrafo “isso tudo tem a ver com a crítica ao trabalho que fica de fora do comentário do Daniel”…De fato, como disse no início do texto, meu texto teve um objetivo mais limitado e não entrou nesse tema. Todavia, apenas de passagem, me parece que justamente a explicitação da oposição/contradição que defendi mais acima que Marcos critica deixa implícito que não é possível qualquer crítica emancipatória do ponto de vista do trabalho, mas apenas contra o trabalho. Além disso quando eu afirmo que “na medida em que o trabalho dos indivíduos só se torna social através da mediação de mercados”, “o trabalho torna-se também ele abstrato” etc não concordo que eu esteja aí defendendo qualquer ontologização do trabalho, nem mesmo de forma involuntária. Para evitarmos aqui uma disputa semântica ou uma batalha conceitual desnecessária sobre o conceito de trabalho: estou afirmando apenas que exclusivamente no capitalismo – e não história como um todo – a atividade humana de trabalho torna-se algo em geral, um fim em si, um puro dispêndio de energia como dizia Marx e assim passa a ser mensurada de forma abstrata como valor de forma independente de sua dimensão qualitativo-concreta(mesmo que esta última seja essencial como Marcos com razão insiste na definição da “dupla natureza”). Pelos mesmos motivos é apenas no capitalismo que a atividade humana de trabalho se socializa predominantemente via mediação mercantil, diferentemente de sociedades pré-capitalistas em que o trabalho era diretamente social no sentido de que não se separava das outras “esferas” da vida e da reprodução daquelas sociedades.

    No parágrafo “Uma mesma quantidade de trabalho”, não entendi porque a minha definição estaria truncada com uma concepção de “valor natural”. Creio que Marcos sustenta isso por me imputar uma certa ontologia do trabalho que busquei refutar logo acima. De toda forma, seria preciso seguindo tal lógica também imputar a mesma idéia de “valor natural” ao Ortlieb seguindo o raciocínio. Quando este último fala que “um aumento da produtividade não altera o valor” isso na minha visão é apenas outra forma de dizer como eu fiz “uma mesma quantidade de trabalho(…)sempre representa uma mesma quantidade de valor”. Ou seja, um mesmo tempo de trabalho(uma hora, por exemplo) pode produzir mais riqueza material(valores de uso) dada o aumento da produtividade mas do ponto de vista da valorização do capital trata-se sempre da mesma quantidade abstrata de valor.

    Ainda sobre este tema no parágrafo seguinte apenas uma observação sobre uma frase do Marcos que me pareceu confusa. ”O problema colocado pela teoria da crise não é só a diminuição do trabalho vivo, mas a dificuldade de explorar o trabalho restante de maneira produtiva (de mais-valia), isto é, de acordo com os índices de produtividade exigidos pelo mercado mundial.”

    Aqui penso que Marcos faz uma oposição equivocada entre diminuição do trabalho vivo e índices de produtividade exigidos pelo mercado mundial. Afinal, em essência, trata-se de um mesmo processo que reduz a massa de mais valia passível ser auferida. A questão é que para evitar-se confusões, penso tal processo deve ser captado de um ponto de vista dinâmico. Quando uma fábrica de um dado setor num país “atrasado” concorre no mercado mundial usando trabalho intensivo e com menor produtividade do que uma outra fábrica do mesmo setor em um país “adiantado” não se trata-se aqui AINDA de uma redução do valor globalmente produzido no setor mas sim da transferência de valor do país menos produtivo para o mais produtivo. Afinal, se não se leva isso conta disso seria preciso dizer que o trabalho abstrato no país “atrasado” – abstraindo diferenças de qualificação e intensidade – acrescenta menos valor ao capital que o trabalho abstrato no país “adiantado” o que retiraria toda a fundamentação da teoria do valor de Marx que sustenta a teoria da crise. Todo o problema é que a dinâmica do capitalismo da Terceira revolução industrial num segundo momento tende a impor muito rapidamente a reformulação tecnológica do país “atrasado” que do contrário fatalmente sucumbirá diante das novas técnicas diante de uma concorrência cada vez mais global e aberta. Assim, num segundo momento, conseguindo-se(através da “racionalização” da produção) ou não conseguindo-se(falência) acompanhar o padrão de produtividade “adiantado” – aí sim – o montante global de mais valia produzido do setor em questão se esvai jogando mais lenha na crise estrutural.

    É precisamente neste sentido que fiz a nota de rodapé no meu texto comentando sobre a China: hoje ela é evidentemente uma fonte substancial de mais valia para a economia mundial, mas os processos de “racionalização” e economia de mão de obra – que alías já se fazem presentes em larga escala inclusive na China – não permitem que daí surja uma válvula de escape duradoura para a crise estrutural do capital.
    Sobre a questão da queda da taxa de lucro que aparece nos últimos parágrafos no texto de Marcos. Aqui minha ressalva é tanto com o Marcos quanto com o Kurz. Insisto sim em usar este conceito e aqui não é por qualquer “fidelidade” ao velho Marx, mas porque ele é mais correto e menos ambíguo a meu ver. Aqui vamos por partes

    Afirma Marcos: “na perspectiva do Kurz, fazer o debate sobre a crise a partir de uma investigação sobre a queda (ou não) da “taxa de lucro” é confundir os níveis particular e global da produção capitalista – o tal “individualismo metodológico” fartamente criticado em “Dinheiro sem valor”. Já o ensaio de 1995, Kurz enfatiza a diferença entre “o cálculo particular do capital singular” e a “criação substancial de valor no plano da sociedade”.

    Aqui vamos por partes. A taxa de lucro a que me refiro – assim como Marx – jamais diz respeito a um cálculo individual ou particular de rentabilidade, mas sim à taxa global de lucro do capital como um todo. Desta forma uma taxa de lucro global em queda crônica e irrecuperável pode comportar lucros individuais fabulosos de determinados capitais, mas nem por isso ela deixaria de ser um sintoma muito profundo de uma crise estrutural. Isso me parece demasiado evidente ao longo de todo o debate do meu texto para retomar toda argumentação aqui.

    Marcos prossegue: “De qualquer forma, sempre na perspectiva do Kurz, a crise sistêmica não pode ser demonstrada empiricamente através de “rigorosos” cálculos de rentabilidade. Ela pode apenas ser observada a partir dos inúmeros sintomas empíricos de desagregação que se tornam cada vez mais visíveis – o que é, diga-se de passagem, uma base muito mais concreta- embora necessariamente imprecisa – do que qualquer modelo de cálculo”

    Em certo sentido eu concordo. Alías como Marcos leu bem o meu texto, certamente viu que toda a minha argumentação em prol da tese da queda da taxa de lucro prescindiu de estatísticas e se pautou em outras premissas. Por outro lado, não vejo sinceramente obstáculos instransponíveis para tentativas de aproximação mediada do debate da Krisis/Exit sobre a crise com estimativas empíricas por exemplo o professor Eleutério Prado tem feito. Muito pelo contrário. Inclusive porque isso poderia melhor iluminar os sintomas empíricos de desagregação que Marcos tem razão em apontar e que eu mesmo sugeri no meu texto.

    Ainda sobre o tema da taxa de lucro, Marcos afirma “”. A idéia de um declínio da massa de mais valia global é o centro da argumentação do Kurz em praticamente todos os seus textos sobre a crise(…)No fundo, o que o Daniel fez – e essa é a minha objeção mais séria ao seu texto – foi substituir a teoria da crise do trabalho produtor de mais valia por um determinismo tecnológico eliminador de trabalho vivo imputado ao Kurz.”

    Aqui há dois problemas distintos. Penso que a tese de Kurz de que estaria havendo uma redução da massa global da mais valia é correta, ao menos do ponto de vista dinâmico como comentei mais acima. Todavia, à despeito de ela ser aparentemente muito mais “radical” do que a tese da queda da taxa de lucro, ela em si mesma é pior como método de exposição para se sustentar a tese da crise sistêmica e estrutural do valor. Se assumimos que a relação capital consiste no eterno valorizar a si próprio, do ponto de vista lógico é sim factível que mesmo com uma redução da massa de global de mais-valia o capital prossiga se valorizando desde que o valor dos elementos de capital constante a serem acumulados futuramente caiam mais rápido do que a referida massa de “trabalho não pago”. Já a tendência estrutural à queda da taxa de lucro – e não algo conjuntural fruto de uma crise cíclica – mesmo que aparente pareça algo menos “bombástico” indica de forma mais cristalina a impossibilidade do prosseguimento da valorização continuada do valor e portanto desvelaria de forma mais nítida a crise estrutural. Do ponto de vista prático e não meramente lógico, penso que a tendência é a afirmação de ambos os fenômenos, ou seja, redução da massa global de mais-valia e queda da taxa de lucro.

    Já sobre a questão do meu suposto determinismo tecnológico em contraposição a visão de Kurz, penso que faltou ao Marcos elementos mais concretos em prol de tal posição. Talvez o problema aqui seja aqui mais uma vez mais de forma do que de conteúdo. Se Marcos chama de determinismo tecnológico a minha derivação da crise do valor a partir das transformações da Terceira Revolução Industrial, não tenho problema em aceitar tal “pecha”. Mas insisto que tal crítica – a menos que melhor elucidada por ele – é totalmente formal. Afinal, apenas se separássemos a forma técnica das relações sociais capitalistas faria sentido em dizer que eu sustento a tese de um deus ex-machina meramente tecnológico levando o capitalismo ao abismo, como se estivéssemos aqui reeditando a fórmula do antigo marxismo que derivava a vitória do socialismo do mero desenvolvimento das forças produtivas. Entretanto, repito aqui o que escrevi no texto “Nesta contradição estaria escancarado de maneira cabal o fato de que as relações fetichistas que governam a economia capitalista criam imperativos aos capitais tomados individualmente que do ponto de vista sistêmico acarretam uma crise insolúvel.” Assim me parece muito claro que indico que o processo que leva à crise reside no processo mesmo de “coisificação” do mundo a partir da generalização plena das relações capitalista no século XXI. É verdade que o texto dá muita ênfase para os aspectos mais puramente “econômicos”, mas isso como frisei isso guarda relação com os propósitos do textos explicitados no começa da minha resposta a Marcos

    Por fim no último parágrafo sobre o tema da privatização/monopolização do conhecimento. Confesso que dos textos que o Marcos indicou, eu apenas li algumas páginas do “Desvalor do conhecimento” a partir da sugestão do Daniel Cunha, depois de eu já ter escrito o meu texto. Se de fato já há a incorporação deste debate ao tema da crise do valor, etc, cometi por certo um equívoco.

    De toda forma, penso que o debate que o Marcos propõe é fértil e sugeriria aos editores da revista caso julguem viável e pertinente algum espaço no site para estes e mais comentários.

    Abraços, Daniel

  • Marcos Barreira
    Publicado no Grupo Revista Sinal de Menos

    SOBRE O TEXTO DE D. FELDMANN

    Achei interessantes as especulações de Daniel Feldmann sobre a teoria da crise de Kurz. Em linhas gerais, é um texto sério, que pensa a “crise final” do capitalismo como uma “hipótese” que precisa ser levada em consideração ao invés de ser rechaçada como “determinismo” ou “catastrofismo”. Tratar o Kurz com boa vontade é coisa incomum. Só isso já é motivo para comentar. Também chama atenção o caráter aberto da discussão proposta pelo Daniel, que é outro aspecto positivo. Tendo em vista que o texto foi produzido com o intuito de provocar o debate, aqui vai o meu comentário.

    A “hipótese” de uma “crise insolúvel” se baseia no fato de que, para contorná-la, a economia mundial precisaria desenvolver um novo mecanismo de incorporação em larga escala de mão de obra na produção e que fosse capaz de explorá-la de maneira rentável. Mas isso não apenas seria um “retrocesso” do ponto de vista das necessidades sociais, como é algo impossível no termos do próprio sistema. Como o Daniel diz: “Se os novos padrões de produção num dado setor econômico tendem a impor uma diminuição da quantidade de trabalho vivo com relação ao trabalho morto, a tentativa de se engendrar técnicas que ponham em movimento mais trabalhadores em nome de se ‘salvar’ globalmente o sistema em sua busca pela expansão do valor não implicam apenas num ‘retrocesso’, mas sim tendem a ser inviabilizadas pela concorrência e pelo processo de racionalização que não perdoaria a menor eficiência destes ‘capitalistas utópicos’”. Daí ele tira algumas conclusões importantes: “Afinal, se de fato é a própria produção de valor que está em questão, o eterno debate sobre as crises periódicas do capitalismo que tantas polêmicas incutiu no marxismo torna-se supérfluo”.

    Dito isso, a partir de agora enfatizo apenas os aspectos que considero mais problemáticos:

    Na primeira parte, podemos ler que há no capitalismo atual “um padrão estrutural de produção que torna cada vez mais o trabalho vivo redundante para a produção de riqueza”. É uma afirmação correta, mas que se mistura com outras que confundem os termos da argumentação do Kurz. Por exemplo, quando se diz que “os poderes, informações e conhecimentos acumulados da ciência e da tecnologia [são] cada vez mais os verdadeiros responsáveis pela RIQUEZA MATERIAL, cabendo ao esforço laboral humano um papel cada vez menor” [grifo meu]. Aqui o correto seria falar em “produção capitalista de bens” ao invés de “riqueza material”. Isso porque, em primeiro lugar, a “riqueza material” não se reduz aos produtos do trabalho e – o que é mais importante – não é a diminuição do trabalho na criação de riqueza material que está no centro da crise. Como diz C. P. Ortlieb, “

    “Para se compreender a produtividade e as suas mudanças é absolutamente necessário distinguir riqueza na forma de valor e riqueza material. Quando Marx afirma que o capital define o tempo de trabalho como a única medida e fonte da riqueza, ele está a discutir a RIQUEZA NA FORMA DE VALOR, uma forma historicamente específica de riqueza que é válida apenas para a sociedade capitalista e que constitui o seu núcleo interior. A riqueza material, por seu turno, é composta por valores de uso que podem ser ou não produzidos como mercadorias” [grifo meu].

    Num segundo momento do texto do Daniel, a riqueza material vai aparecer como a antípoda do valor: “A primeira [riqueza material] significa pura e simplesmente o conjunto de produtos concretos que satisfazem determinadas necessidades dos indivíduos. O segundo [valor] é uma medida abstrata e geral, expressão da forma mercantil da sociabilidade sob o capitalismo”. Ora, se um sujeito usa suas habilidades para produzir uma cadeira para o seu uso pessoal ou para vendê-la, isso é riqueza material em ambos os casos. Não existe essa oposição entre riqueza material e relação de valor, pelo fato de que o capitalismo não existe sem o aspecto concreto das mercadorias. Há, por outro lado, uma oposição entre bens de uso e mercadorias, entre relações sociais diretas e relações mediadas pelo valor. Mas, em ambos, produz-se riqueza material – além da riqueza material não produzida pelo trabalho. O importante é compreender que a riqueza na sociedade capitalista não é apenas um conjunto de bens de uso, mas TAMBÉM riqueza em sentido abstrato. Do mesmo modo, o trabalho abstrato, que é quantificado na produção de valor (riqueza abstrata), não deixa por isso de possuir um aspecto concreto. Como mercadoria, a força de trabalho possui a “dupla natureza” (Marx) de ser concreta e abstrata.
    Isso tudo tem a ver com a “crítica do trabalho”, que fica de fora do comentário do Daniel, embora ela seja um aspecto essencial da argumentação do Kurz. Em vários momentos isso é evidente, quando se diz algo como: “na medida em que o trabalho dos indivíduos só se torna social através da mediação de mercados”, “o trabalho torna-se também ele abstrato” etc… Para o Kurz, como se sabe, não há um trabalho ontológico que “se torna” social e, por isso mesmo, não existe algo que está pressuposto na “especulação” do Daniel: um “trabalho concreto” produtor de “riqueza material” em oposição ao valor. Tudo isso dificulta muito a compreensão da teoria da crise. Não vou entrar no debate sobre o conceito de trabalho. Destaco apenas alguns momentos em que ele aparece na obra Kurz: “A honra perdida do trabalho” (1991), “Pós-marxismo e fetiche do trabalho” (1995), e “A metafísica do trabalho” (1996). No primeiro, ele explica porque o conceito de “trabalho abstrato” já está contido na noção moderna de trabalho; o segundo desenvolve o tema da separação das esferas e as contradições no interior do pensamento do Marx; o terceiro trata do trabalho como relação “pressuposta”, isto é, a pré-história do trabalho nas formações pré-capitalistas e sua generalização na modernidade. Finalmente, em “A substância do capital” (2004 e 2005) o conceito de “trabalho abstrato” é analisado em conjunto com a teoria da crise.

    Voltando ao texto do Daniel:

    “Uma mesma quantidade de trabalho – desconsiderando-se diferenças de intensidade e complexidade – sempre representa uma mesma quantidade de valor” Não sei se compreendi bem o que o autor quer dizer nessa passagem, mas me parece haver aqui um conceito truncado de “valor natural” atribuído ao trabalho.

    Assim se explicaria a invariabilidade da relação trabalho-valor. Se o valor for visto como uma relação social e não como uma “propriedade” das coisas produzidas pelo trabalho, não há motivo para fazer tal afirmação. Por isso, Marx diz que “a uma massa crescente de riqueza material pode corresponder um decréscimo simultâneo da magnitude de valor”. Ou, na boa síntese de Ortlieb: “um aumento na produtividade (1) não altera o valor (medido em tempo de trabalho) dos bens produzidos num dado dia de trabalho; (2) aumenta, ao invés, a riqueza material produzida num dado dia de trabalho; e (3) diminui, consequentemente, o valor de cada produto individualmente considerado”.

    No que diz respeito mais diretamente ao resumo que Daniel faz do argumento do Kurz, também é preciso apontar alguns problemas:

    Falar em “retirada de cena do trabalho humano” é algo que tende a reduzir o problema da crise ao seu aspecto tecnológico. A posição de Kurz não é essa. Aqui seria preciso considerar o problema em termos de criação de valor e não apenas como diminuição dos postos de trabalho. Assim, pode-se compreender melhor a contradição em algumas economias emergentes (China, Índia, etc.) entre a utilização intensiva de mão-de-obra e a baixa produtividade em termos de valor: o que Kurz designou como “o retorno da mais-valia absoluta”. O problema colocado pela teoria da crise não é só a diminuição do trabalho vivo, mas a dificuldade de explorar o trabalho restante de maneira produtiva (de mais-valia), isto é, de acordo com os índices de produtividade exigidos pelo mercado mundial. Novamente, estamos diante da diferença entre a estrutura produtiva material e a produção capitalista de valor.

    Por isso, não é exata a afirmação atribuída ao Kurz de que “a nova ESTRUTURA TÉCNICA do capitalismo estaria criando novos padrões que estariam minando sua própria base de valorização: o TRABALHO VIVO” [grifos meus]. Reformulando a idéia a partir das considerações anteriores, eu diria que a perspectiva do Kurz é a seguinte: “a nova estrutura do capitalismo estaria criando novos padrões que estariam minando sua própria base de valorização: o trabalho produtivo”. Mas é claro que isso também implica uma revolução tecnológica que diminui o peso do trabalho vivo na PRODUÇÃO MATERIAL DIRETA. Aliás, o próprio Daniel diz, logo em seguida, algo semelhante: “Tal dinâmica suicida do ponto de vista do capital revela-se no fato deste último tornar cada vez mais desimportante o trabalho para a produção de riqueza” – o que vale tanto para a riqueza material quanto para riqueza abstrata, embora seja algo positivo no primeiro caso e negativo no segundo, pelo fato de a riqueza material estar presa à forma abstrata do valor.

    A partir da observação que fiz, no entanto, seria necessário apontar qual é a relação entre trabalho produtivo e produção material. Não vou entrar nesse assunto – que foi debatido de maneira mais detalhada em “A ascensão do dinheiro aos céus” (1995) – mas destaco que o Kurz formula um conceito de trabalho produtivo que não é imediatamente idêntico ao trabalho na produção industrial: “Se o conceito de trabalho produtivo se liga, nos termos da teoria da circulação, ao processo do ‘consumo produtivo’, todas as atividades e todos os produtos que não se esgotam nele tornam-se automaticamente um consumo social improdutivo, não importa se na sua forma exterior eles são mediados pelo Estado ou pelo capital privado. Só deste modo se obtém uma definição do trabalho produtivo transversal aos setores de reprodução, por meio da qual pode ser decifrado o próprio caráter ocultamente improdutivo daquela parte da produção ‘material’ e industrial, cujos produtos são consumidos de modo improdutivo”.

    Sobre os comentários da parte 2, é preciso dizer com ênfase que não é necessário “ligar” a reflexão de Kurz ao debate marxiano sobre a “Queda Tendencial da Taxa de Lucro”. A idéia de um declínio da massa de mais valia global é o centro da argumentação do Kurz em praticamente todos os seus textos sobre a crise. Basta uma olhada no “ensaio inaugural” da crítica do valor de Kurz “A crise do valor de troca” (1986). Também um ensaio mais recente, de C. P. Ortlieb, “Uma contradição entre matéria e forma” (2008), sobre a importância da produção de mais-valia relativa para a dinâmica de crise final. (Vale lembrar que, no mesmo ensaio, Ortlieb vai além do argumento original de Kurz, enfatizando também os “limites externos” [ecológicos] do capitalismo). Nesse sentido, a afirmação de que “Robert Kurz poucas vezes utiliza o conceito de taxa de lucro em seus textos” não é aceitável. No fundo, o que o Daniel fez – e essa é a minha objeção mais séria ao seu texto – foi substituir a teoria da crise do trabalho produtor de mais valia por um determinismo tecnológico eliminador de trabalho vivo imputado ao Kurz.

    Mais ainda: na perspectiva do Kurz, fazer o debate sobre a crise a partir de uma investigação sobre a queda (ou não) da “taxa de lucro” é confundir os níveis particular e global da produção capitalista – o tal “individualismo metodológico” fartamente criticado em “Dinheiro sem valor”. Já o ensaio de 1995, Kurz enfatiza a diferença entre “o cálculo particular do capital singular” e a “criação substancial de valor no plano da sociedade”. De qualquer forma, sempre na perspectiva do Kurz, a crise sistêmica não pode ser demonstrada empiricamente através de “rigorosos” cálculos de rentabilidade. Ela pode apenas ser observada a partir dos inúmeros sintomas empíricos de desagregação que se tornam cada vez mais visíveis – o que é, diga-se de passagem, uma base muito mais concreta- embora necessariamente imprecisa – do que qualquer modelo de cálculo…

    Na terceira parte do texto afirma-se, sem mais, que “até onde sabemos, não existe uma elaboração da parte dos referidos autores [da Krisis/Exit!] sobre o tema [tentativas de monopolizar e privatizar o conhecimento]. Aqui nos limitamos a indicar algumas leituras onde o tema em questão aparece em sua forma mais desenvolvida: o volume 31 da revista Krisis (2007), praticamente todo ele dedicado à “economia do conhecimento” e a crítica de Kurz a Lohoff, Meretz e Samol em “O desvalor do desconheciento” (2009) – e tb a crítica de Kurz a Negri em “O império e seus teóricos’, capítulo do livro “A Guerra de Ordenamento Mundial” (2003).

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