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O sol por testemunha – Marildo Menegat – o livro que estou lendo

arlindenor pedro
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O sol por testemunha  Ensaio  do professor Marildo Menegat para    o livro : “Loic Wacquant e a questão penal no capitalismo neoliberal”. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2012, organizado pela professora Vera Malaguti Batista 

Sinopse do livro

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Este livro condensa um debate que se desenvolveu ao longo dos últimos vinte anos, nos quais a questão criminal foi deslocada para o eixo central da vida política. Loïc Wacquant foi um dos pioneiros ao associar as políticas criminais disseminadas globalmente pelos meios de comunicação hegemônicos com o modelo estadunidense de deslocamento do estado previdenciário para o estado penal. Sua pesquisa de campo nos Estados Unidos demonstrou como a governamentalização da pobreza passa a desconstruir as redes públicas de assistência social, ao mesmo tempo em que desmoraliza e criminaliza as populações mais afetadas pela vitória do capitalismo vídeo-financeiro. 

 

No artigo inédito do sociólogo francês, encontramos uma espécie de estado de arte de suas ideias e pesquisas ao longo desses anos, com atualizações e refinamentos teóricos. Chamados ao debate, temos aqui um elenco de pensadores brasileiros e latinoamericanos que contribuem para seu aprofundamento a partir da nossa margem.

 

Temos, então, um diálogo transdisciplinar que atravessa a questão criminal pela Filosofia, Geografia, Psicanálise, Sociologia, Pedagogia, Comunicação, Direito Penal e Criminologia. Esperamos que esse rico debate consiga romper com aquilo que Loïc Wacquant denominou de “torturante contemporaneidade”, apontando novas possibilidades e perspectivas para essa discussão estratégica.

O Sol por testemunha 

Marildo Menegat *

As últimas décadas do século XX foram uma grande guinada na história do capitalismo, que o levou a aprofundar e a tornar dominante sua tendência à barbárie. Acumulando evidências empíricas de uma regressão em diferentes proporções e frentes, estes anos deixaram desnorteados todos os que, no embalo dos trinta anos gloriosos do pós-Segunda Guerra, imaginavam que finalmente a sociedade burguesa havia chegado a um estágio de equilíbrio e desenvolvimento em que parecia ser previsível a data de desaparecimento de inúmeras sequelas a ela inerentes, como a fome e as prisões. A princípio as evidências podiam não se traduzir necessariamente num fenômeno duradouro. Quando a persistência, porém, começou a incomodar, se iniciaram as avaliações conjunturais e particularizadas destes dados. Boa parte da literatura das ciências sociais deste período não foi mais do que técnicas de controle social com o objetivo de limitar a abrangência explicativa da relação entre as evidências empíricas e a compreensão de um quadro regressivo da vida social.

Dois acontecimentos contribuíram para a massa bruta destes dados empíricos: o colapso da periferia do capitalismo – incluído neste tanto a ruína do socialismo real como o início das décadas perdidas da América Latina – e o desemprego estrutural no centro. Deles deriva um conjunto de fatos aparentemente menores, como àqueles estudados pela criminologia, que fazem do cotidiano uma crônica de destrutividade sem fim.

Diante disso, não tardaram as profissões de fé otimistas, seguidas de umas vinte ou trinta prescrições normativas de como adequar sociedades fraturadas e conflagradas – em geral intimando a venda de vastos patrimônios estatais junto com a flexibilização da legislação -, no intuito de produzir a ilusão de que o barco em que a modernidade navega não se chocara num iceberg. No entanto, se produziu à margem deste esforço boçal de inventar ilusões sobre o que não existe mais, formulações que contribuem para um exercício de desvelamento desta realidade excessivamente árida. A obra de Wacquant faz parte destas formulações.

Combinando pesquisa sistemática sobre os dados empíricos com instigantes hipóteses de análise, ele pôde produzir uma abrangente explicação de época, recolhendo o que de melhor se produziu nas ciências sociais do período anterior e acrescentando novos e imprescindíveis conceitos para se entender o presente. Ou seja, há boas inovações teóricas que permitem compreender as mudanças da realidade e suas novidades sem reduzi-las a velhos chavões. Por tudo isso A onda punitiva é um acontecimento no campo da crítica social. Farei a seguir uma breve reconstrução do que julgo serem as principais contribuições de Wacquant, para depois assinalar uma crítica ao que considero os limites de sua abordagem sobre a explicação de época.

I.

A retomada de uma análise da sociedade burguesa a partir do conceito já clássico de campo burocrático, de Bourdieu, possibilitou retirar a massa de dados sobre a violência dos cantos mofados da crônica cotidiana, dando-lhes uma matéria comum aos debates acerca dos movimentos estruturais da sociedade e iluminando o caráter de diversas decisões políticas que foram se tornando comum nas últimas décadas. A resistência em politizar a violência cotidiana é algo que, nas ciências sociais, se assemelha a tara derivada de um tabu. Mesmo o grande livro de Foucault, Vigiar e punir, quando politizou o tema das prisões o fez em nome de um novo conceito de política – o de micro-física do poder. Wacquant percorre um caminho distinto. Sem recorrer diretamente a análises como a de Habermas da “mudança estrutural da esfera pública”, a tentativa de interpretar o grande encarceramento dos anos recentes na ótica do campo burocrático mostrou justamente o fim do período indicado pelo autor alemão, e, por conseguinte, uma nova mudança estrutural da esfera pública – agora na chave abertamente regressiva do Estado Penal. Na abordagem de Habermas tínhamos a nova configuração da política após a longa recaída na barbárie da sociedade ocidental entre os anos 1914-29-45. Nesta configuração a política de assistência adquiriu a forma de direitos sociais instituídos por uma luta de classes intermitente que, não obstante, não levou o processo de acumulação de capital a um limite que o inviabilizasse. O que parecia ser impossível no período que se abriu nas últimas décadas do séc. XIX, com as conquistas da redução da jornada de trabalho e um pequeno escopo de leis de proteção social, no pós-Segunda Guerra foi o eixo possível sobre o qual a sociedade burguesa nos países centrais foi reconstruída. Se acrescentarmos as intensas lutas por direitos civis nos anos 1960, como aquela realizada pelos negros norte-americanos, ou as lutas feministas, teremos, ao menos como uma ilusão com certo apoio material, a perspectiva de que a modernidade seria um tempo promissor de bem estar social num regime de ampla liberdade.

Por esta razão Wacquant insiste que as transformações em curso a partir dos anos 1990, que fazem das prisões um “órgão central do Estado”, dando visibilidade a um laço estruturante da ordem burguesa, são uma “reação de classe e racial” às lutas por direitos civis e suas conseqüências. Neste sentido, “a troca de mãos do Estado” assinalada pela onda punitiva é uma violência dirigida principalmente contra os negros e as mulheres, desmontando a política de assistência do período anterior. A fase persuasiva da adesão à ordem foi substituída por uma “lógica controladora em larga escala”. Antes a adesão era negociada a partir de ganhos, agora, da ameaça de perdas maiores. A passagem da legitimação do Estado de um plano ao outro é um fato notável desses tempos. Isto não quer dizer que o cimento social que sustenta o Estado Penal seja um bloco unitário, pelo contrário, as relações sociais estão de tal modo esgarçadas que termos como cimento social soam por quase uma ironia. Contudo, compreendida num nexo funcional, que é por onde esta sociedade se segura, esta nova tipologia de Estado foi um verdadeiro achado para se manter o que desmorona.

Esta abordagem da mudança estrutural regressiva da esfera pública de fato iluminou as relações de poder num espectro mais amplo do que as abordagens consolidadas na esteira de Foucault. Por se tratar da necessidade de contenção em larga escala de massas humanas refugadas pela lógica social da acumulação de capital, as prisões não podem mais ser analisadas pela chave de uma sociedade disciplinar, sem que, no entanto, a sociedade burguesa tenha deixado de recorrer à disciplina. Ela reforça uma dinâmica dual de contenção e disciplina. Ao que parece apenas a disciplina seria insuficiente, por demandar dos indivíduos a produção de uma exigente medida internalizada para aderir a uma ordem social sempre pouco recompensadora. Outrora esta medida foi mais fácil porque, de alguma forma, o arranjo social reservava um lugar a um número maior de indivíduos, enquanto agora se impõe simplesmente a contenção das massas sobrantes para que a continuidade da ordem social não seja afetada pela existência destas e suas necessidades. Sem desfazer o mérito da obra de Foucault, a abordagem de Wacquant sobre as prisões recoloca um elemento essencial que já estava contido no livro pioneiro de Rusche-Kirchheimer, ou seja, a análise da relação entre prisão e estrutura social. Ela reforça a concepção de que a dominação no capitalismo é um fenômeno macro-estrutural que exige uma crítica às suas formas sistêmicas, nas quais se inclui a relação orgânica entre a economia e o Estado.

II.

O início do processo de dissolução da forma social que se segue ao ponto de inflexão do colapso da modernidade, produz mudanças imensas no modo como são vividas as relações sociais. A sensação de que a aparência inabalada das coisas já não corresponde à sua verdade, de que está em curso um movimento que promete trincar suas formas, faz do presente a mera espera de um futuro que não se quer, a exemplo de quem aguarda um tsunami sem ter para onde correr. Tal sensação se espalha como uma nova espécie de mal-estar – desta vez, o de uma civilização em fim de linha. A representação de um processo desta grandeza é sempre muito difícil, principalmente quando se trata de um abalo sísmico regressivo como este em que o capitalismo ingressou. Preocupado com manifestações no campo cultural, que provavelmente tem sua origem neste mesmo movimento da história, Fredric Jameson buscou no conceito de “estrutura dos sentimentos”, de Raymond Williams, uma explicação para as transformações do que chamou de condição pós-moderna. Este conceito lhe permitiu

“[…] coordenar as novas formas de prática e de hábitos sociais e mentais […] e as novas formas de organização e de produção econômica que vem com as modificações do capitalismo […] nos últimos anos” .

A mudança das relações sociais no turbilhão do processo de dissolução da estrutura da sociedade pode perfeitamente ser incluída e entendida, nas suas consequências, como uma mudança estrutural dos sentimentos, a qual, pelo caráter regressivo destas transformações, não encontra representação razoável no cipoal das ilusões produzidas pelos funcionários da ordem. Esta mudança da estrutura dos sentimentos auxilia o entendimento, se aceitarmos a ampliação do seu raio explicativo para além da esfera da cultura, de porque a “insegurança social” se tornou um modo não apenas de se sentir que algo desmorona, sem, contudo, se saber efetivamente o que, como também um modo de se perceber o uso que deste sentimento é feito pelo campo burocrático, do qual retira boa parte da legitimação para suas políticas.

Acontece que o referido esgarçamento dos laços sociais é, de fato, uma ruptura interna a estes, não entre as classes ainda funcionais à acumulação de capital, mas destas com aquela massa que passou a ser o outro lado da fronteira do desmoronamento da sociedade e a representar um sentimento difuso de horror. Quando o exército industrial de reserva estava numa dimensão razoável em relação às necessidades do capital em expansão, todo contingente da massa que formava este exército podia ser concebida como parte da classe, uma vez que a sua funcionalidade na estrutura social era inconteste. No entanto, quando passou a ser necessário para a continuidade deste mesmo processo social que em torno de 700 pessoas para cada 100 mil habitantes sejam encarcerados, ou então, que 27 pessoas para cada 100 mil habitantes sejam mortos anualmente, ou mesmo, que se gaste em torno de doze meses em média para se encontrar um novo emprego, para os que ainda se mantém na procura, sem que isso produza uma crise política ou uma comoção coletiva, é que algo fundante da solidariedade social foi rompido. Dados como estes apontam que uma massa significativa de indivíduos tem sua reprodução como membros da sociedade jogada aos leões, numa sorte de seleção natural mais impiedosa da que Robson Crusoé encontrou naquela ilha selvagem perdida no Pacífico. Se incluirmos neste quadro o alcance e o carácter permanente de políticas de assistência como o Programa Fome Zero, no Brasil, teremos uma indicação sugestiva das mudanças qualitativas que houve nas relações sociais, tornando o horizonte comum de mobilidade das classes um relicário da galeria dos mitos, ao menos para esta massa posta no outro lado da margem da sociedade burguesa atual.

O Estado Penal não é, portanto, o resultado dos azares eleitorais em que uma “direita reacionária” pôde mobilizar conjunturalmente seu rancor contra o arranjo social dos trinta anos gloriosos. O que há de novo na sua tipologia não será encontrado, aliás, exatamente nas vitórias eleitorais da direita, como sustentam Garland, Young e outros, mas, como mostra Wacquant, nas vitórias eleitorais da social democracia metamorfoseada em Terceira via. Foram governos como os de Blair, Schröder, Jospin, d’Alema entre outros, quem protagonizaram as mudanças mais profundas desta versão contemporânea do Estado de exceção. No Brasil a escalada prisional começa nos anos FHC e prosseguiu sem trégua nos governos petistas.

A ironia da história presente neste dado mostra como foi profunda a mudança estrutural da esfera pública. A mesma social democracia que na Europa liderou a formação do Estado de bem-estar social, faz agora os ajustes regressivos para que a anêmica “valorização do valor” [Marx] se mantenha. Se nos anos 1950 empenhara seu capital político para sustentar a reconstrução da sociedade burguesa, nos anos 1990 ofereceu mais uma imodesta contribuição para que a crise aguda em que o capitalismo ingressou seja administrada sob a cortina de fumaça de que a política ainda pode ser uma esfera autônoma de decisões. Não é menor, sob o ponto de vista da legitimidade do processo social, o papel deste empenho. Mas, mais irônico ainda é o lugar da luta de classes nestas mudanças – algo que não é notado por Wacquant. É inegável que o Estado de bem-estar social não foi um resultado passivo de uma postura ilustrada da burguesia. A sua formação respondeu a um deslocamento de largas proporções não apenas das formas da produção: com o surgimento de novas forças produtivas como a eletricidade e o uso do petróleo; e de organização: com o surgimento de trustes, grandes monopólios e oligopólios, com a consequente intensificação do expansionismo imperialista pelo planeta, como das formas da política (o que Habermas chamou de “mudança estrutural da esfera pública” ).No que interessa neste caso, a luta de classes dos primeiros tempos da modernização capitalista, que Marx descreveu em As lutas de classe na França como uma explosão instintiva e imprevisível sob o prisma da permanência da ordem burguesa, foi finalmente domesticada após os grandes abalos que estabilizaram esta sociedade a partir de 1945. A institucionalização da luta de classes – sindicatos, partidos, jornais, revistas etc. – foi um lastro legitimador do Estado na sua transição do período clássico do capitalismo concorrencial para o capitalismo dos monopólios. Este lastro permaneceu no empenho recente da social democracia – a esta altura a única forma de representação eleitoralmente viável das classes subalternas – nas reformas neoliberais.

Como a crise estrutural da sociedade burguesa, que organiza o sentido da compreensão do tema da violência, apresenta tanto no centro como na periferia um aumento insolúvel do desemprego, diante de índices tão alarmantes de desocupados, o próprio emprego se tornou um ganho que, impensável em tempos anteriores, deve ser defendido a todo custo. Assim, se a institucionalização da luta de classes foi um passo necessário à integração da classe operária ao capitalismo; na medida em que a integração ganha mais força com a escassez de empregos, a institucionalização da luta de classes vai adquirindo o caráter de unidade sustentadora do que ainda se mantém nas acelerações dissolutivas da crise estrutural em atuação no presente. O que ocorre é que as classes foram reduzidas a sua verdade última, ou seja, a de serem diferentes modos de personificação do capital como um processo histórico e social alienado. Por isso o Estado Penal, como uma modalidade de Estado de exceção, pode subsistir sem problemas com o calendário eleitoral e as aparências da democracia burguesa. O apoio social que o legitima não está apenas nos extratos médios e altos da sociedade. Tal situação histórica explica a razão pela qual partidos como o PT, sem perder sua base social originária, puderam manter e incrementar políticas punitivas de massa – como o uso de tanques de guerra e fuzileiros navais na invasão do complexo do Alemão no Rio de Janeiro em 2010, ou mesmo a presença militar no Haiti – em meio a uma acirrada disputa pela presidência da república. De certo modo, o sentimento de insegurança social produz mais desconforto aos que ainda possuem empregos do que o horror em que o mundo do trabalho agoniza – crivado de modos arcaicos de intensificação e ampliação das jornadas, assim como de modernos modos de humilhação e redução crescente de direitos. Como os trabalhadores permanecem “abandonados às ‘leis naturais da produção’, isto é, à sua dependência do capital”, a ameaça está no lado de fora da fábrica, naquela ameaçadora massa apartada de qualquer meio – que não a assistência – para a realização de suas necessidades.

III.

O entendimento da “genuína inovação institucional” que o Estado Penal representa, como resposta a um quadro de insegurança social, ficaria restrito se não adentrasse na discussão das transformações econômicas dos últimos 30 anos. “Ao invés de descartar o neoliberalismo, como faz Garland, sob a alegação de ser ele um fenômeno ‘demasiadamente específico’ para explicar a escalada punitiva”, Wacquant se propõe a “passar de uma compreensão econômica para uma compreensão integralmente sociológica do fenômeno”. Neste movimento sua argumentação alcança densidade e amplitude de explicação de época. O conceito de neoliberalismo tem sido usado, grosso modo, para assinalar uma conjuntura que se abriu nos anos 1980 como resposta ao crescimento econômico medíocre ou mesmo a estagnação em países como a Inglaterra e Estados Unidos. Ao se propor a articular este conceito economicista com uma compreensão sociológica, Wacquant parece responder a uma demanda do que antigamente, quando se pensava dialeticamente sem inibições e medo de acusações arcaizantes, se chamava de compreensão da totalidade do processo social. Segundo ele a definição do neoliberalismo como

 “um arranjo de políticas favoráveis ao mercado, tais como a desregulamentação do trabalho, a mobilidade do capital, a privatização, a agenda monetária da deflação e autonomia financeira, a liberalização do comércio, concorrência entre zonas e a redução da taxação e dos gastos públicos”, é “estreita e incompleta”.

Nesta perspectiva, seria necessário acrescentar que tais políticas se transformaram num “projeto político transnacional que visa refazer o nexo entre mercado, Estado e cidadania a partir de cima” e “é levado adiante por uma nova classe dirigente global em formação”. Além das “prerrogativas do capital”, este conceito sociológico requer quatro lógicas institucionais: a desregulação econômica; a delegação, retração e recomposição do Estado de bem-estar social; um aparato penal em expansão, invasivo e proativo e; a alegoria cultural da responsabilidade individual. As formulações de O neoliberalismo: história e implicações, de David Harvey, servem de base a este debate de Wacquant. Sua intenção com a compreensão mais abrangente do termo neoliberalismo pode ser entendida claramente no confronto que faz entre Harvey e Garland. Enquanto este, como já observado, descarta o neoliberalismo como base da expansão punitiva contemporânea, o primeiro, por seu turno, mal menciona o aparato punitivo do Estado como uma característica deste período histórico. É necessário um exercício brutal de encobrimento da realidade para não admitir que os desdobramentos das políticas neoliberais são uma base material para o processo de insegurança social, sem a qual, este conceito perderia toda sua força explicativa e de convencimento. Como reconhece Wacquant

“as correntes de ansiedade social que agitam as sociedades avançadas têm suas raízes na insegurança social objetiva verificada no interior da classe trabalhadora pós-industrial, cujas condições materiais se deterioram com a difusão do trabalho assalariado instável e sub-remunerado, despojado dos ‘benefícios’ sociais costumeiros, e na insegurança subjetiva reinante entre as classes médias, cujas perspectivas de reprodução garantida ou de mobilidade vertical obscureceram-se”.

Com efeito, Harvey não inova muito ao analisar o Estado neste seu livro. A onda punitiva foge de suas lentes conceituais. Mas seria prematuro tomarmos apenas esta obra para traçarmos o quadro que este importante autor faz do presente. Sua linhagem teórica toma relativa distância do que Wacquant denomina de economicismo. Bastante influenciado por autores como Henri Lefebvre, o marxismo de Harvey é mais uma tentativa de ultrapassagem deste limite do que sua tosca repetição. Se levarmos em consideração sua trilogia formada pela Condição pós-moderna, O novo imperialismo, além da obra discutida por Wacquant, veremos que estamos diante de outra tentativa abrangente e densa de explicação desta difícil época. Conceitos por ele desenvolvidos, como o de “acumulação via espoliação”, ou de “coerção consentida”, que explicam o modus operandis das novas formas de dominação da periferia do capitalismo, não podem ser estranhos à compreensão do regime de exceção destes tempos. Paulo Arantes, por exemplo, no seu “Último round”, integra as formas de acumulação, na chave posta por Harvey, na lista das dominações extra econômicas que são parte intrínseca da liturgia do estado de exceção. Esta questão seria sem importância não fosse o detalhe de que sempre que Wacquant procura caracterizar o neoliberalismo o faz simplificando o entendimento mais profundo da centralidade que a dinâmica econômica adquire na atualidade da sociedade moderna.

Para Harvey o neoliberalismo não é uma conjuntura – como também não o é para Wacquant – mas, e aqui começam as diferenças, trata-se para ele de um processo social cujas exigências são determinadas pela necessidade da “valorização do valor”. É o conceito de capital e seu modo de ser, que constitui as características fundamentais das relações sociais, a razão de ser dos movimentos que impõe ao campo burocrático suas escolhas e racionalidade. O mais vulgar determinismo econômico que se tem notícias, não é um produto teórico do marxismo tradicional, mas da realidade do capitalismo contemporâneo. Assim, o capital não é um simples conceito restrito a economia, mas uma explicação substancial do modo de ser da sociedade moderna e sua modalidade de dominação impessoal determinada pelos imperativos da esfera da produção material.

Dessa abordagem decorrem dois aspectos importantes: o primeiro é que o arco subjetivo das escolhas da “grande e da pequena nobreza” que se engalfinham nas entranhas do Estado é reduzido pelos imperativos de gestão da crise. Ambas as nobrezas são variáveis de uma mesma lógica que se impõe de forma independente da vontade dos agentes através da dinâmica alienada deste tipo de sociedade – e isso explica em parte o empenho da social democracia na regulação do Estado Penal. O segundo aspecto é que explicações como “um novo regime econômico, baseado na hipermobilidade do capital e na flexibilidade do trabalho” pouco acrescentam além do anuncio de uma suposta materialidade que explica o movimento das políticas públicas. Por que a hipermobilidade do capital e a flexibilidade do trabalho tornaram-se imposições às lutas intestinas do campo burocrático estão longe de serem respondidas. Têm-se a impressão que um coelho foi tirado da cartola.

IV.

A crítica que o uso do conceito de campo burocrático produziu, abarcou uma boa descrição dos conflitos e do horizonte dos agentes em litígio no seu interior, mas não ampliou a compreensão dos aspectos estruturais que impulsionam o realismo destas escolhas. A questão é que as formas históricas e particulares do Estado, e o próprio Estado, como instituição reguladora da vida social, não é algo trans-histórico ao qual baste uma narrativa interna dos seus sucessivos conflitos para elucidarmos a compreensão de suas transformações. É a compreensão dos aspectos estruturais da sociedade burguesa e suas instituições que permite que se levante a hipótese de que esta forma social transitória e histórica atravessa uma crise provavelmente sem saídas. Tal forma social está sendo confrontada com seu limite lógico, e sua dissolução é um acontecimento de ordem semelhante à dissolução de outras sociedades do passado, como o escravismo antigo e o feudalismo, sem que isso autorize a dedução do modelo do seu fim a partir da simples repetição de qualquer um desses exemplos. Assim, sem perdas para a importância da análise de Wacquant, o problema do Estado de exceção não encontra sua explicação ‘em última instância’, no campo burocrático. Não se trata de uma crítica das trocas de mãos, mas da relação indissociável entre Estado e mercado, que parece ter chegado ao limite. A crise do capital inviabiliza o financiamento do Estado. Na boa síntese que Robert Kurz faz desta questão:

“se os custos antecipados, os efeitos secundários e os problemas subsequentes da produção de mercadorias – e, com isso, as atividades necessárias do Estado – crescem mais do que as rendas geradas pelo processo do mercado, então a expansão das finanças públicas pelo caminho regular da tributação não somente ameaça restringir, mas sufocar a continuação do processo de mercado, pois se o Estado somente pode prover a ‘forragem’ para a vaca leiteira monetária do mercado através do abate da vaca, então os limites do sistema ficam visíveis”.

Nessa linha de análise, que se inscreve numa crítica da economia política da barbárie, o Estado de exceção é uma tentativa de conter um processo posto pelo desenvolvimento contraditória do capitalismo. O sentido desta sociedade é uma pobre tautologia que, caso não se realize, põe o mundo abaixo. Seu principio motor é que o valor se transforme em mais valor. Sem a valorização permanente do valor as estruturas que sustentam a produção material da vida social entram em colapso. Não é um segredo para ninguém que o valor e a sua valorização são o resultado de uma medida produzida por um tipo específico de atividade produtiva, cujo quantum, medido pelo tempo de trabalho socialmente necessário presente em cada mercadoria, permite que a troca, na sociedade burguesa, tenha a função central de mediação social. Contudo, não é qualquer tipo de atividade, ou de trabalho, se se preferir, que produz valor. Este é o resultado apenas do trabalho produtivo. Sem entrar nas polêmicas sobre a definição de quais são realmente os trabalhos produtivos e quais os improdutivos – que ao invés de produzir valor somente o queimam -, o seu enunciado em abstrato aqui é o suficiente para que se diferencie qualquer tipo de trabalho do trabalho produtivo. A partir da redução da massa de trabalhadores empregada em trabalhos produtivos, o capital acaba tendo cada vez mais dificuldades para encontrar oportunidades de se valorizar. Nesse sentido, os dados da massa absoluta de pessoas trabalhando, frequentemente utilizados para se afirmar que nunca existiu tanta gente trabalhando, não revelam o aspecto qualitativo essencial, que é a quantidade relativa empregada em atividades produtoras de valor. Estas atividades sofreram um grande abalo com as transformações da chamada Terceira Revolução Tecno-científica, a qual se seguiu um desemprego em massa que tem relações diretas com este processo da onda punitiva. Como a permanente revolução das forças produtivas é uma condição de existência do capital, com as tecnologias da microeletrônica, a poupança de trabalho, que é o objetivo fundamental do desenvolvimento das forças produtivas na modernidade, ocorreu numa quantidade que afetou as possibilidades de manutenção da valorização do capital, ou seja, a própria continuidade do processo de acumulação que mantém em pé tais relações sociais.

Esta crise, portanto, tem uma natureza distinta daquelas do passado. Ao desnudar o limite lógico em que a dinâmica desta sociedade se reproduz, ela deixa a descoberto o caráter finito e transitório da mesma. Além disso, é esta mesma crise que explica a impossibilidade de se continuar financiando o arranjo social do Estado de bem estar, de onde se origina o processo de mudança para o Estado Penal descrito por Wacquant. Em tempos de poucas oportunidades de produção de novos valores, a expansão de funções do Estado que apenas consomem valores se torna, pela racionalidade legitimada da produção de capital, algo inviável. A contabilidade que o discurso neoliberal mobiliza para justificar suas medidas está sustentada na própria materialidade da produção e reprodução do capital. Ou seja, ela tem evidências empíricas no modo pelo qual a realidade da sociedade burguesa se produz, e não apenas em jogos ilusionistas. Neste sentido, a crítica desta sociedade somente terá força de transformação do real se ela partir da constatação de que não há mais remendos significativos – isto é, ganhos possíveis para todos – dentro desta forma social. Tudo o que ela pode oferecer é o espetáculo de horror já em curso e que a atual modalidade de Estado Penal é apenas o início, um posto avançado de contenção da dissolução – que será tentada à força e com mil artifícios, no intuito de manter o que não tem mais condições de possibilidade de existir. As formas sociais do passado que colapsaram não tiveram a força destrutiva acumulada da sociedade burguesa. O seu fim era uma conjunção da impossibilidade de continuar existindo, em decorrência de suas contradições internas e, pour cause, do enfraquecimento que esta situação criava. O capitalismo exala vigor por todos seus poros, mas não há mais como transformar valor em mais valor. Sua crise é por excesso, ele sofre de uma terrível conjunção de sobre acumulação e superprodução. É devido a este vigor que sua agonia se arrasta. O mundo é finito, demasiado finito para sua dinâmica abstrata de produção. Esta crise estrutural é o espetáculo assombroso de uma potência que tem o poder de produzir o calor do coração de uma estrela e, não obstante, deve se apagar. É improvável que isso ocorra sem que bilhões de pessoas se queimem.

*Marildo Menengat é  Pós-doutor em Filosofia pela USP e atualmente trabalha  como professor adjunto IV na Escola de Serviço Social da UFRJ. Sua pesquisa alia filosofia social, teoria crítica e crítica cultural na tentativa de compreender e enfrentar os impasses da modernização.

Loïc Wacquant é sociólogo, professor da Universidade da Califórnia-Berkeley e do Centro de Sociologie Européenne du Collège de France. É autor de vários livros, entre os quais Os condenados da cidade – Um estudo sobre a marginalidade avançada e O mistério do Ministério – Pierre Bourdieu e a política democrática, ambos publicados pela Revan.

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Libertário - professor de história, filosofia e sociologia .
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