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A linguagem das mercadorias em Marx  – Marildo Menegat – o livro que estou lendo  

arlindenor pedro
Por arlindenor pedro 20 leitura mínima

N

 Um galo sozinho não tece uma manhã:  

  ele precisará sempre de outros galos.

De um que apanhe esse grito que ele

e o lance a outro; de um outro galo

que apanhe o grito de um galo antes

e o lance a outro; e de outros galos

que com muitos outros galos se cruzem

os fios de sol de seus gritos de galo,

para que a manhã, desde uma teia tênue,

se vá tecendo, entre todos os galos.

 

(João Cabral de Melo Neto, Tecendo a manhã)

Ademar Bogo dispensa maiores apresentações. Sua escrita dura tem muitas semelhanças com um tipo popular de esculturas feitas a canivete. A beleza destas obras revela uma poesia tensa mantida no limiar da forma lacerada por talhos quase-precisos de um instrumento que tem mil serventias, e a representação de algum tema das necessidades do cotidiano das classes subalternas que, a despeito da urgência, não deixa de ser a expressão de uma revolta contra a feiura do mundo. Dos muitos livros que ele já escreveu, nenhum foge destas características: escritos militantes feitos no calor da hora que revelam uma curiosa temporalidade de maturação, aquela de algo muito importante a ser dito. A linguagem das mercadorias em Marx é isso, com muitas outras novidades. A começar pelo lugar onde foi escrito: um departamento de pós-graduação em filosofia. Depois o tema, na aparência, última moda nas boutiques em Standfort University. Mas não é isso. Quer dizer, o lugar é, porém, a aparência é outra conversa.

Para entender estes jogos entre ser e não-ser que ao fim nos revelam um autor na plena progressão do seu pensamento, seria recomendável nos perguntarmos como a experiência vivida dos movimentos que a sociedade burguesa realizou nos últimos decênios participa de suas escolhas? Encalhada nos anos 1990 num crescimento vegetativo, em que as crises se repetiam mundo afora de forma entediante, cada qual mais grave do que a outra e arrastando contingentes imensos de populações para o buraco da ruína, onde jazem países em processos de desindustrialização, massas humanas expulsas de seus modos de subsistência e obrigadas a viver sem trabalho em cidades à beira do caos, dominadas por ‘surtos epidêmicos de violência’ e sustentadas por caridade internacional; o capitalismo viveu, no início do século XXI, uma aparente estabilidade e bonança, com anos seguidos de crescimento empurrados por sucessões de bolhas. Contudo, como toda aparência fabricada, que precisa se desligar da essência que a produz e exige sua existência, invertendo com esta as posições, criando um biombo admirável de um mundo de olhos puxados, de uma distante providência asiática, tal aparência, como dizíamos, não teve a força objetiva do convencimento de que este século seria melhor do que o finado. Os sinais de destruição já estão por ai para quem tiver olhos para perceber. Não faltaram, porém, neste período autores que tentaram tomar como tendências duradouras o que se produzia e se dissipava na curta duração. Por exemplo, a dissolução macabra do mundo do trabalho provocada pelos limites lógicos do capital, incapaz de continuar sua acumulação e expansão, foi equivocadamente lida como uma mera reestruturação da produção. E diante de forças produtivas que não cabem mais nestas relações sociais, pois eliminaram o que as fundamenta, mesmo que essencial para a sua manutenção, não foram poucos os que viram nisso uma nova hegemonia da burguesia globalizada.

Ademar Bogo, por certo, procurou a universidade como um ato de distanciamento, destes tão comuns às técnicas do teatro épico e imprescindíveis quando a repetição dos afazeres militantes e da vida obliteram a compreensão mais profunda da experiência do que está em curso no tempo presente. Neste meio não abandonou seu canivete nem seus temas. Ao que parece, foi apenas em busca de refúgio para pensar, não fazendo disso uma adesão conformista a uma instituição conservadora. O problema que o move, ao que parece, é a busca de compreensão da realidade que não se explica mais pelas velhas fórmulas. Há traços neste seu livro de um acerto de contas com determinadas leituras regressivas e reducionistas do marxismo tradicional que servem apenas (quando muito) para dias de festa e fanfarra. Tais leituras dizem somente o que todos querem continuar ouvindo. Estranhamente mais escondem a verdade e confundem o seu entendimento do que a esclarecem. O estudo de uma possível linguagem das mercadorias na qual se encontrariam ocultos aspectos determinantes da dinâmica social que se efetiva às costas dos indivíduos anda por outra perspectiva da crítica do capitalismo. Ela se explica por uma premissa tomada de uma passagem sobre o fetichismo das mercadorias de O Capital de Marx, que poderia ser resumida da seguinte forma: a objetividade reflexa constitutiva da vida social se tornou um mecanismo autonomizado e inacessível ao governo consciente dos seres humanos que, a despeito de o terem criado, os governa imperativamente. Feuerbach produziu escândalo quando enunciou no seu A essência do cristianismo, que não era deus quem criara o homem a sua imagem e semelhança, mas o inverso. Esta inversão tornara-se alheia aos seus criadores e podia, agora, transformada num poder autonomizado, submetê-los a relações de obediência e concepções mistificadas do mundo. A tese de Marx, como vimos, é mais complexa e radical e só pode ser explicitada por meio de uma analise dialética da realidade capaz de dar conta da origem e do desenvolvimento deste processo social, cujo sentido finito e histórico aponta para contradições dissolutivas que lhe são inerentes e incontornáveis. O escândalo desta afirmação, porém, não é menor, mas seus desdobramentos são muito mais importantes para o futuro da humanidade, pois, não se trata da cura de uma neurose coletiva que a ilusão religiosa constitui, como pensou Freud, mas de criar outro modo de produção para que a vida humana ainda seja possível.

A linguagem tem uma existência independente do indivíduo, mas é um instrumento sem igual para a expressão deste e sua comunicação com o outro, a ponto de se confundirem os universos. Ou seja, têm-se muito mais a impressão de que conduzimos a linguagem conforme as nossas vontades e necessidades do que o inverso, apesar desta ser inviável sem regras e convenções. Contudo, quando observamos a lógica das mercadorias (que é propriamente a sua linguagem) e o processo social que se constitui a partir da sua produção, constatamos que sua independência dos indivíduo é quase-absoluta, e que apenas por engano ela pode servir de expressão para a subjetividade de alguém. É a mercadoria quem conduz pela mão o produtor e lhe apresenta o mundo. Desenvolta e sedutora, sente-se neste como se fosse sua única cidadã. Ela expressa uma linguagem social não reflexiva, que é a determinação do valor que tem por sentido fazer de sua existência a tautológica multiplicação de si mesmo. Portanto, o valor é uma linguagem sem sujeito que comanda os indivíduos. Sua perfeita expressão é a ausência de caráter do dinheiro que, não por acaso, é o equivalente universal das mediações estabelecidas nas ralações de troca. Podemos manejar com muita dificuldade a linguagem com que nos comunicamos com os outros, que exige certo estoque de saberes, conhecimentos mínimos de regras e habilidades da personalidade transmitidas pelos grupos de origem e pela sociedade como um todo, mas ninguém precisa de muita destreza para se submeter à linguagem das mercadorias. Ela é aprendida como se fosse uma lei natural, da mesma forma que uma criança aprende por sua própria insistência a resistir à força da gravidade se quer se mover. Quem não o faz está perdido para estas relações sociais e terá dificuldades em realizar suas necessidades mais básicas. Mesmo assim, no atual contexto histórico, estar diretamente ao dispor destas relações de dominação é um perverso privilégio.

Quais seriam, então, realmente as condições possíveis de entendimento substantivo entre os indivíduos numa forma social reflexa? Não foi bem esta pergunta que animou a linguist turn da filosofia acadêmica desde os anos 1950 na confluência do Atlântico Norte, mas foram certamente as consequências da ausência de uma boa resposta a esta pergunta que motivou autores como J. Austin, L. Wittgenstein e outros a escreverem suas obras deste período. A crise do capitalismo iniciada por volta de 1914, e que se prolongou até a metade do século XX, produzindo horrores que a palavra não estava ‘acostumada a habitar’ – por mera convenção, provavelmente -, foi uma razão mais do que suficiente para se tentar uma intervenção no governo desta realidade. Ante o inclemente poder totalitário da esfera da produção autonomizada, e todas as catástrofes que isto produz, como a guerra total, a bomba atômica e os campos de extermínio, a filosofia da linguagem pretendeu restituir um interlúdio social ainda governado pelo valor de uso e minimamente crítico à hipocrisia do poder do dinheiro. Esta ingênua pretensão, não destituída de boas intenções da parte de alguns de seus proponentes, pouco pôde falar sobre os hieróglifos sociais que as mercadorias escrevem em ciladas sem volta que o seu domínio nos coloca. Não há entendimento possível entre os seres humanos de todo o planeta enquanto as mercadorias determinarem os laços sociais. Neste sentido, ficamos presos a uma situação esdrúxula, enquanto o entendimento habita uma linguagem impotente, o desentendimento domina o reino das necessidades, de onde provém as condições materiais da existência de todos. Em outras palavras, a produção social está longe de ser um meio destituído de violência e sua maior contradição não é um dissenso distributivo entre as classes, mas a irracionalidade de um modo de produção incapaz de dar conta da reprodução social de bilhões de seres humanos e que apenas se mantém por meio da destruição ampliada. Este é o problema da humanidade hoje e sua solução passa por silenciar as mercadorias, criando outras formas diretas de mediação social entre os indivíduos, nas quais a linguagem comunicativa de fato possa vir a ter uma proeminência. Enquanto isso não se realiza, a crítica do valor se faz necessária. Ela tem a função de desmistificar as relações de dominação fetichistas e suas formas de racionalidade, em que o arcaico se presentifica na incapacidade dos indivíduos associados se libertarem da dominação de potências enfeitiçadas criadas por eles mesmos. Um exemplo da presentificação do arcaico é o pressuposto ‘ilustrado’ de que às formas fundamentais da sociedade burguesa corresponderia uma verdade antropológica na qual características históricas da humanidade deveriam ser tomadas como ontológicas e que, como corolário obrigatório, se traduziriam numa compreensão naturalizada deste modo de produção da vida. Esta naturalização de determinadas formas do ser social postas em questão, aliás, pelo atual nível de desenvolvimento do capitalismo e suas forças produtivas, pelo que se concebe deste pressuposto, não poderiam jamais ser modificadas. Participam destes obscurecimentos arcaizantes da razão e do horizonte histórico não poucos, entre eles, as outrora forças ‘progressistas’ – que a esta altura já estão em vias de autoextinção.

Se as mercadorias se autonomizam, virando as costas a seus produtores, e realizam as mediações sociais, entabulando uma série de metamorfoses, cuja última é a transformação do dinheiro em capital que, por sua vez, precisa novamente comprar meios de produção e contratar trabalho para continuar estes ciclos em quantidades de valor acumulado sempre maior; e se o que de fato se troca é uma determinada quantidade de tempo de trabalho presente em todas mercadorias, então, o trabalho, como atividade humana produtiva, não é um meio para prover a existência material da espécie, mas um fim em si mesmo que fornece a substância para que a série de metamorfoses essenciais para a acumulação do capital como um processo inconsciente continue se realizando. Ora, poderíamos nos perguntar, por que razão o trabalho, que existe como esse fundamento do ser social no capitalismo, deveria ser transformado num modo de ser trans-histórico? Neste sentido, uma crítica da linguagem das mercadorias não seria também, por excelência, uma crítica desta atividade sobre a qual este modo de produção se alicerça? Criticar as mercadorias é criticar seu modo de produção e não apenas sua injusta distribuição realizada a partir de trocas em condições de exploração. A violência da produção de mercadorias não é suprimida ao se instituir uma troca justa, pois a forma mercadoria pressupõe, como dito acima, o posicionamento de um processo autônomo que se realiza sem o nosso governo. Ela é um modo historicamente determinado de divisão social do trabalho que sai ileso da fórmula da troca igual. Na Ideologia Alemã, Marx-Engels já falavam disto: “em todas as revoluções anteriores a forma da atividade permaneceu intocada, e tratava-se apenas de instaurar uma outra forma de distribuição dessa atividade, uma nova distribuição do trabalho entre outras pessoas, enquanto a revolução comunista volta-se contra a forma da atividade existente até então, suprime o trabalho e supera a dominação de todas as classes ao superar as próprias classes […]” (Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 42 – grifos meus).

Este sinal Bogo não avança. Sua análise da linguagem das mercadorias ficou restrita ao processo de circulação. Mas esta já se configura como um marco histórico. No anos 1920 dois livros importantes trataram deste assunto no campo do marxismo, para serem posteriormente silenciados. Nos últimos anos uma abordagem crítica deste mecanismo sinistro que alimenta o capital, nos moldes de uma crítica do valor, mesmo que nem sempre intencional, se tornou um pouco mais frequente. Trata-se de uma contra-intuição que confronta as tentativas cada vez mais desesperadas de conceber o capitalismo como uma sociedade eterna. Ele não terá vida longa, isto está claro, mas disso não se concluí que uma sociedade melhor está por vir. As formas de regressão à barbárie se multiplicam. Um caso dessa ordem poderia ser encontrado na chamada Reforma Agrária de Mercado. Este mecanismo pretendia distribuir terras por meio dos instrumentos do mercado, oferecendo crédito aos sem terra para comprarem seus lotes. Sem dúvida é uma perversão. Toma-se uma massa humana refugada pela própria lógica em crise da acumulação de capital e se a reintroduz no circuito econômico como ‘sujeitos monetários endividados’. Literalmente: se suga do bagaço uma última gota. Que diferença substancial há, porém, neste mecanismo com outro que se impõe aos assentados da Reforma Agrária que conquistaram suas terras na luta com ocupações, em que as política públicas os obrigam a tomar financiamentos para a produção, se querem ser minimamente viáveis economicamente num tempo de competição brutal, em pacotes que, desde a cultura a ser plantada à máquina a ser comprada, passando pelo defensivo agrícola e a assistência técnica, tudo está tão rigidamente determinado numa sinergia de acréscimos de valor da ‘cadeia produtiva’ que o produtor, antes dominado pelas cruas necessidades básicas de sua existência como um sujeito monetário sem dinheiro, transformou-se agora num escravo ‘voluntário’ dominado por um sistema que o endivida e exige dele jornadas de trabalho de 12 a 14 horas para ainda manter, se tiver sorte, sua propriedade?

Não sei o que Bogo pensa quando está matutando, mas acredito que algo do que vai acima dito o atormenta diariamente pouco antes de ouvir o galo cantar. Não saberia dizer se A linguagem das mercadorias se tornará um canto. Talvez o melhor seja esperar o dia nascer.

 

IMG_2149Marildo Menegat – é Pós-doutor em Filosofia pela USP e atualmente trabalha como professor adjunto IV na Escola de Serviço Social da UFRJ. Sua pesquisa alia filosofia social, teoria crítica e crítica cultural na tentativa de compreender e enfrentar os impasses da modernização.

Ademar Bogus tem Licienciatura  em Letras Vernáculas pela Universidade do Estado da Bahia image– Departamento de Educação Campus X, Bacharel em Filosofia pela Universidade Sul de Santa Catarina (UNISUL), Mestrado e Doutorado em Filosofia na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Escritor , agricultor, professor de Filoso- fia e Filosofia do Direito na Faculdade do Sul da Bahia – FASB. Membro do corpo editorial do blog marxismo21, e militante das causas socialistas.

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Libertário - professor de história, filosofia e sociologia .
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