Dentre as diversas interpretações que podemos dar a mais conhecida alegoria que nos legou a filosofia dos gregos antigos – o famoso mito da caverna , de Platão – está aquela que constata a vivência de seres humanos alienados sobrevivendo em um mundo totalmente fictício . A situação ali descrita é tão fora de sentido que julgamos ser totalmente impossível que isto possa acontecer de fato – que possa ser real . Por isto classificamos tal parábola na categoria de um mito – algo que está além da realidade.
Inoculados pelos preceitos da razão iluminista tornou -se muito difícil para o homem moderno trabalhar com conceitos por demais abstratos, como este que citei anteriormente . Acredito que talvez venha daí o esquecimento por parte do marxismo tradicional das abordagens feitas por Marx sob o caráter fetichista da mercadoria e que só se tornaram mais evidentes após a publicação dos Grundrisses nos meados do século XX .
Ali Marx torna mais claro o processo de construção do mais enigmático capítulo da sua obra O Capital – a parte concluinte sobre o fetiche da mercadoria, onde ele nos mostra que para os homens esta possui uma dupla existência: por um lado, é o objeto concreto ou mesmo virtual, algo útil que é de alguma forma consumida, sensível, física, palpável; por outro, é um objeto abstrato, um receptáculo que corporifica um determinado tempo de trabalho ( algo impossível de se perceber por meio dos sentidos, metafísico, impalpável) mas que, paradoxalmente, serve de parâmetro para fixar o seu valor .
Em função disto, ele nos diz que acreditar que as mercadorias «contêm» trabalho, um trabalho abstrato, e a partir daí fixar o seu valor (algo plenamente aceito por todos na sociedade mercantil) seria em última instância uma ficção, e isto na verdade se consubstanciaria em um fetichismo, um totemismo moderno, pois este comportamento não possuiria nenhuma base racional .
Pensadores marxistas, tais como Isaak Rubin ( A Teoria Marxista do Valor) e György Lukács ( História e Consciência de Classe ) , no início do século passado , já tinham se debruçado sobre este fenômeno , mas prisioneiros da lógica da luta de classes e vivendo a expansão do capitalismo no seu período fordista, não puderam aprofundar o seu olhar além desses contornos, talvez por que eles acreditavam na existência de um pretenso sujeito proletário, que emanciparia a humanidade através da sociedade que iria ser construida após a tomada do poder político e a instauração de uma ditadura de uma vanguarda partidária .
Guy Debord ( Sociedade do Espetáculo) , de um lado e as reflexões da Escola de Frankfurt, por outro, alargaram a nossa compreensão sobre esta característica da mercadoria , mas com uma revolução da microeletrônica ainda não totalizada, não puderam ver na sua plenitude o capital tornar dispensável o trabalho abstrato, e através da junção da ciência e tecnologia , com o concurso das máquinas, entrar num período onde as riquesas seriam obtidas abrindo- se mão do valor criado pela força de trabalho humana- sem a mais valia . A crise que a décadas assola as principais potências capitalista da Europa tem dentro de si um importante viés de desemprego.
Nos últimos anos, rompida a euforia do crescimento através dos altos preços das commodity os brasileiros tomaram consciência desta crise e deste viés, que outros povos já viviam – a crise da sociedade do trabalho – e, ao olhar para si perceberam que de repente a indústria e os setores da economia real não mais existiam de fato . Subjulgado pelo setor financeiro da economia a indústria definhou . Toda a economia tinha se financeirizado, e o emprego se foi .
Um imenso país , uma das maiores economias capitalistas do mundo , se transformou, de forma acelerada, em um mero exportador de matérias primas e alimentos , decrescendo seu parque industrial e reduzindo os seus postos de trabalho. Os setores rentistas dominam o país , submetendo-o através de uma dívida pública descomunal – impagável. Ao mesmo tempo, como o homem é o espelho do seu tempo, prevaleceu no seu imaginário um sujeito burguês, criado para dar suporte a este sistema, profundamente identificado com o mercado de consumo , narcisista , predador e individualista.
Para se contrapor a esta realidade, sonham então alguns ativistas do movimento popular no Brasil com uma volta a um padrão de capitalismo fora desta lógica do capital financeiro, não percebendo que tal coisa é totalmente impossível, pois trata-se- ia aqui de um momento da economia mundial , onde o núcleo central do capitalismo contemporâneo sofre de insuficiência dinâmica, dado que a mais-valia gerada é crescentemente insuficiente para remunerar o volume de capital existente em nível adequado, tornando-se por isso incapaz de sustentar o crescimento do sistema.
Diante desta insuficiência dinâmica do capitalismo, ou seja, de sua perda de capacidade para gerar mais-valia suficiente para a acumulação de capital, vemos que ocorre então uma exacerbação da acumulação de capital na esfera financeira cujo destino inexorável será resultar num estouro, ou seja, num colapso – o encilhamento do capital fictício .Tal fato ainda não ocorreu na sua plenitude devido à sustentação desta política suicida pelos cofres dos Estados Nacionais, que já estão mostrando sinais de exaustão .
Quem no mundo real da sociedade do trabalho poderia imaginar uma fase do capitalismo como esta que estarmos estamos vivendo, onde o capital fictício se colocou de tal forma determinante que toda a sociedade por ele globalizada entrou em um delírio paranoico de total abstração da vida vivida ? Como entender uma sociedade que se sustenta pela lógica de um dinheiro sem valor , que submete todo o processo produtivo , numa fuga constante para frente, através do endividamento das bolsas, de lucros futuros ?
Estariam então os brasileiros e também toda a humanidade fadados a viver eternamente enredados nesta caverna que eles criaram e que em última instância é o instrumento que os escraviza ? Existem limites para a sociedade criada pelo capital fictício e o sujeito burguês aí gerado – narcisista e violento ? É possível para a humanidade obter a emancipação sem ter que se aprofundar no precipício da barbárie que poderá nos levar a extinção ?
A única lógica possível para superarmos tal paradoxo seria a negação no momento presente de todas as categorias que sustentam a sociedade da mercadoria : a lógica capitalista da apropriação da mais valia que se faz através da dimensão ideológica da conexão da forma social, que vai para além das classes e das nações e é objectivada em termos históricos, através do trabalho abstracto, do valor, da forma mercadoria, do dinheiro, da produção em regime de economia empresarial, do mercado mundial e do Estado .
Trata-se-ia então , assim como pensou Ernesth Bloch , da superação do que já-se-efetivou pela esperança do que ainda-não-veio-a-ser – para ele uma categoria da práxis das potencialidades imanentes do ser que ainda não foram exteriorizadas, mas que constituiriam uma força dinâmica que projetaria o ser para o futuro . O futuro deixaria de ser insondável para vincular a realidade como expectativa de libertação e desalienação.
Tal postura perante o mundo só pode se efetivar através de um antisujeito que negue radicalmente o sujeito burguês criado pelo capitalismo contemporâneo – o sujeito da sociedade da mercadoria- por ser ele portador de uma cultura negativa que se confrontaria radicalmente com os valores consumistas de uma realidade que precisa ser superada .E ele se construiria numa práxis emancipatória, negando o mundo do capital e seus valores , tais como a política institucional , partidos, eleições representativas ,etc.
Ao recusar e ao se contrapor como cidadão à política de austeridade instituída pelo capitalismo em crise , o antisujeito se afirma , não abrindo mão ao acesso aos elementos básicos da vida como transporte, saúde, educação, água,moradia, etc, não aceitando passivamente a explicação do Estado que alega não ter dinheiro , chegando mesmo as condições de apropriar-se diretamente dos recursos que julgar necessário para sua sobrevivência. Neste confronto , onde ele afirma a rebeldia, a desobediência civil e o entendimento da vida para fora da lógica da mercadoria, está a sua saída para um sistema que já não oferece nenhum futuro para a humanidade .
Serra da Mantiqueira, dezembro de 2015
Arlindenor Pedro