Prisioneiro do Fetiche !
“Verdade tropical: um percurso de nosso tempo” , de Roberto Schwarz é uma leitura imprescindível para aqueles que têm interesse em conhecer a figura enigmática do cantor Caetano Veloso , que nos é mostrada através do seu livro “Verdade Tropical ” , que veio à público no ano de 1997 .
Escrito em 2011, ou seja 15 depois, o texto faz uma análise dos caminhos relatados pelo artista nesta quase auto biografia, onde o músico nos mostra a sua concepção do seu amadurecimento artístico, estético ou por que não dizer : político, tendo como pano de fundo o Brasil interiorano dos anos 60 ( o Brasil de antes do golpe militar de 64 ), até a eclosão do movimento tropicalista e a posterior prisão e exílio do cantor .
Guiados pelo professor Roberto Schwarz, é possível ir além do relato do artista descobrindo mesmo peculiaridades da sua estruturação de pensamento , que nortearam sua postura pública durante os anos de sua exposição como ser midiático .
Caetano é um ser complexo e deve ser analisado com muita atenção . Antes de ser um personagem ( que é o que conhecemos pela mídia ) é um ser humano, e portanto passível das tensões do seu tempo . Ou seja, um sujeito da contemporaneidade, sendo moldado pelas forças sociais em choque da sociedade onde vive .
Schwartz tenta nos mostrar o que ele pensa , e aponta os caminhos que o ser Caetano busca tomar : buscando a liberdade e não querendo se sujeitar a camisa de força do pensamento engessado da chamada ‘ esquerda ” da época se arrisca a pensar ” diferente ” , e neste sentido desenvolve uma luta constante contra os cânones de pensamento da intelectualidade de plantão , notadamente de esquerda .
O ápice do texto do professor ocorre quando ele nos mostra uma reação que tem Caetano quando vê uma cena do filme de Glauber, “Terra em Transe” , quando então o artista diverge claramente da visão preponderantes dos seus amigos de esquerda e vê ali, naquela cena, um momento de plena emancipação intelectual :
” Assim, quando Caetano faz suas as palavras de Paulo Martins, constatando e saudando através delas a “morte do populismo”, do “próprio respeito que os melhores sentiam pelos homens do povo”, é o começo de um novo tempo que ele deseja marcar, um tempo em que a dívida histórico-social com os de baixo — talvez o motor principal do pensamento crítico brasileiro desde o Abolicionismo — deixou de existir.” ( Schwartz) .
Sabemos que para o artista, em geral, o seu mundo é a totalidade . E pensando assim, ele exagera o seu papel e se julga um ser imprescindível para a mudança da realidade social . Isto fica claro, no livro do Caetano, quando da sua prisão onde ele relata os diálogos que travou com os agentes da repressão. Ele está orgulhoso e julga que o que faz, suas atitudes e obras , são elementos mais importantes, por exemplo, do que as ações políticas, armadas ou não, dos demais insurgentes que lutam contra a ditadura .
E é assim que Caetano norteia sua carreira : esgrimindo sempre contra a esquerda , embora dela não querendo se afastar , busca o seu próprio caminho – um caminho original, único . Sendo assim é capaz mesmo de aprovar o incêndio do prédio da Une perpetrado pelas ordas do MAC em 1964, tudo para mostrar sua total independência do pensamento de esquerda .
Mas , cabe aqui a pergunta : existe mesmo este caminho, original , que o artista busca alcançar ? Será o artista realmente senhor da sua criação , tento o livre arbítrio , exercendo, pois, na sua plenitude, a liberdade existencial? Ou então : como exercer plenamente esta liberdade dentro da estrutura da indústria cultural, já por demais conhecida e estudada por Adorno ? Responderemos aqui, então , que o artista em questão não conseguiu se livrar deste paradoxo !
É claro : ele teve sempre razão em se insurgir contra o pensamento do marxismo oficial, notadamente dos anos 60, que não conseguia dialogar com o diferente, com o os movimentos feministas, raciais , comportamentais, etc, que já tomavam corpo e exigiam serem ouvidos . E era óbvio, também, que as sociedades formadas pelo chamado ” socialismo real ” não correspondiam ao pleno conceito de liberdade humana, não sendo portanto sociedades emancipadores – pelo contrário, eram sociedades opressoras . Desta forma, cabia a sua reação e não sujeição!
Mas, era óbvio também, que o artista não conseguiu ver a total extensão de dominação da sociedade da mercadoria , espaço onde ele pensava exercer a plena liberdade – onde a sua criação seria livre . Ou mais : não conseguia, ou não queria ver , que ele próprio seria uma mercadoria , exposta para o consumo de um mercado específico . Submetido, como todos, a “visão de mundo ” criado pelo fetiche , não poderia deixar de se comportar como um sujeito próprio da sociedade criada pelo capital , aquilo que Guy Debord chamou de Sociedade do Espetáculo .
Nas recentes jornadas de 2013, Caetano procurou juntar sua imagem ao modelos de rebeldia que na época estavam em muita evidência , fazendo imagens com os black bloc ( com sua mulher expondo nas mídias sociais posts com designs arrojados de ativistas ) , mas sua participação não passou disto. Ele não tomou posição nem conhecimento das prisões e posteriores processos dos ativistas de ruas . Mesmo mais adiante , se negou a cancelar seus shows em Israel , mesmo sabendo que em todo o mundo existe um movimento de isolamento do Estado de Israel, seguindo o exemplo do que houve com a África do Sul , na época do apartheid.
Na verdade, o texto de Schwartz, ao acompanhar o relato do livro do Caetano, me remete a esta conclusão : a transformação do adolescente utópico do interior baiano em uma mercadoria da indústria cultural – hoje uma figura fora de época, que busca manter um lugar em um espaço midiático onde ele pouco tem a oferecer .
Não sei se o professor no seu texto utilizou a categoria do fetiche como elemento de análise . Nao , acredito que não !
Digo isto, por ter sido ele o primeiro intelectual no Brasil a divulgar as ideias de Robert Kurtz , expoente teórico da escola da Critica do Valor, que utiliza esta categoria analítica , usada por Marx no entendimento da mercadoria e do valor , e que foi desprezada pelo marxismo tradicional até o colapso da União Soviética .
Segundo relatos, foi Roberto Schwartz o primeiro a trazer o livro de Robert Kurtz , “O colapso da modernizaçao: da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia mundial”para o Brasil , o que resultou em um texto de sua autoria , que mais tarde serviu de introdução à edição brasileira , e que foi publicado no Jornal A Folha de São Paulo . Texto este, que por sinal, recebeu imensas críticas por parte das cabeças coroadas da inteligência marxista do Brasil . Mas , talvez isto demostre a justeza do que ele falava sobre o livro naquele momento, e que a crise mundial que estamos vivendo provou que de fato suas palavras eram proféticas .
Creio que esta é uma lacuna no texto, pois se utilizada, esta categoria analítica nos daria uma visão melhor do personagem , que procurando fugir de uma prisão teórica, de uma camisa de força que a esquerda nacionalista e positivista do marxismo vulgar tentava lhe impor, acabou sendo prisioneiro de uma indústria cultural, instrumento abstrato de dominação do capitalismo contemporâneo .
Arlindenor Pedro
Após o texto do professor Roberto Schwarz leiam a entrevista de Caetano Veloso ao jornal Folha de São Paulo, onde ele responde às observações feitas sobre o seu livro .
Verdade tropical: um percurso de nosso tempo – Roberto Schwarz
De início devo dizer que não sou a pessoa mais indicada para comentar a autobiografia de Caetano Veloso, pois não tenho bom conhecimento de música nem das composições do autor.1 Entretanto gosto muito do livro como literatura. Particularmente os blocos 1 e 2 se leem como um excelente romance de ideias, em que as circunstâncias históricas, o debate da época e a figura do biografado, um herói reflexivo e armado intelectualmente, além de estranho, se entrelaçam em profundidade, fazendo ver uma etapa-chave da vida nacional.
Como sempre na prosa realista, metade da composição é desígnio do autor e metade são conexões mais ou menos latentes na matéria narrada. Quando há química entre as metades, como ocorre aqui, o conjunto conta algo para além dos fatos. As questões levantadas têm generalidade e penso que podem ser discutidas por um leigo em música.
Além de autobiografia de artista, Verdade tropical é uma história do tropicalismo e uma crônica da geração à volta de 1964. A sua matéria são as questões estético-políticas do ofício de pop star nas condições do Terceiro Mundo.2 A intimidade inteligente com a oficina da canção popular, incluídas aí as realidades do show business, coloca o livro em boa posição ao lado dos congêneres literários ilustres, como o Itinerário de Pasárgada de Bandeira e o Observador no escritório de Drummond, ou as memórias de Oswald de Andrade e de Pedro Nava.
Domínio em alto nível de um setor fundamental do presente, até então pouco estudado, avaliações críticas ousadas e certeiras, segredos da cozinha artística sob a ditadura, depoimentos sobre a prisão e o exílio, retratos perspicazes de colegas famosos, circunstâncias pessoais reveladoras, opções intelectuais e formais decisivas, para o bem e para o mal, tudo muito interligado e interessante, compõem um panorama de grande qualidade literária. As correspondências entre vida privada, vida pública e criação artística têm força, dando unidade interior ao conjunto. Sem medo de frases longas e do aspecto melindroso ou sutil das situações, um pouco à maneira substanciosa e flexível de Gilberto Freyre, a prosa de ensaio deve a vitalidade ao gosto pela controvérsia e pela provocação.
A conjugação do músico popular ao intelectual de envergadura não deixa de ser uma novidade. O livro surpreenderia menos se o autor fosse um músico erudito, um poeta, um cineasta ou um arquiteto, ou seja, um membro da faixa dita nobre das artes, cuja abertura para os valores máximos e para a reflexão a respeito é consenso. Como bem observa Caetano, a quem a originalidade de sua posição não escapa,
“a divisão nítida dos músicos em eruditos e populares retira destes últimos o direito (e a obrigação) de responder por questões culturais sérias”.3
Aliás, ao escrever um ensaio alentado que foge a essa divisão ele não só inova como assinala uma reconfiguração do quadro cultural, chamado a fazer frente às feições peculiares da música pop.
A novidade que o livro recapitula e em certa medida encarna é a emancipação intelectual da música popular brasileira. Na pessoa de um de seus expoentes, esta toma distância de si e passa a se enxergar como parte responsável da cena contemporânea, seja poética, seja musical, seja política, desrespeitando os enquadramentos aceitos do gênero. Ao saturar de reflexão estética e social as opções dos companheiros de ofício e as suas próprias, Caetano puxa a discussão para o patamar desconvencionalizado e autocrítico da arte moderna, sem contudo abandonar o compromisso com o público de massas. O interesse dessa posição difícil, talvez impossível de sustentar, dispensa comentários.
Se o adjetivo “popular” estiver na acepção antiga, que nas circunstâncias brasileiras envolve semianalfabetismo, exclusão social e direitos precários, haveria uma quase impossibilidade de classe nesse passo à frente, ligado a boa cultura literária e teórica. Se estiver na acepção moderna, definida pelo mercado de massas e pela indústria cultural, o avanço deixa de ser impossível para ser apenas improvável, devido às diferenças entre a vida de pop star e a vida de estudos. Note-se que no Brasil, como noutros países periféricos, as duas acepções do popular se sobrepõem, pois as condições antigas não estão superadas, embora as novas sejam vitoriosas, o povo participando das duas esferas.
Exclusão social — o passado? — e mercantilização geral — o progresso? — não são incompatíveis, como supõem os bem-pensantes, e sua coexistência estabilizada e inadmissível (embora admitida) é uma característica estrutural do país até segunda ordem.
Bem mais do que as outras artes, a música popular está imersa nesse descompasso, o que a torna nacionalmente representativa, além de estratégica para a reflexão. Assim, a disposição para pensar trazida por Caetano vem entrelaçada com uma realidade de classes sui generis, cujas projeções estéticas e políticas não se esgotam na ideia geral do pop.
Unindo o que a realidade separa, a aliança de vanguarda estética e cultura popular meio iletrada e socialmente marginal, além de mestiça, é um programa já antigo.
Ensaiada pelo modernismo carioca nos anos 20 do século passado, em rodas boêmias, e retomada pela bossa nova nos anos 1950, ela ganhou corpo e se tornou um movimento social mais amplo, marcadamente de esquerda, nas imediações de 1964.4 Sob o signo da radicalização política, que beirou a pré-revolução, o programa tinha horizonte transformador. Em especial as artes públicas — cinema, teatro e canção — queriam romper com a herança colonial de segregações sociais e culturais, de classe e raça, que o país vinha arrastando e reciclando através dos tempos, e queriam, no mesmo passo, saltar para a linha de frente da arte moderna, fundindo revolução social e estética. Tratava-se por um lado de reconhecer a parte relegada e não burguesa da nação, dando-lhe direito de cidade, e, por outro, de superar as alienações correspondentes a essa exclusão, que empobreciam a vida mental também dos incluídos. Graças ao espírito dialético, que estava em alta, os vexames de nossa malformação social — as feições de ex-colônia, o subdesenvolvimento — mudavam de estatuto. Em vez de varridos para baixo do tapete, eles passavam a ser identificados como interpelações históricas, em que estavam em jogo não só o atraso nacional como o rumo burguês e a desigualdade do mundo. Estimulada pelo avanço da luta de classes e do terceiro-mundismo, uma parte da intelligentsia passava a buscar o seu sentido — e o salto qualitativo em seu trabalho intelectual — na associação às necessidades populares.
Orientada por esse novo eixo e forçando os limites do convencionado, a experimentação avançada com as formas tornava-se parte e metáfora da transformação social iminente, que entretanto viria pela direita e não pela esquerda.
Durante alguns anos, antes e depois de 1964, a invenção artística radical sintonizou com a hipótese da revolução e fez dela o seu critério.
A ligação polêmica e o enriquecimento mútuo entre inovação estética, escolhas políticas e sociedade em movimento conferiam à vida cultural uma luz nova. Como a realidade parecia encaminhar alternativas, o partidarismo da vida artística desvestia o seu aspecto esotérico e mostrava ser o que é de fato, uma tentativa imaginária de intervenção. Passado o tempo, é possível que o saldo do período, avaliado nas suas obras, não sobressaia particularmente, o que entretanto não diminui o acerto das questões levantadas. Explicitado naquela oportunidade, o relacionamento conflitante e produtivo entre as formas estéticas, as deformidades sociais do país e as grandes linhas do presente internacional tornou-se uma pedra de toque durável, que mal ou bem sobreviveu à derrota da esquerda.
Escrito trinta anos depois, Verdade tropical deve muito de seu tino histórico à fidelidade que Caetano guardou àquele momento,
“que só é considerado remoto e datado por aqueles que temiam os desafios surgidos então, e que ainda os temem justamente por os saberem presentes demais em sua nova latência”.5
Dito isso, a altura da visão de Caetano não é estável, sempre ameaçada por descaídas regressivas. Volta e meia a lucidez cede o passo a superstições baratas, à mitificação despropositada do Brasil, à autoindulgência desmedida, ao confusionismo calculado. Em passagens tortuosas e difíceis de tragar, a ditadura que pôs na cadeia o próprio artista, os seus melhores amigos e professores, sem falar no estrago geral causado, é tratada com complacência, por ser ela também parte do Brasil — o que é uma verdade óbvia, mas não uma justificação. O sentimento muito vivo dos conflitos, que confere ao livro a envergadura excepcional, coexiste com o desejo acrítico de conciliação, que empurra para o conformismo e para o kitsch. Entretanto, como num romance realista, o acerto das grandes linhas recupera os maus passos do narrador e os transforma em elementos representativos, aumentando a complexidade da constelação.
* * *
Muito brilhante e felliniana, a crônica da juventude do autor em Santo Amaro — uma cidade pequena, próxima de Salvador — tem como pano de fundo a tendência à americanização, que imprime a seu atraso o selo contemporâneo. A mistura do recesso familiar e da cidade provinciana à corrente geral do mundo moderno é um achado com revelações próprias: nem a província e a infância são tão apartadas da atualidade quanto se supõe, nem esta última é tão estereotipada quanto as generalidades a seu respeito. De entrada assistimos à comédia dos
“meninos e meninas que se sentiam fascinados pela vida americana da era do rock’n’roll e tentavam imitar as suas aparências”,
com jeans e botas, rabos de cavalo e chiclete. O autor não fazia parte dessa turma nova, em que via, do alto de seus quinze anos, um modelo pouco inteligente e pouco interessante:
“embora fossem exóticos, eram medíocres”. Partilhava “com os santamarenses razoáveis uma atitude crítica condescendente em relação ao que naqueles garotos parecia tão obviamente inautêntico”.6
Note-se que os motivos de seu desdém não estão onde se espera. Apesar da coincidência com os “santamarenses razoáveis”, o que o incomodava não era o espalhafato da diferença, atraente para ele desde sempre, mas a sua “nítida marca de conformismo”:7 “
[…] o que mais me afastava dessa tendência de americanização era o fato de não ter chegado a mim com nenhum traço de rebeldia”.8
A importação acrítica mas escandalosa da moda internacional, a nota de pseudorrevolta combinada à abdicação da experiência própria, foram sentidas como um problema desde cedo.
Embora usasse um pé de meia de cada cor, o extravagante Caetano se aliava aos santamarenses sensatos — uma categoria pouco sociológica, mas possivelmente real —, para juntos criticarem a moçada que estreava o rock na cidade. A trinca dos protagonistas forma um quadro cheio de ironia, distante dos esquemas batidos em que a consciência pátria dá combate ao imperialismo americano. Em plano imprevisto, são aspectos divertidos e verdadeiros da modernização, ou da americanização, noções que na prática eram difíceis de distinguir. Noutros passos contudo a questão da influência dos Estados Unidos aparecerá em variantes menos risonhas, causando discussões acesas sobre a identidade e a subserviência nacionais, bem como sobre o próprio golpe de Estado que instalou a ditadura, aliás modernizante por sua vez. Entre as escaramuças de gosto na província e o americanismo dos generais golpistas vai uma grande diferença, mas ambos formam parte de um mesmo processo, cuja unidade complexa e cheia de instâncias percorre o livro, dando-lhe consistência literária, amplitude de registro e especificidade histórica.
Desde o começo a posição de Caetano é diferenciada, fugindo às limitações do nacionalismo simplista.
A imitação das novidades americanas não lhe parece inautêntica em si, pois pode ser portadora de inconformismo, quando então adquire autenticidade. O que conta não é a procedência dos modelos culturais, mas a sua funcionalidade para a rebeldia, esta sim indispensável ao país atrasado. Muito esclarecidamente, o autêntico se define por oposição ao conformismo, e não à cópia ou ao estrangeiro. Nem por isso a influência americana deixa de ser um problema, pelo que representa de monopólio e imposição. Como situar-se diante dela sem perder a liberdade, inclusive a liberdade, segundo a circunstância, de aproveitar um modelo interessante e mais adiantado? Retomada sob muitos ângulos, a pergunta — que é vital — reaparece a todo momento, politizando e tornando mais complexa a crônica, cerradamente entretecida com as relações de força do século americano. Assim, evitar a xenofobia não impede de enfrentar as pressões exercidas pelo carro-chefe do imperialismo. São ângulos que coexistem, e trata-se de desautomatizar o juízo a respeito, para torná-lo judicioso e suficientemente complexo ou esperto. Caetano foi precoce na compreensão da política internacional da cultura, em que o influxo estrangeiro — inevitável — tanto pode abafar como trazer liberdade, segundo o seu significado para o jogo estético-político interno, que é o nervo da questão.
Nas grandes linhas, digamos que o capítulo sobre Santo Amaro contrapõe duas atitudes perante a americanização. De um lado, a aceitação açodada e subalterna, que pode caracterizar tanto um roqueiro como um ministro das Relações Exteriores;9 de outro, a rebeldia embebida no contexto local, mas aberta para o mundo. Esta última, que é receptiva sem perder o pé ou sem deixar de ser situada, valoriza a experiência santamarense na hora de avaliar as novidades de fora, assim como recorre às novidades estrangeiras para fazer frente às estreitezas da província. A liberdade descomplexada dessa atitude, que resiste à precedência das metrópoles mas não desconhece as limitações da cidadezinha interiorana, da qual não se envergonha e a qual não quer rifar, é uma proeza intelectual. Em parte, ela se deve à independência de espírito do menino inconformado, que ambiciona tudo e nem por isso abdica de seu primeiro universo.
“Eu, no entanto, atava-me à convicção de que, se queria ver a vida mudada, era preciso vê-la mudada em Santo Amaro — na verdade, a partir de Santo Amaro.”10
A disposição enraizada desse desejo de mudança, que não aceita jogar fora os preteridos pelo progresso, mais adiante irá contrastar com o progressismo abstrato de parte da esquerda, que fazia tábua rasa da realidade imediata e de seus impulsos em nome de um remoto esquema revolucionário.
A Santo Amaro a ser sacudida — opressiva e amada ao mesmo tempo — é patriarcal, católica, mestiça, conservadora sem fanatismo e com traços de ex-colônia. O menino diferente, que não acredita em Deus, que acha errados os tabus sexuais e as prerrogativas masculinas, que veste meias desemparelhadas, que não se conforma com a pobreza à sua volta, que tem dúvidas metafísicas, que quer interferir na educação de sua irmã menor, que não vê por que as meninas pretas devam espichar o cabelo, que gosta de subir ao palco e cantar fados cheios de arabescos vocais etc. etc., é um portador de inquietação. A rebeldia, ainda que pontual, questiona a ordem no seu todo: as insatisfações formam corpo umas com as outras — questões de raça, gosto, sexo, classe, família, atraso —, ligando-se por dentro e remetendo ao conjunto da formação social. Este o papel de guarda avançada da crítica e da mudança que Caetano desde cedo vê como apropriado à sua pessoa. Era natural portanto que o aspirante a reformador, inicialmente da família, depois da cidade e logo da cultura brasileira, não se quisesse confundir com a garotada cujo desejo maior era participar de concursos de rock e se parecer aos estudantes americanos de high school.
A oposição fica mais interessante se lembrarmos que pouco tempo depois o mesmo Caetano faria época em programas de auditório, introduzindo a guitarra elétrica, a palavra coca-cola e a parafernália roqueira no terreno resguardado da mpb. Não se tratava de uma inconsistência, ao contrário do que podia parecer. No seu caso, a incorporação da coisa estrangeira vinha em benefício do foco nacional, puxado para a atualidade pelas transgressões bem meditadas, que o questionavam e lhe aumentavam o valor problemático. À maneira da antropofagia oswaldiana, que estava sendo redescoberta por conta própria, a importação das inovações internacionais favorecia o desbloqueio e a ativação histórica das realidades e dos impulsos de um quintal do mundo.
Do ângulo da rebeldia, Santo Amaro parece parada e passada. Vista no conjunto, entretanto, também ela se move e as inquietações de Caetano fazem parte de sua atualização. No dia em que terminou a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, o pai do garoto saiu à rua agitando uma bandeira da União Soviética, para indicar simpatias socialistas, compensadas por um retrato de Roosevelt na sala de jantar. Participando também do mundo moderno, uma prima mais velha, cansada da vida tacanha em Santo Amaro, sonha com as liberdades prometidas pelo existencialismo francês. Nos programas de rádio, quem manda é a concorrência internacional, outra figura do presente:
“a música popular americana encontrou sempre por aqui a competição não apenas da rumba cubana, do tango argentino e do fado português, mas também e sobretudo da música brasileira, que nunca foi vencida no consumo nacional por nenhum produto de importação”.11
Já nas salas de projeção, Hollywood disputava com fitas francesas, italianas e mexicanas (o cinema nacional não existia), às vezes de grande qualidade. Assim, a política e a cultura estrangeiras faziam parte normal do cotidiano da província e de seu mercado, que nunca foram exclusivamente nacionais, ao contrário do que afirmava a ilusão nacionalista. A oposição efetiva não estava entre o nacional e o de fora, como se fossem entidades estanques, mas entre apropriações vivas e consumo alienador, seja do externo, seja do interno. As boas páginas que descrevem a coexistência da produção americana e europeia nos cinemas de Santo Amaro são instrutivas a esse respeito. A seriedade social dos italianos e a franqueza sexual dos franceses, notadas por alguns santamarenses que se reconheciam nelas, punham em relevo o convencionalismo empobrecedor dos norte-americanos, cujos musicais eram no entanto deslumbrantes. Com simplicidade memorável, a ruminação juvenil sobre a beleza, o valor dos cachês e a força emblemática de Brigitte Bardot, Gina Lollobrigida e Marilyn Monroe, tão diferentes entre si, captava em movimento algo da equação social-estética do período, incluída aí a dimensão de rivalidade geopolítica, de que a cinefilia santamarense fazia uma parte pequena mas real. A graça das comparações depende de certo equilíbrio entre os diferentes Olimpos nacionais, que permitia ao público de Santo Amaro escolher segundo a sua preferência no cardápio do mundo contemporâneo. Sob o signo da diversidade, quer dizer, sem as injunções da hegemonia, a presença de modelos externos tornava-se um fator de autoconhecimento, e não de alienação.
“Seu Agnelo Rato Grosso, um mulato atarracado e ignorante que era açougueiro e tocava trombone na Lira dos Artistas (uma das duas bandas de música da cidade — a outra se chamava Filhos de Apolo), foi surpreendido por mim, Chico Motta e Dasinho, chorando à saída de I vitelloni, também de Fellini, e, um pouco embaraçado, justificou-se, limpando o nariz na gola da camisa: ‘Esse filme é a vida da gente!’.”12
A busca de um presente mais livre e em dia com os tempos se repete logo adiante em novo patamar. Quando mudam de Santo Amaro para Salvador, a fim de prosseguir nos estudos, Caetano e a irmã têm a sorte de encontrar em marcha um momento histórico de desprovincianização, quase se diria de emancipação. Graças à iniciativa de Edgar Santos, um reitor esclarecido, a Universidade Federal da Bahia acrescentara ao corpo de suas faculdades as escolas de música, dança e teatro, bem como um museu de arte moderna, trazendo para a sua direção
“os mais arrojados experimentalistas em todas estas áreas, oferecendo aos jovens da cidade um amplo repertório erudito”.13
A descrição que o livro dá da ebulição característica do pré-64 é notável. Sem que esteja propriamente discutido, o encontro explosivo — e formador — de experimentalismo artístico sem fronteiras nacionais, subdesenvolvimento, radicalização política, cultura popular onipresente e província, além da hipótese socialista no horizonte, é o contexto de tudo. Com os ajustes do caso, era um microcosmo do Brasil em véspera de mudanças. O que o rádio, os discos e algum cinema haviam feito para abrir a cabeça de Caetano em Santo Amaro, agora seria continuado noutra escala. Propiciado pela universidade que se abria, o contato com as obras revolucionárias da arte moderna de Stravinski, Eisenstein e Brecht até Antonioni e Godard combinava-se à agitação estudantil, ao caráter não burguês das festas populares da Bahia, às esperanças ligadas ao governo popular de Miguel Arraes em Pernambuco, à experimentação esquerdista dos Centros Populares de Cultura.
Paralelamente, a vida a ser mudada já não era apenas a da família e da cidadezinha, mas a do país, com sua configuração de classes indefensável, sua desatualização cultural paralisante e sua submissão ao imperialismo.
Falávamos de literatura, cinema, música popular; falávamos de Salvador, da vida na província, da vida das pessoas que conhecíamos; falávamos de política.
[…] éramos levados a falar frequentemente de política: o país parecia à beira de realizar reformas que transformariam a sua face profundamente injusta — e de alçar-se acima do imperialismo americano. Vimos depois que não estava sequer aproximando-se disso. E hoje nos dão bons motivos para pensar que talvez nada disso fosse propriamente desejável. Mas a ilusão foi vivida com intensidade — e essa intensidade apressou a reação que resultou no golpe.14
Mais adiante voltaremos ao ceticismo, ou ao realinhamento, em que a citação termina. Fiquemos por agora com a convergência entre revolução estética e emancipação social, que animou aquele período e é uma das linhas de força — partidas — do livro.
A certa altura, ainda criança, Caetano decide comunicar à família católica praticante que não acredita em Deus nem nos padres.
“Não o fiz em tom oficial — nem mesmo com tanta clareza — por ouvir de meus irmãos que isso representaria um desgosto terrível para Minha (tia) Ju.”15
Essa mescla peculiar de ruptura radical com respeito ou apego reaparecerá muitas vezes no livro. Mesmo em momentos de agressividade e escândalo intencionais, já depois de 1964, Caetano confia que tudo terminará bem, que os próprios adversários reconhecerão que nada foi por mal e que no fim de contas a divergência aproveitará a todos.
“Muitos dos que eram íntimos tinham se afastado por causa da revolta que lhes inspirava o tropicalismo. […]
Ouvíamos histórias, mas não nos preocupávamos demasiadamente. Tínhamos certeza de que ninguém sairia diminuído desse episódio. E que, com o tempo, todos perceberiam vantagens gerais advindas do nosso gesto.”16
Note-se de passagem a tranquilidade, literariamente muito boa, com que o autor concede que as suas iniciativas causavam repulsa. Pois bem, visto o grau das discórdias que figuram no livro, por que supor que em última instância as partes opostas estejam no mesmo campo? Por que a surpresa e a decepção de Caetano quando seus ataques são mal recebidos? O exemplo mais desconcertante dessa sua reação é o tom queixoso que adota quando é preso pela ditadura depois de uma série impressionante de provocações — como se a divisão social não fosse para valer. Seja como for, o seu traço de personalidade muito à vontade no atrito mas avesso ao antagonismo propriamente dito combinava com o momento brasileiro do pré-golpe, quando durante algum tempo pareceu que as contradições do país poderiam avançar até o limite e ainda assim encontrar uma superação harmoniosa, sem trauma, que tiraria o Brasil do atraso e seria a admiração de todos.
Há algo em comum entre a) a família decorosa, que aceita bem as suas crianças excêntricas; b) a Santo Amaro um tanto antiga, respeitadora das tradições, mas também ela simpática aos meninos entusiasmados por causas doidas — e modernas — como a música de João Gilberto, a pintura abstracionista e a ficção de Clarice Lispector; e c) a universidade de província que importa núcleos de vanguardismo artístico para ativar o clima cultural da cidade.
Em todas essas esferas, a despeito da componente de ordem, o salto progressista a uma forma social mais livre e menos injusta ou absurda representava antes uma aspiração que um transtorno. O golpe de Estado em seguida iria demonstrar que esse provincianismo tolerante com a inovação e a reforma, mesmo onde elas tocavam a questão da propriedade, não era a regra geral no país, o que não quer dizer que não existisse.
Tomando distância, digamos que naqueles casos anteriores a licença de experimentar vinha de cima: a família Veloso, Santo Amaro, a Reitoria e, mais longe, o próprio Estado desenvolvimentista, não se identificavam mais à ordem retardatária, que mal ou bem estava com a data vencida. A cor política dessa inesperada abertura para a modernização, que não via com maus olhos o espírito crítico das crianças e as tentativas vanguardistas dos universitários e adjacências, era definidamente anticapitalista, numa veia de pequena classe média, talvez mais moral do que política.
“No ambiente familiar e nas relações de amizade nada parecia indicar a possibilidade de alguém, em sã consciência, discordar do ideário socializante. A direita só existia por causa de interesses escusos e inconfessáveis.”17
Esse clima de opinião provinciano e esclarecido, para o qual o socialismo seria razoável e o capitalismo um erro, clima que hoje a muitos parecerá de outro planeta, não chegava a ser majoritário. A sua amplitude entretanto era suficiente para dar a ilusão de que ele representava a tendência real das coisas, enquanto o campo oposto seria um triste anacronismo, em vias de ser superado. Daí certa euforia, que em seguida se provou ingênua, quanto ao rumo do progresso. Daí também a atmosfera quase utópica do capítulo sobre Salvador, em que os estudantes reinventam a vida livremente, segundo os seus contatos com a vida popular e a cultura erudita, entre botecos pobres e instalações públicas modernas, à sombra de autoridades, professores e intelectuais progressistas, e, sobretudo, à distância das pressões do capital. Por razões históricas em que o livro não entra, as quais tinham a ver com o auge e a crise do nacionalismo desenvolvimentista no pré-64, havia simpatias de esquerda espalhadas por todos os níveis da sociedade, inclusive no governo.
Graças a esses apoios, que tinham alcance não só moral como também prático, estava em curso uma recombinação extramercado de forças intelectuais, políticas e institucionais, mal ou bem ensaiando possibilidades socialistas, quase como se o capital não existisse. A hipótese mostrou ser fantasiosa, mas a beleza desses capítulos deve-se a ela e à plenitude de vida que ela prometia e em certa medida facultava.
Os primeiros passos da profissionalização artística de Caetano — a expressão é dele — são ilustrativos nesse sentido. Longe das alienações do show business. eles obedecem a estímulos diversos, todos estimáveis, curiosamente desprovidos de carga negadora maior.
Aí estão as inspirações populares de sua imaginação, as amizades juvenis intensas, a inteligência estética notável, a ânsia de apropriar-se do espírito moderno, o culto à voz da irmã mais moça, a insatisfação — carinhosa — com o estado em que se encontravam a província e o país, o desejo de puxar a arte da canção para o presente, sem romper entretanto com a linha central da música popular brasileira, e, para concluir, a conjunção talvez sartriana de “responsabilidade intelectual e comprometimento existencial”.18
Seriam passos de profissionalização, mas num sentido pouco escolar e nada comercial, diverso do corrente. Digamos que se tratava das tentativas de um estudante talentoso, que juntamente com a sua geração procurava participar de um momento iluminado de transformação nacional, que a todos permitiria a realização. Algo parecido valeu para boa parte do movimento artístico dos anos 1960, que era jovem e mais próximo da agitação estudantil que das especializações profissionais. A diferença notável do caso é que o clima amador e enturmado não se traduzia pela desambição intelectual, muito pelo contrário. O exemplo característico, verdade que com mais carga de radicalismo e negatividade, seria Glauber Rocha. A dinâmica histórica e a força das discussões revolucionavam por dentro as figuras que logo mais seriam de ponta, as quais passavam por um processo acelerado e intensivo de acumulação e formação em áreas diversas, incluindo o debate internacional, com resultado impressionante. Entravam em liga a cultura especializada do fã, o ambiente cultural movimentado, o engajamento maior ou menor na luta social, tinturas acadêmicas, fidelidade à experiência de vida prévia, além do domínio precário do ofício, que aliás não impedia o experimentalismo e de certo modo até o favorecia. O conjunto sintonizava com a revolução brasileira em esboço, e também, visto em retrospecto, com os prenúncios do que seria 1968 no mundo, tudo num grau de afinidade com que as preparações mais propriamente profissionais não sonhavam.
Caetano, que tinha consciência aguda desses paradoxos, observa que a originalidade de seu primeiro disco “muitas vezes provinha mais de nossas limitações que de nossa inventividade”.19 No mesmo espírito, a propósito do trabalho de um grupo amigo: “O disco, como de hábito, não é bom. Mas em compensação é ótimo”.20 A precariedade da fatura artística mudava de conotação, ou adquiria outra impregnação.
Passava a ter parte com um hipotético salto nacional à frente, de dimensão histórica, e tinha valor nessa condição, em relação à qual as considerações convencionais de métier eram secundárias. Assim, a propósito de Deus e o diabo na terra do sol, Caetano escreve — memoravelmente — que
“Não era o Brasil tentando fazer direito (e provando que o podia), mas errando e acertando num nível que propunha, a partir de seu próprio ponto de vista, novos critérios para julgar erros e acertos”.21
Lembrando o início de sua educação estética, diz Caetano que se
“sentia num país homogêneo cujos aspectos de inautenticidade — e as versões de rock sem dúvida representavam um deles — resultavam da injustiça social que distribuía a ignorância, e de sua macromanifestação, o imperialismo, que impunha estilos e produtos”.22
Mesmo que sumariamente, a ordem mundial inaceitável, a desigualdade brasileira e as questões de arte estão interligadas, fixando um patamar dialético para a reflexão. Grosso modo, era a posição do nacionalismo de esquerda da época, ou dos comunistas, com seus méritos e limitações: o latifúndio e o imperialismo causavam inautenticidade cultural (o que certamente era verdade), ao mesmo tempo que permaneciam como que externos ao país, formando corpos estranhos numa nação essencialmente boa e fraterna (o que era uma ingenuidade). Afinado com essa ordem de sentimentos e prolongando-a no plano artístico, o menino Caetano sonhava uma decantação do som, uma recusa da vulgaridade e do tosco: o saxofone, por exemplo, lhe soava grosseiro e a bateria era “uma atração de circo”, sem falar no mau gosto do acordeão.23 No ponto de fuga dessa reforma dos timbres, que era mais que meramente musical, estaria um Brasil verdadeiro, liberto das imposições de fora e da ignorância nativa.
“Apenas radicalizava dentro de mim — como João Gilberto finalmente radicalizou para todos — uma tendência de definição de estilo brasileiro nuclear, predominante.”24
A radicalização, se ouvirmos bem, nada tinha de esteticismo, do desejo de voltar as costas à realidade degradante ou de romper com ela. Pelo contrário, tratava-se de uma espécie de aperfeiçoamento, de condensação e estilização do país na sua melhor parte, que com sorte puxaria o resto.
“Eu ouvia e aprendia tudo no rádio, mas à medida que, ainda na infância, ia formando um critério, ia deixando de fora uma tralha cuja existência eu mais perdoava que admitia.”25
Mais outro exemplo da combinação caetanista de ruptura e apego, esse critério que mais perdoa que recusa a tralha das rádios comercial-populares faz parte de um sentimento das coisas ou do país, com prós e contras, que mais adiante e noutros termos será importante para o tropicalismo.
As passagens sobre a bossa nova e João Gilberto são pontos altos do livro, não só pela qualidade da análise, como pela correspondência de fundo com o painel biográfico-social.
Não custa notar que essa dialética entre a invenção artística e o seu momento histórico, além de um raro espetáculo, foi desde sempre o objetivo da crítica de esquerda, aqui realizado por um adversário. A seu modo, a reciprocidade viva entre reflexão estética e crônica dos tempos, ou, ainda, entre prosa de ensaio e prosa narrativa, que vão alternando, é um arranjo formal com feição própria, que solicita a interpretação, como o andamento de um romance. A dialética desdobra-se em vários planos, dando ideia do que seja uma revolução artística, ou, por analogia, uma revolução sem mais. Na boa exposição de Caetano, a inovação técnica da bossa nova responde a um conjunto de impasses, tanto musicais como sociais, achando novas saídas para o presente, abrindo perspectivas para o futuro e redefinindo o próprio passado, que também muda. A nova batida de violão inventada por João Gilberto apoia-se na sua “interpretação muito pessoal e muito penetrante do espírito do samba”, articulada “ao domínio dos procedimentos do cool jazz, então ponta de lança da invenção nos Estados Unidos”. Assim, o artista associava uma tradição brasileira, marcada social e racialmente, a um desenvolvimento de vanguarda, com projeção internacional, que a desprovincianizava, além de viabilizá-la no mercado estrangeiro e junto a novos públicos no país. O resultado é
“um processo radical de mudança de estágio cultural que nos levou a rever o nosso gosto, o nosso acervo e — o que é mais importante — as nossas possibilidades”.
Noutras palavras, a viravolta formal, fruto da ruminação simultânea do samba e do jazz, tem tanto lógica interna como consequências que vão além da forma, rearrumando o campo da música popular brasileira e ensaiando um novo arranjo entre as classes sociais e as raças, além de alcançar um relacionamento mais produtivo com a cultura dominante do tempo.
Caetano toma conhecimento da transformação aos dezessete anos, como “uma sucessão de delícias para a minha inteligência”.26 A versão mais audaciosa, meditada e reivindicativa do elogio vem nas páginas finais, em que o grande cantor popular, pela originalidade da dicção musical que desenvolveu, é dito
“um redentor da língua portuguesa, como violador da imobilidade social brasileira — da sua desumana e deselegante estratificação —, como desenhador das formas refinadas e escarnecedor das elitizações tolas que apequenam essas formas”.27
Como poucas vezes, a invenção artística e sua força estão ligadas a uma análise de classe sob medida para o país.
No centro da exposição está uma frase de 32 linhas, um verdadeiro olé dialético (e como tal um pouco forçado), em que a sintaxe procura sugerir, ou captar, a complexidade do processo real.28
Pela abrangência da visão, pela sua potência organizadora, pelo teor de paradoxo e pela capacidade de enxergar o presente no tempo, como história, é uma façanha. Assim, a revolução que João Gilberto operou nas relações entre a fala, a linha melódica e a batida de violão 1) tornou possível o desenvolvimento pleno do trabalho de seus companheiros de geração; 2) “abriu um caminho para os mais novos que vinham chegando”; 3) deu sentido às buscas de seus predecessores imediatos, que “vinham tentando uma modernização através da imitação da música americana”; 4) superou-os todos pelo uso que soube fazer do cool jazz, “que lhe permitiu melhor religar-se ao que sabia ser grande na tradição brasileira”, da qual justamente os modernizadores queriam fugir; e 5) “marcou, assim, uma posição em face da feitura e fruição de música popular no Brasil que sugeria programas para o futuro e punha o passado em nova perspectiva — o que chamou a atenção de músicos eruditos, poetas de vanguarda e mestres de bateria de escolas de samba”.
Como é próprio da escrita dialética, o mesmo sujeito de frase — no caso a revolução musical trazida por João Gilberto — comanda verbos muito díspares, que por sua vez comandam objetos (sujeitos) também eles desiguais, pertencentes a domínios separados e às vezes opostos da realidade, que assim ficam articulados por dentro. Tanto sujeitos como verbos atuam em várias dimensões ao mesmo tempo, as quais refluem sobre o seu ponto de partida, que existe através delas e adquire uma unidade ampliada e imprevista, que é o selo da dialética. Na realidade e na prosa, figuras apartadas pela especialização e pelo abismo das classes sociais, como os músicos eruditos, os poetas de vanguarda e os mestres de bateria de escolas de samba, na bela enumeração de Caetano, são colocadas em movimento associado e produtivo, saindo de seu isolamento. A fluidez se torna vertiginosa quando a inovação não afeta apenas o presente e o futuro, como quer o senso comum, mas abala também o passado, que deixa de ser imutável e se recompõe sob nossos olhos. A viravolta é um micromodelo do alcance total que tem uma revolução, mesmo restrita.
Caetano possui como poucos a capacidade de caracterizar artistas e obras.
Espalhados pelo livro e apimentados pela rivalidade, os retratos de Maria Bethânia, Nara Leão, Elis Regina, Glauber Rocha, Chico Buarque, Raul Seixas, Erasmo Carlos, Gilberto Gil, Augusto Boal, Augusto de Campos, Geraldo Vandré e outros formam uma excelente galeria contemporânea. Deliberadamente ou não, as feições individuais somam, ressoando umas nas outras e configurando com densidade a problemática de uma geração.
Noutro plano, o mesmo golpe de vista estético-social, aberto para a individualidade das obras e para a sua substância coletiva, faz de Caetano um crítico de arte de primeira qualidade. As suas páginas sobre Terra em transe e Alegria, alegria estão entre as boas peças da crítica brasileira, particularmente pela inteligência com que integram descrição formal e circunstância histórica.
Dito isso, as caracterizações devem o seu relevo a mais outro elemento de visão, também ele dialético, ligado à confiança sem reservas no valor histórico da individualização complexa. Com efeito, para Caetano as obras e os artistas não são epifenômenos, mas acontecimentos, pontos de acumulação real, que fazem diferença e têm consequências no campo estético e fora dele. São momentos salientes e significativos de uma história em curso, que não se reduz à dinâmica do mercado, com as suas modas que se sucedem indiferente e indefinidamente, nem aos esquemas prefixados do marxismo vulgar.
Por outro lado, sobretudo numa área tão comercial como a música popular e pensando num momento como aquele, de indústria cultural nascente, o risco de agigantar e mitificar diferenças meramente funcionais para o mercado é grande.
O cacoete de transformar divas em deusas — sem ironia — tem o mérito eventual de sublinhar o aspecto extraordinário que o trabalho artístico pode ter, ao mesmo tempo que contribui talvez para emprestar transcendência a ilusões triviais do estrelato. Até onde vejo, as duas coisas estão presentes no ensaísmo de Caetano.
“Ter tido o rock’n’roll como algo relativamente desprezível durante os anos decisivos da nossa formação — e, em contrapartida, ter tido a bossa nova como trilha sonora de nossa rebeldia — significa, para nós, brasileiros da minha geração, o direito de imaginar uma interferência ambiciosa no futuro do mundo. Direito que passa imediatamente a ser vivido como um dever.”29
Noutras palavras, a invenção bossa-novista, que reelaborou a hegemonia norte-americana em termos não destrutivos, compatíveis com a nossa linha evolutiva própria, criou um patamar melhor para a geração seguinte, que graças à densidade do ambiente musical-intelectual interno não precisou sofrer a entrada do rock como um esmagamento cultural.
A observação é aguda e aliás resume a aura de revolução benigna ou incruenta que cercou a bossa nova. Nos passos seguintes, contudo, saltando as mediações indispensáveis e o senso das proporções, a relativa autonomia cultural alcançada num lance artístico feliz abre as portas à possibilidade e ao dever de uma geração de brasileiros de influir no futuro do mundo. A satisfação legítima de sair do estado de segregação de uma cultura semicolonial se converte, sem mais aquela, na ambição de fazer e acontecer na arena internacional — em lugar de questionar essas aspirações elas mesmas.
***
O jogo de progressões e retomadas entre Santo Amaro, Salvador, a cultura internacional e a bossa nova, com o Brasil ao fundo, sugeria um percurso democrático de modernização. É como se por um momento (inverossímil) o progresso e a internacionalização se fizessem para o bem de todos, num toma-lá-dá-cá harmonioso, e não à custa dos fracos e atrasados.
A vida popular e a província pareciam ter algo de especial a dizer, que não seria posto de lado pelas transformações que se aproximavam. Retomando o velho desejo de Caetano, a mudança iria se dever também a Santo Amaro. Para uma ideia dessa miragem de modernização feliz e abrangente, veja-se um começo de frase que capta o deslumbramento da época:
“O Caravelle da Cruzeiro do Sul — aeronave cuja modernidade de linhas me encantava como um samba de Jobim ou um prédio de Niemeyer […]”.30
Associadas na mesma aspiração de elegância, aí estavam a tecnologia francesa, a música popular brasileira e a arquitetura vanguardista de Brasília, como se o país inteiro estivesse a ponto de decolar.
A euforia foi desmanchada em 1964 pelo golpe, um momento estelar da Guerra Fria, quando se uniram contra o ascenso popular e a esquerda, quase sem encontrar resistência, os militares pró-americanos, o capital e o imenso fundo de conservadorismo do país, tudo com ajuda dos próprios americanos.
Como a posição de Caetano iria mudar pouco depois, é interessante citar a sua primeira reação, perfeitamente afinada com a esquerda da época:
“[…] víamos no golpe a decisão de sustar o processo de superação das horríveis desigualdades sociais brasileiras e, ao mesmo tempo, de manter a dominação norte-americana no hemisfério”.31
Noutras palavras, ficava interrompido um vasto movimento de democratização, que vinha de longe, agora substituído pelo país antissocial, temeroso de mudanças, partidário da repressão, sócio tradicional da opressão e da exploração, que saía da sombra e fora bisonhamente subestimado. As desigualdades internas e a sujeição externa deixavam de ser resíduos anacrônicos, em vias de desaparecimento, para se tornarem a forma deliberada, garantida pela ditadura, do presente e do futuro. No mesmo passo, para uma parte dos brasileiros a realidade acabava de tomar uma feição inaceitável e absurda.
As consequências estéticas tiradas por Caetano, que fizeram dele uma figura incontornável, custaram a aparecer.
Conforme explica ele mesmo, o catalisador foi uma passagem crucial de Terra em transe, o grande filme de Glauber Rocha que lida com o confronto de 64 e com o papel dos intelectuais na ocasião.
O protagonista, Paulo Martins, é um poeta e jornalista originário da oligarquia, agora convertido à revolução social e aliado ao Partido Comunista e ao populismo de esquerda. Exasperado pela duplicidade dos líderes populistas, e também pela passividade pré-política da massa popular, que não é capaz de confrontar os dirigentes que a enganam, Paulo Martins tem uma recaída na truculência oligárquica (verdade que com propósito brechtiano, de distanciamento e provocação). Tapando com a mão a boca de um líder sindical, que o trata de doutor, ele se dirige diretamente ao público:
“Estão vendo quem é o povo? Um analfabeto, um imbecil, um despolitizado!”.
Meio sádico, meio autoflagelador, o episódio sublinha entre outras coisas a dubiedade do intelectual que se engaja na causa popular ao mesmo tempo que mantém as avaliações conservadoras — raramente explicitadas como aqui — a respeito do povo.
Ditada pela evidência de que não haveria revolução, a desqualificação dos trabalhadores é um desabafo histórico, que no passo seguinte leva à aventura da luta armada sem apoio social. Do ponto de vista da esquerda, a cena — uma invenção artística de primeira força — era um compêndio de sacrilégios, fazendo uma espécie de chacota dolorosa das certezas ideológicas do período. Os trabalhadores estavam longe de ser revolucionários, a sua relação com os dirigentes pautava-se pelo paternalismo, os políticos populistas se acertavam com o campo adversário, a distância entre as teses marxistas e a realidade social era desanimadora, e os intelectuais confundiam as razões da revolução política e as urgências da realização pessoal. Nem por isso se atenuavam as feições grotescas das camadas dirigentes e da dominação de classe, que continuavam em pé, esplendidamente acentuadas. A revolução não se tornara supérflua, muito pelo contrário: encontrava-se num beco histórico e não dera o necessário passo à frente. A nota geral era de desespero.32
Tão desconcertantes quanto a própria cena, as conclusões de Caetano entravam por um rumo oposto, quase se diria eufórico, dando sequência à recomposição ideológica pós-golpe. Enxergavam oportunidades e saídas onde o filme de Glauber desembocava em frustração nacional, autoexame político e morte. Digamos que elas acatavam sem mais as palavras devastadoras de Paulo Martins, passando por alto os traços problemáticos da personagem, que são essenciais à complexidade artística da situação.
“Vivi essa cena — e as cenas de reação indignada que ela suscitou em rodas de bar — como o núcleo de um grande acontecimento cujo nome breve que hoje lhe posso dar não me ocorrera com tanta facilidade então (e por isso eu buscava mil maneiras de dizê-lo para mim mesmo e para os outros): a morte do populismo. […] era a própria fé nas forças populares — e o próprio respeito que os melhores sentiam pelos homens do povo — o que aqui era descartado como arma política ou valor ético em si. Essa hecatombe eu estava preparado para enfrentá-la. E excitado para examinar-lhe os fenômenos íntimos e antever-lhe as consequências. Nada do que veio a se chamar de ‘tropicalismo’ teria tido lugar sem esse momento traumático.”33 “Portanto, quando o poeta de Terra em transe decretou a falência da crença nas energias libertadoras do ‘povo’, eu, na plateia, vi, não o fim das possibilidades, mas o anúncio de novas tarefas para mim.”34
Convém notar que “populismo” aqui não está na acepção sociológica usual, latino-americana, de liderança personalista exercida sobre massas urbanas pouco integradas. No sentido que lhe dá Caetano, o termo designa algo de outra ordem.
Trata-se do papel especial reservado ao povo trabalhador nas concepções e esperanças da esquerda, que reconhecem nele a vítima da injustiça social e, por isso mesmo, o sujeito e aliado necessário a uma política libertadora. O respeito que “os melhores” sentiam — e já não sentem? — pelos homens do povo, semiexcluídos e excluídos, em quem contemplavam a dura verdade de nossa sociedade de classes, liga-se a essa convicção. “Ou talvez seja eu próprio que me despreze a seus olhos”, escrevia Drummond em 1940, pensando no operário.35 Assim, quando Caetano faz suas as palavras de Paulo Martins, constatando e saudando através delas a “morte do populismo”, do “próprio respeito que os melhores sentiam pelos homens do povo”, é o começo de um novo tempo que ele deseja marcar, um tempo em que a dívida histórico-social com os de baixo — talvez o motor principal do pensamento crítico brasileiro desde o Abolicionismo — deixou de existir. Dissociava-se dos recém-derrotados de 64, que nessa acepção eram todos populistas. A mudança era considerável e o opunha a seu próprio campo anterior, a socialistas, nacionalistas e cristãos de esquerda, à tradição progressista da literatura brasileira desde as últimas décadas do século xix, e, também, às pessoas simplesmente esclarecidas, para as quais há muito tempo a ligação interna, para não dizer dialética, entre riqueza e pobreza é um dado da consciência moderna. A desilusão de Paulo Martins transformara-se em desobrigação. Esta a ruptura, salvo engano, que está na origem da nova liberdade trazida pelo tropicalismo. Se o povo, como antípoda do privilégio, não é portador virtual de uma nova ordem, esta desaparece do horizonte, o qual se encurta notavelmente.
Faz parte do vigor literário do livro uma certa naturalidade com o atrito ideológico, por momentos azedo e turbulento. Aos olhos da esquerda, que mal ou bem centralizava a resistência à ditadura, descrer da “energia libertadora do povo” era o mesmo que alienar-se e entregar os pontos. Aos olhos de Caetano, era livrar-se de um mito subitamente velho, que cerceava a sua liberdade pessoal, intelectual e artística.
Já do ângulo da evolução ulterior das coisas, que num livro escrito décadas depois é importante, digamos que o artista havia pressentido a inversão da maré histórica no mundo, a qual até segunda ordem deixava sem chão a luta pelo socialismo, como a própria esquerda aos poucos iria notar. Aliás, conforme sugere Nicholas Brown, um estudioso americano do Brasil, da globalização, da bossa nova e do tropicalismo, a vitória da contrarrevolução em 1964-70, com a decorrente supressão das alternativas socialistas, havia propiciado a passagem precoce da situação moderna à pós-moderna no país, entendida esta última como aquela em que o capitalismo não é mais relativizado por um possível horizonte de superação. Em linha com esse esquema, a bossa nova seria um modernismo tardio, e a tropicália um pós-modernismo de primeira hora, nascido já no chão da derrota do socialismo.36
Seja como for, a mudança não fizera de Caetano um conformista. O impulso radicalizador do pré-64 continuava atuando dentro dele e logo em seguida iria se acentuar, através da adoção do figurino ultrarrebelde e polêmico da contracultura e do pop, em diálogo vivo com o momento estético e político nacional. A oposição à ordem estabelecida agora era completa, incluída aí a esquerda convencional — entenda-se o Partido Comunista e os estudantes nacionalistas que frequentavam festivais de música —, a qual falava em anti-imperialismo e socialismo mas era bem-pensante e “nunca discutia temas como sexo e raça, elegância e gosto, amor ou forma”.37
Ambígua ao extremo, a nova posição se queria “à esquerda da esquerda”, simpatizando discretamente com a luta armada de Guevara e Marighella, sem prejuízo de defender a “liberdade econômica” e a “saúde do mercado”. Cultuando divindades antagônicas, Caetano interessava e chocava — outra maneira de interessar — as diversas religiões de seu público, tornando-se uma referência controversa mas obrigatória para todos. O descaso pela coerência era ostensivo e tinha algo de bravata: Uma política unívoca, palatável e simples não era o que podia sair daí.38 . Paralelamente, o abandono da fé “populista” se traduzia por um notável aumento da irreverência, de certa disposição de pôr para quebrar, que entrava em choque com o já mencionado bom-mocismo dos progressistas e, certamente, com os mínimos de disciplina exigidos pela ação política.
Assim, a posição libertária e transgressora postulada por Caetano rechaçava igualmente — ou quase — os establishments da esquerda e da direita, os quais tratava de abalar ao máximo no plano do escândalo cênico, ressalvando entretanto o mercado. Somando-se à “anarquia comportamental”,39 às roupas e cabeleiras acintosas, concebidas para passar da conta, a provocação chegava ao extremo, em plena ditadura, de exibir no palco a bandeira com que Hélio Oiticica homenageava um bandido morto pela polícia:
“Seja marginal, seja herói”.
Como era de prever, embora a ideia não fosse essa, terminou tudo em meses de cadeia, por iniciativa de um juiz de direito que assistia ao espetáculo com a namorada.40 Talvez fizesse parte desse quadro uma competição deslocada e suicida com os companheiros de geração que estavam optando pela luta armada, também eles contrários à ditadura e à esclerose histórica do Partido Comunista41. Sem esconder a satisfação de amor-próprio, Caetano relata a sua cumplicidade com o major que o interrogara na prisão, o qual denunciava “o insidioso poder subversivo de nosso trabalho” e reconhecia “que o que Gil e eu fazíamos era muito mais perigoso [para o regime] do que o que faziam os artistas de protesto explícito e engajamento ostensivo”.42 O atestado de periculosidade passado pelos militares vinha compensar os remoques dos adversários de esquerda, para os quais o tropicalismo dos cabeludos não passava de alienação.
Dito isso, e a despeito do custo alto que muitos pagaram, além da acrimônia, a rivalidade entre contracultura e arte engajada tinha algo de comédia de desencontros, sobretudo porque ela era desnecessária, pois nada obrigava a esquerda (na verdade só uma parte dela) a ser convencional em matéria de estética e costumes, assim como era evidente o impulso antiburguês da contracultura. Por outro lado, a simetria na recusa dos dois establishments não era perfeita, como explica Caetano com sinceridade desarmante. Habituado à hostilização pública por parte da esquerda, que o chamava de alienado e americanizado, além de vaiá-lo em cena, julgava-se por isso mesmo a salvo da repressão policial-militar, que não o veria como inimigo e o deixaria em paz.43
[O movimento tropicalista] “Era também uma tentativa de encarar a coincidência (mera?), nesse país tropical, da onda da contracultura com a voga dos regimes autoritários”44 Que pensar desse cálculo espinhoso e secreto — um imaginário alvará informal, que aliás se provou errado —, vindo de alguém que se queria perigoso para o regime? O fato é que Caetano se sentia duplamente injustiçado, uma vez por ser preso pela direita sem ter feito grande coisa (o juízo é dele, apesar dos juízos contrários noutros momentos)45 e outra por não ser reconhecido como revolucionário pela esquerda.
Geraldo Vandré, uma figura de proa da canção de protesto, a certa altura pede aos tropicalistas que não compitam com ele, pois o mercado só comporta um nome forte de cada vez, e o Brasil da ditadura, para não dizer o socialismo, precisava de conscientização das massas.
Com perspicácia, Caetano observa que talvez se tratasse de um embrião daquele mesmo oficialismo que matava a cultura dos países socialistas em nome da história. Veja-se a ironia duvidosa de seu comentário, que jogava com chavões da Guerra Fria e confluências inaceitáveis para dar forma literária ao caráter envenenado da situação:
“Livres do perigo vermelho desde que nossos inimigos militares tomaram o poder, nós não víamos a mais remota possibilidade de realizar-se esse desejo de Vandré”.46
Com a irrisão do caso, inclusive autoirrisão, ainda aqui os inimigos de direita pareciam garantir, contra os semicompanheiros de esquerda e de ofício, um certo espaço de liberdade — isso até prova em contrário, que não tardaria. Contra alguns da esquerda, que sonhavam assegurar-se do mercado por meio de alegações políticas, os tropicalistas apostavam “numa pluralidade de estilos concorrendo nas mentes e nas caixas registradoras”.47
O cinismo alegre dessas últimas, funcionando por assim dizer como agentes da democracia e da cultura, em certo plano era menos hipócrita que o enquadramento proposto pelos adversários; noutro plano, entretanto, era pior, pois a ideia de concorrência “nas mentes” calava a presença do Estado policial, que no fim das contas era o fato relevante. Escolhidas a dedo para vexar os socialistas, as “caixas registradoras” explicitavam o aspecto comercial do enfrentamento ideológico-musical nos programas de tv, aspecto que os artistas engajados, por serem anticapitalistas, preferiam passar por alto.48
Isso posto, mesmo que manipulado e explorado pelo show business. o fla-flu artístico-ideológico era um verdadeiro fenômeno social. Transpunha para o espetáculo a nova etapa do confronto com a ditadura, confronto que estava em preparação e pouco adiante terminaria em novo massacre da esquerda.
Digamos que a rivalidade exaltada nas plateias, uma disputa simbólica pela liderança do processo, aludia à luta nas ruas e à realidade do regime, ainda que de maneira indireta e distorcida. Faria parte de um discernimento intelectual mais exigente distinguir entre antagonismos secundários e principais, adversários próximos e inimigos propriamente ditos.
A confusão nessa matéria era grande. A devastação causada pela ditadura, que suspendeu as liberdades civis e desbaratou as organizações populares, seria de mesma ordem que as desfeitas e mesmo agressões do público estudantil ou dos colegas de ofício?
A simples comparação não seria uma falta de juízo? Veja-se a respeito um amigo libertário de Caetano, que não lamentava o incêndio da União Nacional dos Estudantes logo em seguida ao golpe.
“Tremi ao ouvi-lo dizer que o prédio da União Nacional dos Estudantes devia mesmo ter sido queimado. O incêndio da une, um ato violento de grupos de direita que se seguiu imediatamente ao golpe de abril de 64, era motivo de revolta para toda a esquerda, para os liberais assustados e para as boas almas em geral [por que a ironia?]. Rogério [o amigo] expunha com veemência razões pessoais para não afinar com esse coro: a intolerância que a complexidade de suas ideias encontrara entre os membros da une fazia destes uma ameaça à sua liberdade. O estranho júbilo de entender com clareza suas razões, e mesmo de identificar-me com elas, foi maior em mim do que o choque inicial produzido pela afirmação herética. Não tardei a descobrir que Rogério exibiria ainda maior violência contra os reacionários que apoiassem em primeira instância a agressão à une. Isso, que para muitos parecia absurda incoerência, era para mim prova de firmeza e rigor: ele detectava embriões de estruturas opressivas no seio mesmo dos grupos que lutavam contra a opressão, mas nem por isso iria confundir-se com os atuais opressores destes.”49
Em perspectiva histórica, tratava-se da reavaliação do passado recente. O ascenso socializante do pré-64, cujo impulso superador e democrático fazia a beleza dos capítulos sobre Santo Amaro e Salvador, agora era revisto sob luz contrária, como um período incubador de intolerância e ameaça à liberdade. Depois de serem motivo de orgulho, os grupos que se erguiam contra o imperialismo e a injustiça social passavam a ser portadores de “embriões de estruturas opressivas”, contra os quais mesmo um incêndio não seria uma providência descabida. Ainda que imaginemos que o incêndio tenha sido aqui uma flor de retórica, a mudança de posição era radical. Veja-se um exemplo do novo tom, que não ficaria mal em editoriais da imprensa conservadora:
“Hoje são muitas as evidências de que […] qualquer tentativa de não alinhamento com os interesses do Ocidente capitalista resultaria em monstruosas agressões às liberdades fundamentais […]”.50
Que pensar dessa viravolta, referida a um momento em que as liberdades fundamentais de fato haviam sido canceladas, mas pela direita? Agora é a luta por uma sociedade melhor que é posta sob suspeição. Em termos de consistência literária, de coerência entre as partes da narrativa, que numa autobiografia quase-romance têm valor estético-político, o novo ponto de vista antiesquerda destoa e não encontra apoio na apresentação — tão notável — do período anterior a 64. Conforme o próprio livro, foram anos justamente em que a liberdade de experimentação social e artística brilhou em toda linha, com força talvez inédita no país. Seja dito de passagem que a vitalidade desse experimentalismo se devia em parte ao fato de que o próprio capitalismo estava em jogo, e, com ele, as coordenadas da realidade, num grau que não se repetiria mais. Assim, quando aparece, a insistência no caráter antidemocrático da luta pela democracia é um corpo estranho no relato, de cuja dinâmica interna não parece resultar. Sem maior base no passado, pode entretanto refletir a correlação de forças pós-golpe, que depois de derrubar e proibir as aspirações sociais da fase prévia as pintou com as cores do terror stalinista. É certo que a sombra da União Soviética pesaria sobre qualquer tentativa socializante, mas transformá-la em impedimento absoluto à insatisfação com o capitalismo era e é outra forma de terror ou de paralisação da história. Em plano mais comezinho, o novo antiesquerdismo magnificava desentendimentos antigos, em questões de arte e estilo de vida, que até onde conta Caetano não chegavam a ser incontornáveis.
“Se eu me identifiquei com Rogério logo ao conhecê-lo, foi porque minha situação entre meus colegas de esquerda na Universidade da Bahia fora semelhante à dele entre seus amigos da une no Rio. Sem que desse motivos para confrontos do tipo que ele teve que enfrentar, minha atitude reticente em face das certezas políticas de meus amigos suscitava neles uma irônica desconfiança. Eu era um desses temperamentos artísticos a que os mais responsáveis gostam de chamar de ‘alienados’. Minhas relações com os colegas de esquerda eram até mesmo ternas.”51
O júbilo ante o incêndio da une, uma emoção “estranha” e “herética”, meio inconfessável e meio perversa, é parente do entusiasmo pela cena traumática de Terra em transe.
Também esta foi uma “hecatombe” bem-vinda, que punha abaixo as aspirações da esquerda e, com elas, a crer no novo Caetano, uma prisão mental. Nos dois casos, sob o manto de reações tabu, que requerem certa coragem para se afirmar — embora o campo vencedor as aprove —, assistimos a uma conversão histórica, ou, melhor dizendo. à revelação de que a esquerda, até então estimada, é opressiva e não vale mais que a direita.
Adiante veremos em funcionamento essa equidistância. Seja dito de passagem que iluminações tanto podem esclarecer como obscurecer e que às vezes fazem as duas coisas. Por agora, notemos algumas das razões que fizeram que Caetano festejasse a derrocada da esquerda — mas não a vitória da ditadura — como um momento de libertação. Mal ou bem, é o depoimento de um artista incomum sobre o mal-estar que a própria existência da esquerda, com sua terminologia, suas teses e posições, lhe passara a causar.
O incômodo começava pela linguagem. Por que chamar de proletários os trabalhadores pobres e “miseravelmente desorganizados” do Recôncavo, a quem esse nome não ocorreria e que aliás gostariam muito de usar capacete e de ser assalariados? Na mesma ordem de objeções, não soava descabido e pouco “estimulante”, dadas as circunstâncias, falar em ditadura do proletariado?52 Noutro plano, o socialismo seria mesmo a solução para todos os problemas, como uma panaceia? “A solução única já era conhecida e chegara aqui pronta: alcançar o socialismo.”53
Com sentido comum, Caetano havia notado o desajuste entre a vulgata marxista e a realidade local, bem como certa cegueira correspondente. A pobreza entretanto existia sim, e o desconforto com as palavras não a fazia desaparecer.
“Claro que as ideias gerais a respeito da necessidade de justiça social me interessavam e eu sentia o entusiasmo de pertencer a uma geração que parecia ter diante de si a oportunidade de mudar profundamente a ordem das coisas.”54
Afastada a camisa de força do jargão, a sociedade de classes voltava pela janela dos fundos e impunha os seus problemas, cujo horizonte é coletivo. Acresce que a alergia aos esquemas do marxismo tinha ela mesma um viés de classe, passível de crítica — marxista? — por sua vez.
“Eu sinceramente não achava que os operários da construção civil em Salvador […] — tampouco as massas operárias vistas em filmes e fotografias — pudessem ou devessem decidir quanto ao futuro de minha vida.”55
Como não ver a parte do desdém e da exclusão política nessa formulação, sem falar na fantasia ideológica de um futuro pessoal incondicionado? Acaso as classes dirigentes que nós intelectuais e artistas costumamos tolerar ou adular não influem na nossa vida? E a restrição aos operários seria feita igualmente a empresários, banqueiros, políticos profissionais ou donos de estações de tv?
Depois de haver sido o partido da transformação social, da crítica à ordem burguesa e ao atraso, a esquerda passava a ser considerada, talvez por força da derrota, como um obstáculo à inteligência. Sem ser uma refutação no plano das ideias, a vitória do capital sobre o movimento popular afetava as cotações intelectuais e estimulava a substituição das agendas, com vantagem discutível.
“O golpe no populismo de esquerda [Caetano refere-se à cena central de Terra em transe] libertava a mente para enquadrar o Brasil de uma perspectiva ampla, permitindo miradas críticas de natureza antropológica, mítica, mística, formalista e moral com que nem se sonhava.”56
As ausências conspícuas nessa lista de perspectivas amplas são a análise de classes, a crítica ao capital e o anti-imperialismo, sem falar no prisma da desmistificação. Assim, salvo engano, a nova liberdade de vistas consistia em deixar de lado os ângulos propriamente modernos ou totalizantes que haviam conquistado o primeiro plano no pré-64, quando teriam sido causa — mas será verdade? — de acanhamento mental.
Repitamos que não é o que o livro conta nos capítulos dedicados ao período, nos quais, ao contrário, se vê um momento inteligente e aberto da vida nacional, notável pelo ascenso popular e muito mais livre do que o que veio depois. Noutras palavras, voltando ao argumento de Caetano, o abalo causado pela viravolta militar e política teria tido também o seu aspecto positivo, abrindo perspectivas intelectuais novas, antes inacessíveis (mas alguém as vedava?), que “procuravam revelar como somos e perguntavam pelo nosso destino”.57
Já um materialista dirá que, longe de ser novidade, a consideração “antropológica, mítica, mística, formalista e moral” do país, bem como a pergunta pelo “nosso destino”, marcava uma volta ao passado, às definições estáticas pelo caráter nacional, pela raça, pela herança religiosa, pelas origens portuguesas, que justamente a visão histórico-social vinha redimensionar e traduzir em termos da complexidade contemporânea. É claro por outro lado que a reconfiguração geral do capitalismo, de que 64 fez parte, exige uma resposta que os socialistas continuam devendo.
A caracterização da esquerda como um bloco maciço, antidemocrático em política e retrógrado em estética, não correspondia à realidade. Embora minoritária, a fina flor da reflexão crítica do período era, além de socializante, antistalinista com conhecimento de causa e amiga do experimentalismo em arte. Basta lembrar Mario Pedrosa, Anatol Rosenfeld, Paulo Emilio Salles Gomes e Antonio Candido.
Com as diferenças de cada caso, algo parecido valia para os artistas de ponta, como Glauber e seus companheiros do Cinema Novo, o grupo da Poesia Concreta, os signatários do manifesto da Música Nova, o pessoal do Teatro de Arena e Oficina, incluindo o próprio Caetano antes da virada.58 Por que então a pressa em abandonar o barco, em que não faltavam aliados?
Arriscando um pouco, digamos que Caetano generalizou para a esquerda o nacionalismo superficial dos estudantes que o vaiavam, bem como a idealização atrasada da vida popular que o Partido Comunista propagava. A generalização errava o alvo e não deixava de surpreender, pois muito do êxito do artista se deveu a setores mais radicalizados da mesma esquerda, que se sentiam representados na linguagem pop, no comportamento transgressivo, nos acordes atonais e, de modo mais geral, na experimentação vanguardista e na atualização internacional.
Assim, até onde vejo, não foi a limitação intelectual da esquerda o que levou Caetano a fazer dela o seu adversário. A razão da hostilidade terá estado simplesmente nas reservas gerais dela ao capitalismo vencedor, na negatividade estraga-prazeres diante da voragem da mercantilização que se anunciava.
Numa passagem inesquecível do livro — também ela um júbilo duvidoso — Caetano desce à rua para ver de perto uma passeata estudantil e sua repressão pelos militares.59 À maneira dos hippies, que então era nova, o artista ostentava uma cabeleira enorme, vestia um capote de general sobre o torso nu e usava jeans e sandálias, além de “um colar índio feito de dentes grandes de animal”. Caminhando na contracorrente da manifestação, enquanto os estudantes fugiam e eram espancados, a estranha figura se toma de uma “ira santa”, com alguma coisa talvez de beato, e interpela os passantes, “protestando contra sua indiferença medrosa (e, quem sabe?, seu apoio íntimo) em face da brutalidade policial”. A cena é intrincada e vale uma discussão.
Os protagonistas centrais naturalmente eram os estudantes e os militares, que disputavam o domínio da rua e o ser-ou-não-ser da ditadura. Caetano não toma partido direto no conflito, não se alinhando com os manifestantes nem falando a eles, afinal de contas a sua gente, nem tampouco se dirigindo aos soldados. Em vez disso inventa para si uma figura de possesso, ou de profeta, e passa a dizer desaforos — “desaforos foi o que ouviram” — às pessoas da rua que não querem saber de nada e só pensam em cair fora o mais rápido possível. “Homens e mulheres apressados tinham medo dos manifestantes, dos soldados e de mim. Eu estava seguro de que, naquela situação, ninguém me tocaria um dedo.” Entre parêntesis, seria interessante, para aprofundar o episódio, conhecer o teor das recriminações. Seja como for, a participação a que o profeta incita os passantes não vale para ele próprio, vestido a caráter, que quer mesmo é invectivar, mais do que ser ouvido. A própria “ira santa” tinha um quê relativo, pois vinha acompanhada de cálculos de segurança pouco irados, que faziam dela um teatro para uso sobretudo particular. “Por outro lado, os soldados dificilmente focariam a sua atenção em mim: eu andava em sentido contrário aos estudantes fugitivos, na verdade tangenciando o olho do furacão, e minha aparência não seria computada como sendo a de um dos manifestantes. Eu falava alto e exaltadamente, mas nenhum soldado se aproximaria de mim o suficiente para me ouvir.” Com ar de doido, desses que as situações de caos e a religiosidade popular fazem aparecer, a personagem sentia-se a salvo da repressão, que não a veria como adversário. Em suma, uma intervenção arriscada mas nem tanto, que no fundo não é uma intervenção, embora criando uma posição fora de concurso, possível na circunstância (para quê?). De inegável interesse, devido sobretudo à complicação dos motivos, o episódio é difícil de classificar. Caetano o tem em alta conta, como happening, teatro político e poesia.
Tão esquisitas quanto a cena são as considerações a seu respeito. No principal, trata-se de valorizá-la como um lance de arte de vanguarda, ou neovanguarda dos anos 1960. As marcas distintivas estão aí: a recusa da separação entre arte e vida prática, a performance improvisada à luz do dia, com dimensão política, envolvendo o cidadão comum, a proposta de um fazer artístico sem obra durável, a poesia totalmente desconvencionalizada, que não se limita ao espaço do poema, e, por fim, a inspiração libertária geral.
“Mas nessa estranha descida à rua, eu me sabia um artista realizando uma peça improvisada de teatro político. De, com licença da palavra, poesia. Eu era o tropicalista, aquele que está livre de amarras políticas tradicionais e por isso pode reagir contra a opressão e a estreiteza com gestos límpidos e criadores. Narciso? Eu me achava nesse momento necessariamente acima de Chico Buarque ou Edu Lobo, de qualquer um dos meus colegas tidos como grandes e profundos.”
O autoenaltecimento algo cômico desse final, que combina aspirações à genialidade com a vontade meio infantil de estar à frente de colegas muito aplaudidos, dá o tom. É certo que o episódio preenche os requisitos do vanguardismo, com os quais está em dia, mas isso não é tudo, pois há também as suas dissonâncias internas, que o caracterizam noutra linha. A ira santa fingida, o profeta que assusta os assustados, em lugar de esclarecê-los e persuadi-los, a encenação de um happening enquanto os companheiros de geração e resistentes à ditadura apanham, a dúvida — alimentada ao longo do livro inteiro — quanto ao que sejam e de que lado estão a opressão e a estreiteza, a posição superior porém indefinida do tropicalista “livre de amarras políticas tradicionais” (quais?), os dividendos puramente subjetivos da operação vanguardista, despida do sentido transitivo ou explosivo que lhe é próprio, nada disso enfim é límpido, embora haja invenção.
Digamos que a verdade dessa página extraordinária, talvez a culminação do livro, não está onde o seu autor supõe. A riqueza da cena não decorre da integridade de seu gesto central — um ato de poesia? — mas da afinidade deste com a desagregação que se processa à sua volta, representativa do momento, como num romance realista. No começo do capítulo, Gilberto Gil experimenta um chá de auasca e descobre que pode
“amar, acima do temor e de suas convicções ou inclinações políticas, o mundo em suas manifestações todas, inclusive os militares opressores”.60
O caráter regressivo do amor aos homens da ditadura dispensa comentários, e aliás não deixa de ser um documento do que pode a droga segundo as circunstâncias. Logo em seguida, confirmando o clima de instabilidade e conversões vertiginosas, a narrativa retoma os dias anteriores ao golpe, quando Caetano ainda era simpático à transformação social, ao método Paulo Freire de alfabetização de adultos e ao cpc, que pouco depois iria abominar a ponto de aplaudir o incêndio da une. Voltando enfim ao presente pós-golpe, tão exaltantes quanto a droga há as situações de multidão nos concursos de auditório e nas manifestações de rua, quando “Deus está solto”,61 com os correspondentes convites à ego trip e ao messianismo, ao heroísmo e ao medo, que são outras tantas viagens.
“Nesse clima de ânimos exaltados e ruas conflagradas é que a auasca […] fez sua aparição.”62
No que se refere ao valor literário, que é real, tudo está em perceber a totalidade turbulenta, historicamente particular, composta destas referências tão diversas — planos de conquista da primazia artística, ditadura militar, agitação e militância revolucionária, indiferença dos passantes, clima psicodélico, arte de vanguarda, pancadarias de rua e auditório, celebridade midiática, medo, coordenadas da Guerra Fria etc. —, em que se objetiva com força memorável, sem paralelo talvez na literatura brasileira recente, o custo espiritual da instalação do novo regime.
De maneira metódica, o tropicalismo justapunha traços formais ultramodernos, tomados à linha de frente da moda internacional, e aspectos característicos do subdesenvolvimento do país. A natureza desencontrada e humorística da combinação, com algo de realismo mágico, salta aos olhos. No episódio da passeata, por exemplo, estão reunidos o visual hippie e a exaltação religiosa do pregador popular, o figurino do happening e o colar índio com seus grandes dentes de fera. São elementos com data e proveniência heterogêneas, cujo acoplamento compõe um disparate ostensivo, que reitera descompassos da história real. A incongruência, no entanto — aí a surpresa —, é um achado estético, e não uma deficiência da composição. O contraste estridente entre as partes descombinadas agride o bom gosto, mas ainda assim, ou por isso mesmo, o seu absurdo se mostra funcional como representação da atualidade do Brasil, de cujo desconjuntamento interno, ou modernização precária, passa a ser uma alegoria das mais eficazes. Vinda do campo da arte de consumo, a ambição do projeto, que visava alto, era surpreendente. Em tese, a canção tropicalista programada por Caetano queria conjugar superioridades com órbita diversa: a revolução do canto trazida por João Gilberto, o nível literário dos melhores escritores modernos da língua (João Cabral e Guimarães Rosa), a vasta audiência dos sucessos comerciais, sofisticados ou vulgares (Beatles, Roberto Carlos e Chacrinha), a força de intervenção do pop star, cujas posturas públicas podem fazer diferença (em especial num momento de ditadura), atuando “ sobre o significado das palavras” — tudo de modo a influenciar “imediatamente a arte e a vida diária dos brasileiros”. Em suma,
nós outros tentávamos descobrir uma nova instância para a poesia”63
A intenção revolucionária desse programa, que buscava aliar primazias que as especializações artísticas e as realidades da ordem burguesa mantinham separadas, só não era evidente porque o escândalo a encobria. Estão aí, convincentes ou não, o desconfinamento da poesia, liberta dos “ritos tradicionais do ofício” e interferindo na vida real; a entrada da canção comercial, até então plebeia, para o clube da grande arte; a derrubada das divisórias entre arte exigente e indústria cultural, experimentalismo e tradição popular, que deixariam — mas será certo? — de se repelir; o trânsito livre entre a excelência artística e a vida diária da nação, viabilizado aqui pelos bons serviços do mercado, como se vivêssemos no melhor dos mundos e os mecanismos alienadores do capital não existissem.
Por outro lado, tomando distância, notemos que o desejo de eficácia transformadora e a desenvoltura diante das divisões correntes davam prosseguimento, noutra chave, a tendências sociais e artísticas anteriores a 64. Embora oculta, essa continuidade configurava e problematizava a passagem de um período ao outro, sendo um fator de fundo da força romanesca que o livro tem. Também nos anos de pré-revolução — basta lembrar o capítulo de Caetano sobre Salvador — estiveram na ordem do dia a invenção de novas formas de militância cultural, a exposição das formas artísticas a um debate politizado, a redefinição subversiva das relações entre cultura exigente e cultura popular, a incorporação do repertório erudito e vanguardista, nacional e internacional, às condições peculiares da luta social no país etc. Não obstante, a diferença entre os dois momentos não podia ser maior. Sob o signo do ascenso popular, a convergência entre inovação artística e dessegregação social antecipava, ilusória ou não, alguma forma de superação socialista, que colocava a experimentação estética no campo da busca de uma sociedade nova e melhor.
Já sob o signo contrário, da derrota do campo popular, os mesmos impulsos adquiriam uma nítida nota escarninha, inclusive de autoderrisão, aliás indispensável à verdade do novo quadro. Também este é um resultado artístico forte, que dá figura crítica a um momento da história contemporânea, a saber, o truncamento da revolução social no Brasil. De maneira enviesada, a carnavalização tropicalista aludia à autotransformação que o país ficara devendo.
“A palavra-chave para se entender o tropicalismo é sincretismo”, com as suas implicações antipuristas de heterogeneidade e mistura, ou de integração deficitária.64
Com efeito, a colagem de elementos que não casam, dissonantes pelos respectivos contextos de origem, é o traço formal distintivo da arte tropicalista, contrária em tudo ao padrão da forma orgânica. A agressão às separações estabelecidas tinha significado ambíguo, expressando tanto o anterior impulso revolucionário quanto a vitória subsequente da comercialização, também ela destradicionalizadora. O procedimento dava figura à mixórdia dos novos tempos em que o país entrava, a que as formas populares tradicionais, com seu universo convencional e circunscrito, não tinham acesso. O passo à frente, em termos de modernização da música popular, de aproximação dela ao vanguardismo estético, era indubitável. As discrepâncias — ou montagens — ocorriam no interior das canções, ou também entre as canções de um mesmo disco. Assim, por exemplo, comentando os planos para um dos primeiros trabalhos de Gal Costa, Caetano observa que se tratava de superar
“tanto a oposição mpb / Jovem Guarda quanto aquela outra oposição, mais profunda, que se dava entre bossa nova e samba tradicional, ou ainda entre música sofisticada moderna (fosse bossa nova, samba-jazz, canção neorregional ou de protesto) e música comercial vulgar de qualquer extração (“versões de tangos argentinos, boleros de prostíbulos, sambas canções sentimentais etc.”).65
Observe-se o sentido inesperado que tem aqui a ideia de superação. Em todos os casos, ela envolvia algum grau de afronta (“escândalos que eu próprio queria desencadear”),66 pois mesclava gêneros ou rubricas rivais, alfinetando as razões e os preconceitos envolvidos na sua diferença. Em cada uma das oposições lembradas estavam em pauta, como é fácil ver, hostilidades de linha política, ou também de classe ou geração, as quais apimentavam as divergências artísticas. Ao agitar e transformar em tema esse substrato de animosidades estético-sociais, altamente representativas, o tropicalismo inovava e aprofundava o debate. Estava em jogo também o rumo que as coisas iriam tomar: a bossa nova colocava-se adiante do samba tradicional, a vulgaridade comercial ficava aquém da música sofisticada, e a mpb, segundo o ponto de vista, estava à frente ou atrás da Jovem Guarda do iê-iê-iê, questão que por um momento pareceu ter implicações para o futuro do país.
Acentuando o paradoxo, digamos então que as oposições que o tropicalismo projetava superar eram elas mesmas portadoras de ambição superadora, e que nesse sentido era a própria superação que estava sendo superada, ou, ainda, a própria noção de progresso que estava sendo desativada por uma modalidade diferente de modernização.
Assim, a superação tropicalista deixava e não deixava para trás as oposições acima das quais queria planar. A distância tomada era suficiente para permitir que os termos em conflito coexistissem e colaborassem na mesma canção, no mesmo disco e sobretudo num mesmo gosto, mas não tanta que se perdesse a chispa antagônica, sem a qual iria embora o escândalo da mistura, que também era indispensável e devia ser conservado. A seu modo, era uma distância que, embora mudando a paisagem, deixava tudo como antes, com a dinâmica superadora a menos. A mais, havia um ponto de vista superiormente atualizado, acima do bem e do mal, um novo sentimento do Brasil e do presente, que se recusava a tomar partido e que encontrava no impasse o seu elemento vital, reconhecendo valor tanto ao polo adiantado como ao retrógrado, inclusive o mais inconsistente e kitsch. O que se instalava, a despeito do alarido carnavalesco, era a estática, ou, noutras palavras, uma instância literal de revolução conservadora. Veremos que esta não é a palavra final sobre o tropicalismo, ainda que contenha muitas de suas intenções principais.
A figuração do país através de seus contrastes estereotipados, em estado de ready-made, torna-se uma fórmula sarcástica, de conotação vanguardista. Aí estão o mato virgem e a capital hipermoderna, a revolução social e o povo abestalhado, o iê-iê-iê dos roqueiros e a família patriarcal rezando à mesa, o mais que ultrapassado Vicente Celestino e o avançadíssimo João Gilberto, o mau gosto superlativo de Dona Iolanda, a mulher do general-ditador, quando comparada à dignidade de Indira Gandhi, a grande dama terceiro-mundista que nos visitava etc. etc., tudo realçado pelo envoltório pop de última moda.
Longe de ser um defeito, a facilidade da receita era uma força produtiva ao alcance de muitos, que permitiu a uma geração falar de maneira engenhosa e reveladora. “da tragicomédia Brasil, da aventura a um tempo frustra e reluzente de ser brasileiro”.67 Com alta dose de ambivalência, a funcionalidade por assim dizer patriótica dessas oposições estacionárias, que não tendiam à resolução, fazia que elas trocassem de sinal. De descompassos e vexames, passavam a retrato assumido e engraçado da nacionalidade, verdadeiros logotipos com toque ufanista, em suma, à revelação festiva, ainda que embaraçosa, do que “somos”.68 Uma ideologia carnavalesca da identidade nacional harmonizava e caucionava os desencontros de nossa formação social, desvestindo-os da negatividade que haviam tido no período anterior, de luta contra o subdesenvolvimento.
Os termos opostos agora existiam alegremente lado a lado, igualmente simpáticos, sem perspectiva de superação. Saltando a outro plano, distante mas correlato, essa acomodação do presente a si mesmo, em todos os seus níveis, sem exclusivas, era a imitação ou assimilação subjetiva — mais satírica do que complacente? — do ponto de vista da programação comercial da cultura. Também as estações de rádio ou de tv trabalham com todas as faixas de interesse do público, do regressivo ao avançado, desde que sejam rentáveis. O mundo cheio de diferenças e sem antagonismos toma a feição de um grande mercado.
Para sugerir algo das diferentes possibilidades envolvidas numa conjuntura como essa, vejam-se duas indicações curiosas sobre “Alegria, alegria”, o primeiro grande êxito de Caetano. Conforme aponta o autor, a canção retoma no título um refrão do Chacrinha e inclui na letra uma formulação de J.-P. Sartre — “nada no bolso e nas mãos” —, colocando juntos o animador clownesco de tv, autoritário e comercial, ídolo das empregadas domésticas, e o filósofo da liberdade, ídolo dos intelectuais.69 A piada passaria despercebida se Caetano, interessado em exemplificar o espírito misturador do tropicalismo, não chamasse atenção para ela. A sua irreverência se pode ler de muitas maneiras, o que só lhe aumenta o interesse. Por um lado o artista deixa claro que a imaginação tropicalista é libérrima e se alimenta onde bem entende, sem respeito à hierarquia (elitista? preconceituosa?) que coloca o grande escritor acima da popularidade televisiva.
Por outro, a inspiração igualitária não convence, pois na associação de Chacrinha e Sartre há também a alegria debochada de nivelar por baixo, sob o signo do poder emergente da indústria cultural, que rebaixa tanto a gente pobre quanto a filosofia, substituindo por outra, não menos opressiva, a hierarquia da fase anterior. Seria o abismo histórico entre cultura erudita e popular que se estaria tornando coisa do passado? Seria a desqualificação do pensamento crítico pelas novas formas de capitalismo que estaria em andamento? Ou seria a força “saneadora” da “imunda” indústria do entretenimento que se fazia sentir?70 O gosto duvidoso que a brincadeira deixa na boca é um sabor do nosso tempo.
Dito isso, a visão 1997 que Caetano propõe do tropicalismo, como um movimento mais positivo que negativo, antes a favor do que do contra, não deixa de surpreender. A despeito do autor, não é isso o que o livro mostra ao fazer a crônica de uma radicalização artística e social vertiginosa, talvez mal calculada, com ponto de fuga na provocação e na morte.
Na última série de programas de tv que antecedeu a prisão, que tinha como título Divino, maravilhoso, a exacerbação já chegava ao limite: o palco estava atrás de grades, os artistas cantavam em jaulas e assistiam ao enterro do movimento, ao passo que Caetano apontava um revólver para a cabeça.71 A afinidade sempre negada com a arte de protesto não podia ser maior. Assim, uma apreciação equilibrada do conjunto deveria ressaltar linhas de força contraditórias. A justaposição crua e estridente de elementos disparatados, inspirada em certo sentimento do Brasil, dava espaço a leituras divergentes. Colocados lado a lado, em estado de inocência mas referidos à pátria, os termos da oposição podem significar um momento favorável, de descompartimentação nacional, de destemor diante da diversidade extravagante e caótica do que somos, a qual por fim começaria a ser assumida num patamar superior de conciliação.
Difícil de compaginar com a ditadura, esse aspecto eufórico existia, embora recoberto por uma ironia que hoje não se adivinha mais. A frequente atitude de orientador cultural adotada por Caetano, voltada para a regeneração da música popular brasileira, liga-se a essa perspectiva. Se entretanto atentarmos para a dimensão temporal que no fim das contas organiza e anima as justaposições, em que o ultranovo e o obsoleto compõem uma aberração constante e inelutável, algo como um destino, o referente passa a ser outro, historicamente mais específico e francamente negativo. Em lugar do Brasil-terra-de-contrastes, amável e pitoresco, entra o Brasil marcado a ferro pela contrarrevolução, com sua combinação esdrúxula e sistemática de modernização capitalista e reposição do atraso social — a oposição atrás das demais oposições —, de que a fórmula tropicalista é a notável transposição estrutural e crítica.
Nesse sentido, sem prejuízo das convicções políticas contrárias do autor, o absurdo tropicalista formaliza e encapsula a experiência histórica da esquerda derrotada em 1964, e sua verdade. Nem sempre as formas dizem o que os artistas pensam.
O paralelo entre o tropicalismo e a poesia antropófaga de Oswald de Andrade, quarenta anos mais velha, é evidente. Esta última canibalizava soluções poéticas do vanguardismo europeu e as combinava a realidades sociais da ex-colônia, cuja data e espírito eram de ordem muito diversa. O resultado, incrivelmente original, era como que uma piada euforizante, que deixava entrever uma saída utópica para o nosso atraso meio delicioso, meio incurável. Nessa hipótese do antropófago risonho, o Brasil saberia casar o seu fundo primitivo à técnica moderna, de modo a saltar por cima do presente burguês, queimando uma etapa triste da história da humanidade.
Analogamente, o tropicalismo conjugava as formas da moda pop internacional a matérias características de nosso subdesenvolvimento, mas agora com efeito contrário, em que predominava a nota grotesca. Esta apontava para a eternização de nosso absurdo desconjuntamento histórico, que acabava de ser reconfirmado pela ditadura militar.
Digamos que em sua própria ideia a antropofagia e o tropicalismo tinham como pressuposto o atraso nacional e o desejo de superá-lo, ou seja, em termos de hoje, o quadro da modernização retardatária. Num caso, plantado no início do ciclo, a perspectiva é cheia de promessas (“A alegria é a prova dos nove”).72 No outro, suscitado pela derrota do avanço popular, a tônica recaía na persistência ou na renovação da malformação antiga, que portanto não estava em vias de superação como se supunha.
“Assim, digam o que disserem, nós, os tropicalistas, éramos pessimistas, ou pelo menos namoramos o mais sombrio pessimismo”.73 “[…] de fato, nunca canções disseram tão mal do Brasil quanto as canções tropicalistas, nem antes nem depois.”74
Com sentidos diferentes, sempre com força e inserção histórica, digamos que tanto a antropofagia quanto o tropicalismo foram programas estéticos do Terceiro Mundo.
* * *
Depois de capítulos sobre a prisão, a liberdade vigiada em Salvador e dois anos e meio de exílio em Londres — um conjunto de punições que não é pequeno —, há a volta ao Brasil.
São páginas cheias de interesse, cujo caráter deliberadamente apolítico entretanto chama a atenção. Afinal de contas não se tratava aqui de um anônimo, mas de uma figura saliente da oposição cultural à ditadura, “com poder sobre a opinião pública” e, por que não dizer, com as responsabilidades correspondentes.75 Em especial a parte sobre a cadeia desconcerta.
Muito literária, atravessada por exercícios proustianos, ela se concentra nas perturbações do sono, da libido, dos humores e da razão causadas pela perda da liberdade. A resposta ao castigo político infligido pela ditadura vem na forma de um longo queixume analítico sobre os sofrimentos da prisão — o que aliás não deixa de ser uma denúncia em registro inesperado.
Nenhuma vontade de resistência, nenhuma ideia sobre a continuidade do movimento oposicionista de que, mal ou bem, mesmo involuntariamente, o artista continuava a ser parte. É claro que a preferência pelo ângulo intimista, às expensas da dimensão coletiva da situação, pode ser um afã de originalidade do escritor. Onde a tradição do gênero manda o prisioneiro político dar um balanço dos acontecimentos passados e das perspectivas futuras, o artista adota o papel anticonvencional de anti-herói e anota outras coisas, não menos importantes, como a incapacidade de chorar ou de se masturbar — lágrimas e sêmen são parentes — acarretada pelo cárcere; ou a precedência invencível da superstição sobre o bom senso quando se trata de especular sobre a eventual libertação.
Em seu momento, três décadas depois, a opção narrativa pela confissão de fraqueza, pela incapacidade de opor resistência, pode ser um heroísmo ao contrário (uma superioridade sobre a estreiteza dos militantes? uma rebeldia em segundo grau?), e penso que é assim que ela se apresenta. Entretanto, é possível também que a longa descida aos infernos não funcione só como depoimento, ou leal rememoração, mas também como desconversa, dispensando o autor de reatar o fio com a posição avançada e guerreira em que se encontrava no momento em que a direita política o atingiu. Comentando o acerto da canção com que Gil se despedia do Brasil, depois da prisão e antes do exílio, “sem sombra de rancor”, “amor e perdão impondo-se sobre a mágoa”, Caetano louva a sua sabedoria: “‘Aquele abraço’ era, nesse sentido, o oposto de meu estado de espírito, e eu entendia comovido, do fundo do poço da depressão, que aquele era o único modo de assumir um tom ‘bola para a frente’ sem forçar nenhuma barra”.76 A lição aplicada pelos militares havia surtido efeito.
A recomposição se completa depois da volta ao país em 1972 — auge da ditadura —, no primeiro carnaval passado na Bahia. Em matéria de melodrama, coincidências mágicas e apoteose, o episódio chega ao grandioso. “Chuva, suor e cerveja”, um frevo composto por Caetano ainda no exílio, estava tendo grande aceitação popular, deixando o artista entre o riso e as lágrimas. A atmosfera de pansexualismo nas ruas, onde se confundiam os foliões fantasiados e os hippies autênticos, os travestis carnavalescos e os gays da revolução sexual em curso, era como que a realização popular do programa tropicalista, que também ele tornava fluidas as fronteiras entre tradicional e moderno, local e cosmopolita, masculino e feminino. Respirava-se “uma sensação de liberdade muito grande”.77 Por coincidência com o título do frevo, a chuva começa a cair assim que o trio elétrico o começa a tocar, enquanto a multidão continua cantando e dançando.
“[…] tudo compunha uma festa completa de recepção para mim por parte do Brasil que me falava direto ao fundo do imaginário”.78
Sobre o caminhão do trio elétrico vinha montado um foguete espacial que trazia a inscrição “Caetanave”. O músico sobe para agradecer a homenagem.
“Senti alguma coisa bater em meu rosto que não era uma gota de chuva. Aproximei a mão para descobrir o que era. A coisa voou para o meu peito e só aí é que Roberto [um amigo] e eu percebemos que se tratava de uma esperança. Apesar da chuva grossa, essa esperança verde voou na direção das luzes do caminhão e veio pousar em mim. Eu então disse para Roberto: ‘Quer dizer que há esperança?’. Ele respondeu com a alegria tranquila de quem não esperaria por nada menos: ‘Claro!’.”
A Caetanave segue em direção da casa em que Gil estava dormindo. Este, que acreditava em disco voador, leva um momento para se recompor e perceber o que se passava.
“Quando me viu descer do objeto estranho do qual o som trepidante provinha, entendeu antes de tudo que a magia e o ordinário se reafirmavam mutuamente, que o simbólico e o empírico não precisavam ser distinguidos um do outro — que, naquele momento forte, o mito vinha fecundar a realidade. A rejeição que o exílio significara não apenas se dissipava: dava lugar a uma carinhosa compensação.”79
Como num conto de fadas ou numa alegoria carnavalesca, a chuva, os bichinhos alados e o povo da Bahia se unem para dar boas-vindas, em nome do Brasil, ao artista que fora rejeitado e agora voltava. O apelo ao maravilhoso é compreensível como expressão de desejo, embora kitsch. Como explicação do curso das coisas, é regressivo, uma verdadeira abdicação. A personificação mítica do país, que acolhe e repara depois de haver mandado embora, toma o lugar da discriminação sóbria dos fatos, com evidente prejuízo intelectual.
Apagam-se por exemplo a fragilidade e o medo do perseguido político, as consultas aflitas do exilado, que gostaria de voltar mas não de ser preso, os cálculos sórdidos da ditadura, necessitada de alguma legitimidade cultural, enfim, um mundo de negociações inglórias mas reais, que compunha os bastidores de congraçamentos dessa ordem. Sobretudo desaparece o jogo dos conflitos e das alianças de classe que subjazem à invenção estética e à consagração artística, sem o qual a beleza não se compreende socialmente. Como Caetano é mestre na percepção e análise dessas relações, fica mais decepcionante a sua conversão ao mito. Dito isso, o livro seria menos representativo se faltassem esses parágrafos.
Muito estranhas e cheias de fintas, as primeiras páginas de Verdade tropical se comprazem num show de inteligência propositalmente barata, que procura desnortear o leitor esclarecido. Aliás, o uso do mal-estar como um recurso literário problematizador é uma originalidade do livro. Ao tomar posições que não cabem no consenso civilizado (que manda, por exemplo, não aplaudir o incêndio da casa do adversário, não fazer pouco da capacidade política dos trabalhadores, não apresentar-se a si mesmo como personagem de um mito), Caetano faz da relação de leitura um campo de provocações, conflituoso e inseguro, um cabo de guerra característico do vale-tudo dos novos tempos, em que não há por que dar crédito aos autores, mesmo quando são interessantes. A incerteza prende e incomoda, em especial porque não se trata de ficção, mas de um depoimento.
Interessante ela própria, essa relação para-artística talvez seja mais verdadeira ou contemporânea que as certezas cediças que asseguram o acordo literário entre os bem-pensantes. Assim, o livro começa tecendo considerações duvidosas sobre a nossa singularidade nacional.
“No ano 2000 o Brasil comemora, além da passagem do século e do milênio, quinhentos anos do seu descobrimento. […] É um acúmulo de significados para a data não compartilhado com nenhum outro país do mundo.”
Que pensar dessa nossa exclusividade cheia de promessas? A banalidade meio oficialista da observação, à beira do risível, deixa perplexo o leitor que não tenha a superstição dos números redondos. É claro que já na frase seguinte Caetano vai tomar distância de sua pérola — mas não inteiramente —, atribuindo a superstição aos compatriotas.
“A sobrecarga de presságios desencadeada por uma tal conjunção combina bem com a psicologia de uma nação falhada que encontra razões para envergonhar-se de um dia ter sido chamada de ‘país do futuro’.”
Ainda aqui, entretanto, se prestarmos atenção, o movimento é dúbio. Presságios combinam bem com a psicologia de nações falhadas, mas não, como seria de esperar, porque estas faltassem com o realismo, mas porque não tiveram a força de acreditar noutros presságios mais favoráveis.M]as a magnitude dessas decepções antevividas revela que — feliz . infelizmente — estamos muito longe de um realismo sensato.”⁸⁰ Em suma, a credulidade do narrador não é dele, mas do país, embora seja dele também, com muita honra.
As idas e vindas são conduzidas com malabarismo e se não chegam a exaltar a superstição da nacionalidade, simpatizam com ela e rebaixam um pouco o bom senso na matéria. A relativização das vantagens e desvantagens respectivas vai se repetindo a propósito de outras polaridades análogas, num procedimento bem dominado, que diz respeito a alternativas abstratas entre imaginação (ou mito, ou sonho, ou superstição) e realismo, Brasil e Estados Unidos, o nome e a coisa, todas mais ou menos paralelas. Dependendo do ponto de vista, são fla-flus bem achados e sugestivos, ou questões passavelmente ocas
“Os Estados Unidos são um país sem nome […], o Brasil é um nome sem país.” O Brasil é o “Outro” dos Estados Unidos: “O duplo, a sombra, o negativo da grande aventura do Novo Mundo”, “[…] esse enorme lugar-nenhum cujo nome arde”.81
Seja como for, são colocações de um patriotismo fantasioso, meio poético e meio mítico, que convida a assumir as nossas debilidades como uma riqueza própria. Em seguida, contudo, o leitor notará que o elogio da insensatez e a licença de ser inconsequente têm função retórica, estabelecendo a ambiência intelectual complacente e furta-cor de que Caetano precisa para falar do golpe de 64, o nervo sensível do capítulo.
Depois de dizer que na adolescência a sua geração sonhara reverter o “legado brutal” das desigualdades brasileiras, vem uma das frases características do livro:
“Em 64, executando um gesto exigido pela necessidade de perpetuar essas desigualdades que têm se mostrado o único modo de a economia brasileira funcionar (mal, naturalmente) — e, no plano internacional, pela defesa da liberdade de mercado contra a ameaça do bloco comunista (guerra fria) —, os militares tomaram o poder”.82
É preciso ler devagar, para assimilar os solavancos ideológicos dessa passagem que procura captar — com distanciamento? com sarcasmo? com ânimo justificatório? — o ângulo da direita vencedora.
A sucessão de imperativos contraditórios, alguns claramente injustificados, carrega de tensão social a escrita, além de acender a controvérsia. A tarefa histórica gloriosa de transformar um país deformado pela desigualdade cede o passo à necessidade de… perpetuar a desigualdade. Necessidade por quê? de quem? O uso indevido da palavra, propriamente ideológico, fala por si. O que aconteceu entre o desejo de superar o “legado brutal” e a decisão contrária de reafirmá-lo? Qual foi o ensinamento assimilado? Acresce que executar “um gesto exigido pela necessidade” parece apontar para alguma grandeza trágica, logo desmentida pela baixeza do objetivo. A razão última, também ela um sofisma, embora com tintura materialista, diz que foi tudo por amor da pátria, que sem a desigualdade não funcionaria.
Como saber, se o Brasil menos desigual nunca foi experimentado? Seja como for, a pátria aqui é a pátria dos beneficiários da desigualdade.
Completando o movimento, a ditadura é necessária, no plano internacional da Guerra Fria, para defender a liberdade do mercado contra a ameaça do bloco comunista. Com algo de verdade, que não deixa de ser uma incriminação da liberdade de mercado, as frases dão forma literária — aí o seu mérito — ao horizonte rebaixado e “mau” da contrarrevolução. A hesitação inicial e algo frívola entre mito e realidade — qual seria melhor? — prolonga-se no vaivém quanto às razões da esquerda e da ditadura. As escaramuças prosseguem nos parágrafos seguintes, os quais sugerem que a esquerda, ao contrário do que pensava, não tinha o monopólio dos bons sentimentos, ao passo que a direita era menos má do que se dizia. São retificações morais discutíveis, de uma equidistância obviamente enviesada, que em todo caso passavam longe das realidades brutas da ditadura, ou, no momento anterior, das questões que dividiam o país e diziam respeito à reforma agrária, à reivindicação popular, à incorporação sócio-política da população rural, ao desenvolvimentismo, à política externa independente, ao combate à pobreza, em suma, ao aprofundamento da democracia.
Escrito com distância de três décadas, em plena normalização capitalista do mundo nos anos 1990, Verdade tropical recapitula a memorável efervescência dos anos 1960, em que o tropicalismo figurava com destaque. Bem vistas as coisas, a guerra de atrito com a esquerda não impediu que o movimento fizesse parte do vagalhão estudantil, anticapitalista e internacional que culminou em 1968. Leal ao valor estético de sua rebeldia naquele período, Caetano o valoriza ao máximo. Por outro lado, comprometido também com a vitória da nova situação, para a qual o capitalismo é inquestionável, o memorialista compartilha os pontos de vista e o discurso dos vencedores da Guerra Fria. Constrangedora, a renúncia à negatividade tem ela mesma valor de documento de época. Assim, a melhor maneira de aproveitar este livro incomum talvez inclua uma boa dose de leitura a contrapelo, de modo a fazer dele uma dramatização histórica: de um lado o interesse e a verdade, as promessas e as deficiências do impulso derrotado; do outro, o horizonte rebaixado e inglório do capital vitorioso.
(2011)
Notas :
1. Caetano Veloso, Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
2. Id., ibid., p. 19.
3. Id., ibid., p. 430.
4. Para os anos 1920, José Miguel Wisnik, “Getúlio da Paixão Cearense”, em Enio Squeff e José Miguel Wisnik, Música. São Paulo: Brasiliense, 1982; Davi Arrigucci Jr., “Presença ausente”, em Humildade, paixão e morte: a poesia de Manuel Bandeira. São Paulo, Companhia das Letras, 1990; Humberto Werneck, Santo sujo: a vida de Jayme Ovalle. São Paulo: Cosac Naify, 2008. Para a bossa nova, Ruy Castro, Chega de saudade. São Paulo: Companhia das Letras, 1990; Lorenzo Mammi, “João Gilberto e a bossa nova”. Novos Estudos Cebrap, n. 34, nov. 1992; Caetano Veloso, “Elvis e Marilyn”, em op. cit.; Walter Garcia, Bim bom: a contradição sem conflito de João Gilberto. São Paulo: Paz e Terra, 1999. Para 1964, Roberto Schwarz, “Cultura e política 1964-1969”, em O pai de família. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
5. Caetano Veloso, op. cit., p. 19.
6. Id., ibid., p. 23.
7. Id., ibid., p. 24.
8. Id., ibid., pp. 23-4.
9. Caetano refere-se a Juracy Magalhães, o ministro da ditadura, segundo o qual “o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Id., ibid., p. 52.
10. Id., ibid., p. 57.
11. Id., ibid., p. 29
12. Id., ibid., pp. 31-2.
13. Id., ibid., p. 58.
14. Id., ibid., pp. 63-4.
15. Id., ibid., p. 28.
16. Id., ibid., p. 263.
17. Id., ibid., p. 15.
18. Id., ibid., p. 63.
19. Id., ibid., p. 156.
20. Id., ibid., p. 183.
21. Id., ibid., p. 101.
22. Id., ibid., p. 254.
23. Id., ibid., pp. 254-5.
24. Id., ibid., p. 255.
25. Id., ibid., p. 254.
26. Id., ibid., pp. 35-6.
27. Id., ibid., p. 502.
28. Id., ibid., pp. 35-6.
29. Id., ibid., pp. 52-3.
30. Id., ibid., p. 277.
31. Id., ibid., p. 177.
32. Para uma ótima análise da figura de Paulo Martins, ver Ismail Xavier, “O intelectual fora do centro”, em Alegorias do subdesenvolvimento. São Paulo: Brasiliense, 1993.
33. Caetano Veloso, op. cit., pp. 104-5.
34. Id., ibid., p. 116.
35. Carlos Drummond de Andrade, “O operário no mar”, em Sentimento do mundo.
36. Nicholas Brown, Utopian generations. Princeton: Princeton University Press, 2005, pp. 176-7.
37. Caetano Veloso, op. cit., p. 116.
38. Id., ibid., p. 446. “No nosso próprio campo, fazíamos as duas coisas: empurrávamos o horizonte do comportamento para cada vez mais longe, experimentando formas e difundindo invenções, ao mesmo tempo que ambicionávamos a elevação do nosso nível de competitividade profissional — e mercadológica — aos padrões dos americanos e dos ingleses.”
39. Id., ibid., p. 418 e também 385-6.
40. Id., ibid., pp. 306-7.
41. “Nós não estávamos de todo inconscientes de que, paralelamente ao fato de que colecionávamos imagens violentas nas letras de nossas canções, sons desagradáveis e ruídos nos nossos arranjos, e atitudes agressivas em relação à vida cultural brasileira nas nossas aparições e declarações públicas, desenvolvia-se o embrião da guerrilha urbana, com a qual sentíamos, de longe, uma espécie de identificação poética.” Id., ibid., pp. 50-1.
42. Id., ibid., p. 401.
43. Id., ibid., p. 349.
44. Id., ibid., p. 17.
45. Id., ibid., pp. 306-7.
46. Id., ibid., p. 282.
47. Id., ibid., p. 281.
48. “As questões de mercado, muitas vezes as únicas decisivas, não pareciam igualmente nobres para entrar nas discussões acaloradas.” Id., ibid., pp. 177-8.
49. Id., ibid., p. 107.
50. Id., ibid., p. 52.
51. Id., ibid., p. 114. “Nós [Gil e Caetano] nos encontrávamos na música […]: saudávamos o surgimento do cpc e da une — embora o que fazíamos fosse radicalmente diferente do que se propunha ali — e amávamos a entrada dos temas sociais nas letras de música, sobretudo o que fazia Vinicius de Moraes com Carlos Lyra.” Id., ibid., p. 288.
52. Id., ibid., p. 115.
53. Id., ibid., p. 87.
54. Id., ibid., p. 115.
55. Id., ibid., p. 116.
56. Id., ibid., p. 105.
57. Id., ibid., p. 105.
58. Ver a respeito a boa documentação reunida em Arte em Revista. n. 1. São Paulo: Kairós, 1981.
59. Caetano Veloso, op. cit., pp. 317-9.
60. Id., ibid., p. 308.
61. Id., ibid., p. 301.
62. Id., ibid., p. 319.
63. Id., ibid., pp. 141-4.
64. Id., ibid., p. 292.
65. Id., ibid., p. 126.
Entrevista de Caetano Veloso ao jornal A Folha de São Paulo após a publicação do ensaio de Roberto Schwartz : ” Verdade Tropical – um percurso do nosso tempo ” .

Folha – Roberto Schwarz faz um misto de valorização literária e severa crítica ideológica de “Verdade Tropical”, 15 anos depois da publicação. O que retém em sua leitura?
Caetano Veloso – É envaidecedor que Schwarz tenha escrito tanto (e com tanta energia) sobre meu velho livro. Claro que não coincido com o grosso da crítica ideológica. No entanto, retenho a observação de que o argumento desenvolvido a partir da cena central de “Terra em Transe” seja, no livro, um tanto mal concebido.
Por que Schwarz só publica o ensaio 15 anos depois do seu livro?
Não sei. Talvez ele o tenha lido com grande atraso (não 15 anos de atraso, é claro) e demorado muito para decidir-se a discuti-lo publicamente. Talvez ele tenha tardado também em metabolizar o que leu.
Por que o livro renasce agora, com a edição de bolso de um de seus capítulos e a crítica de Schwarz?
Não sei.
Como foi a recepção do livro nos países em que foi publicado?
Foi publicado, em boas traduções, na Itália e na Espanha (e países de língua espanhola). A tradução francesa é horrível. A grega eu não sei ler. De qualquer modo, todas as traduções partem da edição americana (os direitos fora do Brasil e de Portugal são da Knopf), que deformou muito a estrutura do original. Todos os elogios literários que o livro mereceu de Roberto não seriam justificados para quem só lesse as traduções.
Me lembro de que a “New York Times Book Review” deu resenha favorável. Ouço comentários positivos de amigos argentinos, espanhóis e italianos. Também de alguns gregos. Na França parece que, além da tradicional mania francesa de traduzir como quem corrige o original, deram o longo texto a pessoas totalmente desqualificadas intelectualmente: já que se trata de um livro de cantor pop, por que pedir a alguém que saiba ler e escrever para traduzir?
Schwarz vê a relação dos tropicalistas com a esquerda como uma “comédia de desencontros”, na qual haveria mais afinidades do que divergências. Seu livro descreve longamente as divergências, e Schwarz agora as reitera. Ainda é possível falar em afinidades?
Claro que há e sempre houve afinidades. Gil e eu, além de Tom Zé e Rogério Duprat, sempre fomos “de esquerda”. Nossos amigos foram sempre majoritariamente de esquerda. Na altura do tropicalismo deu-se uma virada em mim, e também em Gil, pelo menos, que exigia repensar tudo por conta própria, desfazendo adesões automáticas. O maior inimigo era esse automatismo.
A cena de “Terra em Transe” é positiva porque expõe a quebra do automatismo ideológico a que artistas e intelectuais se viam presos. Quando o protagonista fala, o tom blasfemo revela tratar-se de um momento liberador. Claro que, uma vez olhando as coisas mais livremente, os males da esquerda apareceriam.
O ensaio atribui a você uma “generalização para a esquerda do nacionalismo superficial dos estudantes que o vaiavam” e a visão da “esquerda como obstáculo à inteligência”. Desde então, que renovação você vê na esquerda do ponto de vista cultural?
Toda cartilha ideológica, pode ser -e frequentemente é- obstáculo à inteligência. Eu tinha amigos na extrema esquerda que gostavam do que eu fazia e nada opunham ao tropicalismo.
Já contei em minha coluna no “Globo” como quase dei apoio logístico ao grupo de Marighella, através de minha amiga Lurdinha, uma guerrilheira que foi torturada e a quem [o delegado Sérgio Paranhos] Fleury se refere, numa entrevista, como a pessoa mais corajosa que ele conheceu.
Aliás, Hélio Oiticica, Glauber e Zé Celso eram de esquerda, além de Rubens Gerchman, Zé Agrippino e Rogério Duarte. O “desbunde” foi sobretudo um evento interno ao mundo das esquerdas. Hoje em dia, quando Delfim é defensor de Lula e Dilma e se opõe a FH, gosto da revista “Fevereiro”, de Ruy Fausto, e detesto blogs como o de Paulo Henrique Amorim.
Sempre me pergunto por que Roberto Schwarz ou Marilena Chaui nunca têm nada a dizer sobre o que se passa na Coreia do Norte (não vale dizer que a “grande imprensa já diz”). Por que Lula e Tarso Genro mandaram de volta, num avião venezuelano, os atletas cubanos que tinham pedido asilo político ao Brasil? Isso é admissível? Ninguém na esquerda reclama de nada disso?
Os esforços intelectuais de [Theodor] Adorno para igualar a vida americana ao Terceiro Reich e à União Soviética só servem para provar repetidas vezes que as liberdades nas democracias liberais são suspeitas: a ostensiva falta de liberdade em países comunistas nunca é combatida, nem eloquentemente, nem cedo.
Quando eu era moço, intelectuais de esquerda dizerem-se anti-stalinistas representava um piso mínimo de elegância: quase nunca passava de uma declaração para se poder continuar sendo comunista. Não havia (como Tony Judt mostrou que não havia na França) um esforço crítico, por parte de intelectuais de esquerda, de se opor aos estados policiais.
É interessante notar que Zizek elogia o imperialismo chinês no Tibete e desculpa as paradas fascistas da Coreia do Norte. Nossos elegantes uspianos nada dizem.
Qual foi a novidade em termos de crítica ao tropicalismo no Brasil e no exterior?
Não leio quase nada sobre tropicalismo. Às vezes esse movimento é citado em publicações sobre música popular, às vezes em artigos acadêmicos (de estudos sobre América Latina ou língua portuguesa). Nada me impressiona muito.
Augusto de Campos e Ferreira Gullar polemizaram em torno de acontecimentos dos anos 1950 e 60, o país discute a Comissão da Verdade, torturadores têm sofrido “esculachos” na porta de casa. A conta dos anos 1960 e 70 não fecha?
Que conta fecha? Mas vamos andando. O ser humano é um desequilibrador. Pessoalmente, sou pela Comissão da Verdade. Há um trecho crucial em “Verdade Tropical”, que Schwarz sintomaticamente ignora, em que conto o quanto aprendi sobre a verdade da sociedade brasileira ao ouvir, na cadeia, urros de dor de torturados, os quais não eram nossos companheiros de prisão política. Havia quem dissesse que se tratava de presos políticos vindos de outros quartéis. Mas chegou-se à conclusão de que eram presos comuns, ladrões da Zona Norte, bandidos.
Pois bem, antes da ditadura, durante e depois, esses maus tratos vêm se dando nas delegacias e prisões civis e militares. Se não denunciarmos (e mesmo punirmos) os torturadores que trabalhavam para o Estado, não teremos a saúde social mínima necessária para começar a acabar com isso.
Há um paralelo entre o público dos festivais e os comentaristas de internet e blogueiros de hoje?
Deve haver. Mas não interessa.
O que pensa da Comissão da Verdade e da Lei da Anistia?
Senti que o modelo espanhol da Anistia serviria para o Brasil. Hoje sou totalmente pela Comissão da Verdade e não acho que torturadores devam ser perdoados. Os guerrilheiros foram punidos (inclusive com tortura e morte). É enganoso equiparar os dois tipos de crime.
Você é retratado como um memorialista “comprometido com a vitória da nova situação, para a qual o capitalismo é inquestionável”. Como responde à acusação de “conservadorismo” político?
Deixei de temer palavras como “conservador” ou “de direita”, como se fossem xingamentos que ostracizam, em 1967. Minha teimosia em permanecer no campo da esquerda vem de minha crença na possibilidade de mudar para melhor o jeito de a gente viver sobre a Terra. Não descarto sequer a eventualidade de alguma violência. Mas estou certo de que o que se chama de esquerda também atrapalha muito.
O mito do Brasil e de sua oportunidade de originalidade me põe numa situação em que posso sonhar mais alto, pondo os horrores das revoluções e seus desdobramentos sob crítica. Por essa razão me atraem mais as sugestões de Mangabeira Unger do que as repetições da esquerda uspiana.
Ele abre espaço para a originalidade do Brasil. Para mim isso é fatal: somos originais, seremos originais ou desapareceremos. O capitalismo não é inquestionável: que a gasolina americana tivesse sido enriquecida com chumbo porque isso a fazia mais rentável, e que o empresário que usou essa vantagem tenha mantido em segredo a descoberta de que o chumbo era prejudicial à saúde pública para não ver cair o lucro; e que, depois de essa descoberta ter-se tornado pública, a gasolina americana tenha reduzido gradativamente até zero seu teor de chumbo, mas a brasileira não, por razões de lucro (com todas as implicações de acumulação de capital e de reafirmação de poderes imperialistas), é algo que expõe a que graus de irracionalidade e de desumanidade pode chegar uma organização social que se submeta à exclusiva força da grana. Sou contra.
Mas não quero que os que lutam contra isso possam ganhar poderes autocráticos. Uma revolução feita a partir da originalidade benigna de um Brasil de sonho deveria não precisar ser sangrenta e poderia, de qualquer modo, orientar os serviços que alguém queira prestar à Justiça de um jeito diferente daquele que tem sido desenvolvido pelos movimentos revolucionários da esquerda convencional.
Estes têm levado à autocracia e a Estados policiais. Sou contra.
Além disso, quando se diz “capitalismo” o que é mesmo que se está querendo dizer? O capítulo sobre o conceito no livro de Mangabeira é instigante. E Lacan disse uma vez que “o inconsciente é capitalista”.
Schwarz critica o “amor aos homens da ditadura” expresso por Gilberto Gil ao tomar ayahuasca e comenta os seus elogios à letra de “Aquele Abraço”: “A lição aplicada pelos militares havia surtido efeito”. Como vê essa avaliação severa?
Esse parágrafo de Schwarz é cruel e tolo. A prisão me pôs mais profundamente em inimizade com o projeto dos militares de direita que tomaram o Brasil. A descrição dos solavancos por que passamos não poderia ser desinfetada para agradar aos revolucionários de gabinete. Sou muito franco e apaixonado pela clareza e pela luz.
Gosto mais do esclarecimento do que da Dialética do Esclarecimento, que tanto obscurece. (Aliás, desconfio dessa escolha da palavra “esclarecimento” em lugar de “Iluminismo”.)
A lição aplicada pelos militares surtiu efeito em mim: me fez mais realista, mais conhecedor dos pesos concretos da vida. Foi sob a ditadura, sobretudo na prisão, que aprendi a odiar o odiável em nossa sociedade.
Para o ensaísta, há uma discrepância entre as visões de “Verdade Tropical” sobre o Brasil pré-64: ora é descrito como um “ascenso socializante”, com sua experiência em Santo Amaro e em Salvador, ora como “um período incubador de intolerância e ameaça à liberdade”. Você enxerga essa discrepância?
Eu poderia ter sido um garoto de esquerda, sem desconfianças a respeito sequer do stalinismo. Mas não fui. Me atraiu o livro de Luís Carlos Maciel sobre Beckett, Kafka e Ionesco: a esquerda que eu conhecia era lukacsiana e ninguém falava em Adorno em 1963 em Salvador (embora se falasse muito em Gramsci, o que era pioneiro).
Poderia ter sido um garoto assim e, depois, descoberto que nos países comunistas (não só na URSS e seus satélites, mas na China de Mao, em Cuba, na Coreia do Norte) o Estado desrespeitava oficialmente os mais básicos direitos humanos -e ter me revoltado contra o projeto comunista.
Mas eu era um garoto desconfiado da “ditadura do proletariado”, além de ser um sujeito pacato da baixa classe média que sentia natural horror pelo aspecto violento das revoluções.
Descobrir que a experiência do “socialismo real” era de fazer temer os esboços de implantação do comunismo entre nós não foi uma surpresa assustadora. Foi um gradual reconhecimento da complexidade das coisas. Isso aparece em meu livro com todas as idas e vindas por que minha mente passou. Com as nuances e sem evitar as questões que não ficaram resolvidas dentro de mim.
Não é um livro de propaganda ideológica. É um relato em que as reflexões relembradas -ou as sugeridas pela lembrança- acompanham cada passo.
Você se reconhece na descrição que o crítico faz de seu “traço de personalidade muito à vontade no atrito mas avesso ao antagonismo”?
Gosto de atrito. É a base do sexo. Mas não rejeito o antagonismo.
Sou nitidamente contra o Brasil ter devolvido os atletas cubanos. Sou nitidamente contra o manifesto dos militares reformados. Sou nitidamente contra Lula ter apoiado a eleição de Ahmadinejad antes de o próprio Irã decidir se as eleições tinham sido fraudadas ou não.