Apenas 24 horas depois do caso da carne e já temos uma vasta compilação de casos comuns de adulteração de alimentos na imprensa. Também o humor em torno do assunto demonstra que estamos habituados à falsificação de nossa comida, que apaticamente irá ressoar em nossa vida cotidiana. Afinal, é de uma periodicidade quase semanal nos noticiários a fraude no leite com adição de formol, água oxigenada ou soda cáustica. As pesquisas de qualidade anunciam há muito que o azeite é quase sempre uma mistura com óleo de soja. Pelo mundo a falsificação é também cotidiana e se descobriu recentemente que carne de cavalo era vendida na Europa como carne de boi ou se misturava carne de rato na carne moída e hambúrgueres na China.
Nesse último país, conhecido pela pirataria generalizada, até mesmo ovos falsos foram vendidos — a casca era na verdade parafina…
O embuste é tão comum que nem precisa ser ilegal, dado o condicionamento de nosso paladar.
Os “refrigerantes de fruta” estampam orgulhosamente que tem 2,5 % de suco em sua composição! As grandes cervejarias brasileiras usam milho em quase metade de sua fórmula e registram nos rótulos “cereais não maltados”. As geladeiras dos mercados estão abarrotadas de “bebida láctea” que tem uma fração mínima de leite e é cada mais difícil achar um bolo de chocolate que contenha uma colher pelo menos de cacau.
O processo de falsificação sistemática não é restrito à periferia do capitalismo (os casos da Europa e EUA o demonstram) e também não é algo novo: ao longo de O Capital, Marx descreve uma série de expedientes utilizados na indústria inglesa, na primeira metade do século XIX, para ganhar mais com suas mercadorias: desde pão produzido com trigo misturado a sabão, cal, pó de pedra e outros “ingredientes saborosos, nutritivos e saudáveis” até mesmo medicamentos que não continham um “átomo de morfina”, mas misturavam pequenas quantidades de papoula com argila, pasta de borracha e farinha de trigo.
Não vemos aí uma “ganância” intrínseca aos grandes capitalistas — embora o alcance destes seja mais amplo e destrutivo –, pois a trapaça também aparece na produção artesanal (mistura de soja com carne em salgadinhos) ou mesmo na mais simples informalidade dos camelôs: recentemente circularam imagens mostrando vendedores de água de rua enchendo garrafas diretamente na bica.
Também estamos longe de uma “maldade humana” em geral, pois é a forma de relacionamento baseada na mercadoria que tornou o sistema de tapeação de terceiros uma prática corrente. A mediação social por meios de coisas e baseada no acúmulo de dinheiro faz do outro mero objeto de nossas práticas econômicas, portanto, uma potencial vítima do cálculo de custos/rentabilidade.
Aqui a economia política clássica aparece como um conto da carochinha, por ter acreditado que é o interesse individual do padeiro que nos garante toda manhã um pão fresquinho e saboroso – o interesse privado, atomizado, cria uma forma de relacionamento indireta onde todos tentam externalizar seus prejuízos e seus problemas.
Também o marxismo tradicional se iludiu com a forma mercantil, pois achou que o entrelaçamento universal através das mercadorias criava uma riqueza de necessidades e um progresso material que devia ser racionalizado pelo Estado – que o principal foco da operação da polícia federal esteja nos agentes públicos de fiscalização que participavam do crime que deviam coibir só demonstra a ingenuidade de tal avaliação.
É a forma social própria que enlaça indivíduos através de coisas e também como coisas – agora cada vez mais descartáveis – que está na raiz do logro sistemático e que nos leva a um processo de destruição social involuntário e incontrolável. A esquizofrenia dos indivíduos envolvidos diretamente na adulteração revela de modo cristalino o caráter antissocial desta sociedade: o mesmo vendedor de defensivos agrícolas oferece morango aos seus filhos, o funcionário do frigorífico que adiciona ácido na carne podre participa do churrasco com a família no feriado, o açougueiro que mistura todo rejeito na carne moída come coxinha na lanchonete.
A escritora Svetlana Aleksiévitch deu voz a relatos pessoais dramáticos de como na Europa Oriental as pessoas consumiam conscientemente alimentos das áreas contaminadas por Chernobyl mas preferiam não refletir sobres os riscos.
O capitalismo é por sua natureza um sistema generalizado de embuste, de falsificação e de farsa – tudo muito bem envolvido em embalagens esteticamente impecáveis e socialmente embrulhado na uniformidade do processo de troca e na equivalência jurídica do contrato.
Que esse mundo de tapeação difusa em sua forma avançada seja representado filosófica e esteticamente pelo simulacro pós-moderno só nos deixa numa encruzilhada histórica: já não há mais “lisura” e “originalidade” que possamos nos apegar.
Ao criar um “planeta enfermo” (Debord), a sociedade da mercadoria em sua forma avançada só leva à destruição. Isso já seria motivo suficiente, mesmo sem algo palpável em que se apoiar, para justificar sua superação.
Maurillio Lima Botelho é professor de geografia urbana da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), e autor do artigo “Crise urbana no Rio de Janeiro: favelização e empreendedorismo dos pobres” que integra também o livro Até o último homem.