I – A guerra civil na ucrânia e a formação de milícias neonazistas

Em 2014, Gerd Bedszent em A dualidade de nacionalismo e desmoronamento do Estado apresentava uma genealogia da guerra civil desencadeada na Ucrânia como uma guerra de desmantelamento do Estado e ampliação de bandos armados como forma repressiva de gestão da miséria social. Fenômeno que não era uma novidade, dado o que se tornou o desmoronamento econômico da Jugoslávia do ponto de vista a proliferação de bandos nacionalistas que guerreavam entre si por domínios territoriais. No caso da Ucrânia, Bedszent o processo de desintegração do país num contexto sistêmica maior, qual seja, o do colapso da modernização do capitalismo e de administração desse colapso. Trata-se da recuperação do diagnóstico de Robert Kurz segundo o qual o colapso da URSS em 1991, seguindo o colapso das economias periféricas da américa do sul e central da década de 80 provocadas pela crise da dívida e do petróleo, não era um sinal da vitória da sociedade de mercado contra o socialismo real e não significa, assim, a abertura de novos mercados para as empresas estadunidense. Tratava-se, ao contrário, de um sintoma da entrada do capitalismo no seu clímax, na sua fase terminal sustentada por uma fuga para frente que só podia significar, nesse contexto, um simulacro de acumulação pela forma predominante do capital financeiro. A própria produção industrial se tornara, nessa altura da história, um adendo de um circuito financeirizado e internacional de acumulação “flexível” e predominantemente sem lastro. Nesse processo – em que as fábricas se tornam “fantasmas”, pois sustentadas pela queima do futuro a partir do endividamento tanto privado quanto público e sem poder levar a cabo uma acumulação real de mais-valia autossustentável – passou a se realizar cada vez mais um distanciamento entre riqueza financeira e riqueza material: o endividamento mundial, hoje, por exemplo, é três vezes maior que o PIB mundial.
A causa da financeirização não resulta, aliás, de um conflito no nível do interesse de frações distintas da burguesia: uma burguesia rentista e uma burguesia industrial, mas do próprio processo de acumulação do capital produtivo e no desenvolvimento histórico das forças produtivas provocado pela terceira revolução industrial (lembremos que hoje já se fala de uma revolução tecnológica 5.0). A terceira revolução industrial, ao contrário das anteriores, conduz a uma eliminação da força de trabalho socialmente necessário pra a produção de mercadorias a ponto de reduzir a rentabilidade do capital investido de maneira produtiva, isto é, a partir do investimento em maquinarias e força de trabalho, conduzindo a um processo de superacumulação em que a massa material de mercadorias que o capital produz não é capaz, entretanto, de realizar um processo real de valorização. Esse limite, entretanto, causado pela eliminação da força de trabalho não poderia mais ser deslocado ou compensada pela criação de novos setores de produção de mercadorias capazes de ampliar de maneira absoluta a força de trabalho empregada. Trata-se, assim, do tornar-se obsoleto do próprio valor e do tempo de trabalho como medida da riqueza, que Marx já prévia no Gundrisses como consequência da contradição em processo que é o Capital
O próprio capital é a contradição em processo, pelo fato de que procura reduzir o tempo de trabalho a um mínimo, ao mesmo tempo que, por outro lado, põe o tempo de trabalho como única medida e fonte da riqueza“
Na medida em que as novas inovações tecnológicas da informática eliminaram mais força de trabalho do que era capaz de absorver, o Capital passa a se refugiar nas formas fictícias de acumulação e ligadas à expectativa por rendimentos futuros de um capital adiantado na forma do crédito e da especulação mobiliaria e imobiliária. Ou seja, é a própria saturação e perda de rentabilidade do capital produtivo conduzida pelo desenvolvimento das forças produtivas que leva o capital a se refugiar na sua forma de acumulação financeira e conduz, assim, a um processo generalizado de desindustrialização em diversos países. A partir da década de 80, assim, a humanidade encontra um novo drama, como diagnosticado por Achille Mbembe:
“Se, ontem, o drama do sujeito era ser explorado pelo capital, hoje, a tragédia da multidão é não poder já ser explorada de todo, é ser objeto de humilhação numa humanidade supérflua, entregue ao abandono, que já nem é útil ao funcionamento do capital.”
A inscrição do Brasil no mercado mundial, nesse momento de reconfiguração da acumulação capitalista, nos tornou, como argumenta Leda Paulani, numa plataforma de acumulação financeira de um capital que passou a dispensar o Estado-nação e qualquer projeto nacional de desenvolvimento como modelo de realização da acumulação de capital. Essa mundialização imediata das cadeias produtivas e dos fluxos de capital, que ocorria sincronicamente em diversos países e que viria se estabelecer posteriormente em outros, como no caso da URSS, conduziu a um processo de desindustrialização endividada e à reorientação das economias periféricas para a exportação de commodities. A indústria era o ponto nodal ou a força motriz do desenvolvimentismo latino-americano e de sociedades marcadas por uma “modernização recuperadora”, tendo a intervenção do Estado um papel importante na formação de mercado interno e de um processo endógeno de acumulação, cuja a nacionalização era um pré-requisito. Após o último suspiro do desenvolvimentismo, levado a cabo pelas mãos conservadoras dos militares, e pela transformação do Brasil em plataforma de acumulação flexível do capital global, não se podia mais falar propriamente, portanto, de projeto nacional e planejamento econômico. O que coaduna com um capital que se acumula sem ter um laço direto com investimentos produtivos, mas que migra constantemente de um país para o outro. Assim, os governos brasileiros desde a redemocratização passaram a atuar pragmaticamente ao sabor da conjuntura.
Correlativamente a essa desintegração entre projeto nacional e acumulação capitalista, se começou a falar na formação de cidades globais : as cidades se tornaram plataformas de acumulação de uma riqueza mundializada e inserida num circuito econômico mundial e desintegrado com qualquer acumulação endógena ou com algo que lembrasse uma economia nacional. Quanto mais a riqueza – apátrida e desnacionalizada – se concentrava nas cidades globais (como São Paulo e Rio de Janeiro) maior passou a ser a desigualdade e a pobreza extrema. Assim, à desintegração entre as cidades e a economia nacional seguia-se aquela interna à própria cidade e que se manifesta no aumento da pobreza e da segregação racial e econômica especializada. As cidades, enfim, se tornaram grandes empresas que devem ser geridas empresarialmente com vistas a ganhar competitividade internacional na atração de capital, sendo o Estado o departamento dessas Cidades S.A. Desse ponto de vista, a administração da cidade também dispensava qualquer planejamento que a considerasse de maneira integrada e, muito menos, visando a extensão de direitos universais, mas intervenções localizadas com vistas a rendimentos mercantis de curto prazo e que são vistas como oportunidades de promoção de cidadania pelo consumo e pelo trabalho precário no setor de serviços, relegando parte da população e territórios ao desemprego, subutilização, trabalho informal, repressão policial e abandono do ponto de vista de direitos. A desintegração, assim, se diz de diversos modos e em diversas regiões, sendo um deles a conversão do Estado social, que no Brasil nunca se consolidou, em Estado policial.
Voltando à Ucrânia, esta seria já, portanto, em sua independência, produto de um desmoronamento cuja causa é uma crise sistêmica da reprodução capitalista. Bedszent argumenta que desde a década de 90 a Ucrânia nunca conseguiu de fato estabelecer uma economia sólida e nem adquirir autonomia: mesmo o crescimento econômico do fim da década de 90 se baseava na produção agrícola voltada para a exportação, sobretudo para a Europa e que dispensava, dada a racionalização tecnológica, grande parte da força de trabalho, aumentando o empobrecimento da população camponesa. Por outro lado, sua economia era totalmente dependente do gás natural da Rússia, que é também destino da exportação de produtos processados e de armas. Soma-se a isso, a dependência do país com o endividamento externo e sua sujeição às pressões pelos ajustes estruturais impostos pelo FMI e Banco Mundial, que, como conhecemos bem, longe de ser uma solução, aprofundou a crise do país,a desigualdade social e o desmantelamento das suas bases produtivas. É sob essa base econômica que se travou nas últimas décadas diversas disputas pelo Poder por diferentes grupos oligárquicos com interesses econômicos conflitantes e que já não podiam mais ser conciliados de maneira republicano-democrática. Assim, com o agravamento da crise em 2013 e as pressões do FMI, a disputa entre esses grupos oligárquicos, com interesses mais ou menos próximos dos interesses da União Europeia, Estados Unidos, de um lado, e Rússia, do outro, se tornou mais intensa e irreconciliável. O estopim foi a suspensão da assinatura do acordo de associação à União Europeia, se aliando aos interesses da Rússia, o que resultou na sua derrubada do poder, à guerra civil pela Crimeia e o surgimento de uma série de movimentos separatistas.
Quando da ocupação militar pela Rússia no leste da Ucrânia, não houve muita resistência das forças de segurança ucraniana em relação as tropas russas, ao contrário, parte delas se uniram as forças pró-Rússia. Assim, começou a se formar no leste ucraniano regiões que declararam independência (Crimeia, Lugansk, Donetsk) e passaram a ser administradas por milícias pró-Rússia. No meio dessa geleia da desintegração, começou a surgir milícias neonazistas em defesa do Estado ucraniano e diversos magnatas ucranianos começaram a recrutar membros da direita radical para compor um exército privado de “voluntários” em relação ao qual o governo não tinha e nem tem muito controle, apesar da sua tentativa de coordená-los.O caso mais conhecido é o do oligarca Igor Kolomoiski, que em 2014 começou a financiar a formação de diversas milícias. O Estado Ucraniano, que já não contava com muitos recursos para manter um exército e para tentar coordenar as milícias que surgiram, passou a incorporar essas milícias na sua Guarda Nacional, como é o caso do Batalhão Azov. As milícias a partir de então começaram a ocupar diversos territórios, marchar com suásticas e realizar progroms contra opositores, comunistas e minorias. Milícias como a C14 e o Batalhão Azov, assim, agem de maneira relativamente independente do Estado Ucraniano, apesar da sua tentativa de controla-las, possuem ramificações política e mercantil e promovem uma série de ações terroristas. Como uma máquina de guerra autonomizada financiada por senhores da guerra endinheiras, elas dominam mais o Estado do que o Estado as domina, isto é, há cada vez mais uma perca do monopólio da violência por parte do Estado. Olena Semenyaka, secretária internacional do Azov, fala, por exemplo, que a organização se tornou um “pequeno Estado dentro do Estado”.
Assim, a guerra civil e a formação de milícias na Ucrânia são, na leitura de Bedszent, manifestações da desintegração do Estado em contexto de crise econômica, o que abre espaço para a disputa do domínio armado dos territórios e de suas relações mercantis tanto pelas milícias ucranianas quanto pelas pró-Rússia. Apesar das milícias mobilizarem paixões nacionalistas, não se trata tanto de um processo de integração e de execução de um projeto nacional coerente, mas da administração repressiva da reprodução das relações capitalistas cada vez mais excludentes por bandos armados financiados de maneira privada. Basta lembrarmos que a extrema-direita ucraniana entrou numa luta cujo um dos desfechos era a adesão do Estado à União Europeia e seu acordo de livre comércio. Nesse sentido, o nacionalismo da extrema-direita ucraniana tem algo de semelhante com o nacionalismo dos bolsonaristas: esse coexiste com medidas econômicas neoliberais, que intensifica os conflitos sociais, o uso da violência contra as minorias e classes baixas como modo de garantir a reprodução das relações mercantis em contexto de crise. O que torna, aliás, difícil assimilar a atual extrema-direita brasileira com o que foi o integralismo, que tinha como um dos seus momentos a crítica ao liberalismo como causador dos conflitos sociais e demandava uma intervenção do Estado na economia para a criação de um corpo social como um “organismo” coerente. O atual nacionalismo está mais ligado, portanto, ao que Bedszent chama de “nacionalismo de desespero”, uma reação diante de uma ordem social mercantil, racista e patriarcal que se desmancha e que é conservada pelo pragmatismo das forças das armas e desprovido de projeto nacional ou de Estado. As milícias nacionalistas se formam, portanto, a partir dessa compulsão sistêmica que faz da guerra uma maneira de continuar os negócios por outros meios, isto é, dos magnatas ucranianos conseguirem manter seus interesses econômicos e seu enriquecimento a partir da formação de milícias privadas que passam administrar a população empobrecida, mas também das pessoas que integram essas milícias de conseguir rendimento num contexto de Estado falido que mal consegue remunerar sua força de segurança: há, assim, um contínuo entre promoção da guerra e reprodução das relações econômicas à margem do Estado e da sua soberania.
Essa reação nacionalista por parte das milícias, aliás, está presente tanto do lado pró-russia quanto do lado ucraniano e se mantém recrutando, com financiamento de oligarcas, militantes de extrema-direita de diversos países a partir de uma rede transnacional de neonazistas. O recrutamento, assim, não se dá necessariamente a partir de uma alinhamento ideológico coerente com as partes em guerra. O recrutamento da Azov, por exemplo, é muito semelhante ao do ISIS: a organização recruta a partir da circulação de vídeos na internet da guerra travada na ucrânia, distribuição de panfletos em eventos neonazistas em diversos países da Europa e da América, e mandando representantes em conferências de extrema-direita. Recentemente, a revista alemã Focus revelou que neonazistas da Alemanha, da Suécia e da Finlândia estão sendo recrutados e recebendo treinamento paramilitar para integrarem milícias russas no leste da Ucrânia.
Trata-se, assim, de uma pulsão, indiferente dos lados em que se é recrutado, para a guerra nessas regiões que são também lugares de treinamento para uma extrema-direita transnacional ávida por faze ruma limpeza étnica em toda Europa, sem fixação necessária a um Estado-nação.
II – A formação das milícias no Brasil e o crescimento da extrema-direita
A relação entre Ucrânia e Brasil começou aparecer com o uso de bandeiras ucranianas, entre elas a da milícia Pravyi Sektor, que se tornou posteriormente um partido da Ucrânia, em atos pró-bolsonaro. Recentemente diversas figuras do bolsonarismo começaram a também defender publicamente uma “ucranizaçao” do Brasil. É o caso do Deputado Daniel Silveira (PSL), que postou, no final de abril, no Twitter: “Está na hora de ucranizar o Brasil. Quem sabe o que foi feito lá [na Ucrânia] entenderá.”. E do comentário da bolsonarista Sara Winter, que lidera agora uma milícia armada chamada 300 do Brasil, dizendo que foi treinada na Ucrânia e que “chegou a hora de ucranizar”.
O processo de ucranização ao qual se referem os bolsonaristas estaria ligado, assim, a formação de milícias de extrema-direita e que é impulsiona pela defesa de armar a população feita pelo presidente Jair Bolsonaro. Mas algo dessa natureza e seu potencial catastrófico para as minorias teria que ser analisado mais cuidadosamente tendo em vista as particularidades próprias do Brasil.
Durantes as duas últimas décadas assistimos ao crescimento do que se chama de complexo-industrial-militar-prisional. Menos do que um resultado do aumento da “criminalidade”, trata-se de uma economia de guerra que se formou a partir de uma mudança no tratamento de nossa “questão social”. Dado o processo de desindustrialização e o desmanche da “sociedade salarial” a partir da nova fase de acumulação em que o capital adentrara, a extensão do direito por via do trabalho, isto é, o trabalhador como cidadão por excelência, atingia seu limite histórico. Assim, passamos a vivenciar, desde ao menos a década de 90 uma série contínua da precarização do trabalho e do desemprego, que só pôde ser compensado e mascarado pelo crescimento de trabalhos igualmente precários, mal remunerados, realizados por conta própria e de alta rotatividade, condição de trabalho que afeta principalmente as mulheres, pessoas negras e jovens.
A força de trabalho ocupada hoje no Brasill é de 93,7 milhões, 41,1% dessa força de trabalho ocupada, isto é, 38,0 milhões é trabalho informal; o trabalho por conta própria é 24,5 milhões, a subutilização representa 23,5% da força de trabalho ocupada. Assim, a grande parte da população ocupada está em empregos precários e subutilizados, que levam as pessoas, inclusive, a realizar mais de uma ocupação. E mesmo os trabalhos formais criados hoje já não contam com as proteções sociais de outrora, que foram nesses anos desmanteladas pelas reformas da previdência e pelos cortes sociais. Mas ainda mais alarmante são o aumento da taxa de desocupação – pessoas com mais de 14 anos que estão procurando emprego, sendo que o número de pessoas procurando emprego há mais de dois anos vem aumentando – que é de 12,3 milhões (12,4 %); de desalento, 4,7 milhões de pessoas que querem trabalhar, mas desistiram de procurar emprego; e, por fim, ad população fora da força de trabalho 65,7 milhões, que no total significa 82,7 milhões de pessoas sem trabalhar.
Assim, como argumenta Maurilio Botelho, mais de um terço da população está fora de qualquer relação salarial, seja por desempenhar trabalho por conta própria, seja porque é aposentada ou porque simples não encontra mais nenhuma possibilidade de trabalhar. Não é de espantar, aliás, que nesse quadro os sindicatos e as formas de organização política construídas em torno do trabalh já não sejam referência de encaminhamento da luta social, deixando de fora boa parte da população, sobretudo aquela que foi desqualificada moralmente no nível teórico como lumpemproletariado.
Todas essas mudanças, como manifestações de uma mudança mais profunda e que diz respeito ao tornar obsoleto da força de trabalho para o capital, significou um abandono, portanto, do tratamento da pobreza e da miséria social a partir da extensão de direitos alicerçados na expansão do trabalho assalariado. Assim, Gabriel Feltran mostrou como desde ao menos a década de 90 a figura do trabalhador formal como sujeito de direito é lançada na defensiva, perdendo sua referência como objetivo. É nesse contexto de desclassificação generalizada da força de trabalho, aliás, que podemos observar o enfraquecimento das organizações sindicais, integradas no processo de gestão do capitalismo, e a perda da sua referência como forma de encaminhamento da luta social.
Entra em primeiro plano, a partir de então, as figuras do marginal, do vagabundo, do bandido, vinculadas à noção de violência urbana (racializada e territorializada nas periferias) que mobiliza e intensifica, pela hipertrofia do aparato penal seletivo e atrelado a um populismo midiático, o sentimento de insegurança e incerteza, que se dissemina no corpo social com a precarização crescente da vida e aumento da desigualdade. A criminalidade e a violência social passam, assim, a ser dissociadas no seu tratamento da questão da desigualdade econômica e se torna um problema moral ligado as escolhas dos indivíduos e em relação ao qual é preciso uma postura do Estado de tolerância zero e orientada estritamente pela ampliação e aperfeiçoamento de suas instituições punitivas. Dito de outro modo, se antes a miséria era algo que deveria ser combatida pela intervenção do Estado numa ordem liberal produtora de desigualdade e conflitos sociais, garantindo um conjunto de proteções sociais ligadas à expansão do trabalho, hoje, num contexto de desemprego estrutural, a pobreza e a marginalidade são tomadas como um dado a ser gerido punitivamente. Assim, o aparato punitivo do Estado é reforçado como maneira de administrar a miséria social e de submeter a população pobre e negra a essa realidade mercantil marcada pelo abandono de parcelas da população e determinando como destino uma situação econômico-social marcada pelo desemprego, trabalhos precários, assistência social focalizada, encarceramento e, no limite, o extermínio.
O vetor da segurança determina, então, um continuum entre políticas repressivas e políticas de assistência social focalizada: uma não vai sem a outra e mesmo as políticas de assistência social e voltadas para a inclusão pelo consumo são marcadas por graus de violência e punição, fazendo parte do mesmo dispositivo punitivo de gestão da miséria social. Assim, como argumenta Feltran, as políticas do Estado voltadas para a população pobre e marginalizada são elaboradas em termos de prevenção e combate da violência. Tal combate se dá, por um lado, pela repressão direta do Estado, por outro, pela inclusão individual pelo consumo e pelo mercado a partir de programas sociais fortemente marcados pelo discurso do empreendedorismo, mas que não se separada da ideia de manutenção da segurança ou ordem pública. A formação de um Estado policial que opera tanto pela repressão direta quanto pelas políticas assistenciais, tendo em vista a manutenção da ordem mercantil, não é uma especificidade, aliás, do Brasil ou das periferias do capitalismo. Como bem mostra Loic Wacquant em Punir os Pobres, é algo que se verifica nos países do centro do sistema capitalista, como EUA, França e Alemanha, um índice da tendência de desintegração com a qual começamos e que faz que o próprio centro se “subdesenvolva”.
. Em resumo, a pobreza voltou a ser, assim, caso de polícia, como dizia Washington Luis, resultando num crescente processo de criminalização da população pobre e negra. No Brasil, da década de 90 até 2019, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a população carcerária no Brasil passou de 90 mil para 818.875 mil, sendo o terceiro país que mais encarcera no mundo. Em torno de 41,5% (337.126) são presos provisórios, isto é, que não foram sequer condenados (muitos deles acabam cumprindo uma pena maior do que a sentenciada). Maioria jovem (18 a 24 anos), do gênero masculino, de cor negra ou parda (70%) e com ensino fundamental incompleto (51,3%), sobrerrepresentados no sistema prisional.. Cabe destacar que nos dados do CNJ não entram no cálculo presos com tornozeleira eletrônica (51.250 presos) e em regime aberto domiciliar, sendo, portanto, ainda maior o número de pessoas interpeladas pelo Estado Penal.
Nesse contexto, o que se observa é uma nova função social das prisões. Já não desempenham a função de disciplinarização e consequente “ressocialização” orientada para um mercado de trabalho em ascensão. Agora, como mostra um conjunto de estudos sobre a virada punitiva na década de 80, as prisões tem a função de contenção e neutralização de uma população miserável que se tornou supérflua em relação ao sistema de produção social vigente e que passa a ser considerada, de partida, “perigosas”. As prisões se tornam, assim, grandes campos de concentração ou zonas de espera intermináveis, onde são jogadas de maneira preventiva parcelas da população que se tornaram descartáveis para o capital e que são determinadas a sê-las por critérios de classe, raciais e de gênero. Sendo descartáveis, a contenção prisional se torna também uma máquina de produzir mortes pela administração precárias das condições materiais dos presos.
A base para esse punitivismo-desenvolvimentista que ocorre desde à década de 90, como o denominou Adalton Marques, é a promoção de uma guerra permanente que se dá sob o nome de guerra às drogas e guerra ao crime.
Sob a política de guerra levada a cabo pelo Estado contra a pobreza, as indústrias das armas, de tecnologias de vigilância, as administrações privadas de prisões e as empresas legais e ilegais de segurança privada cresceram. Fazer guerra, na medida em que é também business, ainda mais num contexto em que a tônica da administração social é dada pelas armas como meio de regular relações sociais em crise, se tornou um fim em si mesmo e sem horizonte para acabar. Em suma, administrar de maneira armada a miséria e as relações sociais desiguais subjacentes se tornou também um negócio, de maneira que fazer guerra contra a população negra e pobre mobiliza a economia e é uma forma de manter a reprodução das relações mercantis pelo consumo destrutivo das armas e pelo extermínio de parcelas inteiras da população, mesmo na ausência de qualquer insurgência armada com vistas a derrubar ou tomar o Estado, ou ainda da “criminalidade violenta” etc. Como vimos, a maioria das pessoas presas são por roubo ou tráfico.
Vemos, assim, o perfil do sistema carcerário se repetir nas taxas de homicídio. A maioria são pessoas negras: no caso dos homens, 73,1% são negros, no caso das mulheres, 63,4%. Maioria jovens entre 15 e 29 anos. Segundo o Altas da Violência de 2019, entre 2007 e 2017 houveram 618 mil homicídios. Número que supera o número de mortes de diversos países que vivem em situação de guerra declarada. É o que atesta, por exemplo, o Mapa da Violência de 2012: o número de homicídios no Brasil entre 2008 e 2011 – 206.005 – foi maior do que o número de mortes dos 12 maiores conflitos do mundo entre 2004 e 2007, que vitimaram 169.574. Esse número ainda foi quase idêntico ao total de mortes direta de 62 conflitos armados no mundo mapeados pelo Relatório sobre o Peso Mundial da Violência Armada no mesmo período, e que vitimaram 208.349.
Num contexto de compulsão sistêmica para a guerra, a guerra, assim, nem mesmo precisa ser declarada ou reconhecida oficialmente. Aliás, as próprias autoridades políticas não deixam de afirmar que é de guerra que se trata e ainda de um novo tipo:
A guerra moderna não é a que lutamos em 1945, que você tinha terreno inimigo, inimigo com uniforme, estruturado, com batalhão, pelotão, companhia etc. Você não sabe quem é o inimigo, a luta se dá em qualquer ponto do território nacional. Você não sabe que arma virá, não sabe quantos virão. O seu inimigo não tem linha de comando longamente estabelecida, tem duas ou três linhas e acabou. Você não tem um centro nevrálgico para atacar, combater e desmontar o batalhão. O Exército não tem sede, está esparramado em qualquer lugar, qualquer ponto do território nacional.”
Trata-se de uma guerra contra um inimigo interno, disperso, que remonta a Guerra de contra-insurgência da guerra fria e da ditadura, mas que agora é voltada contra a população pobre e negra. O desfacelamento entre a distinção entre tempo de guerra e paz, combatente-civil, espaço beligerante e não-beligerante, indica, portanto, o caráter ilimitado dessa guerra.
Essa administração punitiva da pobreza, sendo a tônica, portanto, do tratamento da nossa questão social, marca a biografia das pessoas e de comunidades inteiras que tem o encarceramento e a morte como uma presença constante.
As milícias encontraram aí um terreno fértil para florescer: o terreno da violência como meio de reproduzir as relações sociais e suas hierarquias raciais, econômicas e de gênero. Assim, a existência de milícias administrando de maneira armada territórios não é uma novidade no Brasil e vem se expandindo faz alguns anos num contexto de redução dos aspectos sociais do Estado e de aumento do seu flanco punitivo. Um levantamento feito pelo The Intercept Brasil, em 2018, com base em informações obtidas pelo Disque Denúncia, revelou que as milícias no Rio de Janeiro já estavam em ao menos 37 bairros e 165 favelas da Região Metropolitana. Cerca de dois milhões de pessoas já viviam em áreas dominadas por milícias na região metropolitana do Rio, o equivalente a um sexto da população total da região. Surgidas no início dos anos 2000 no Rio de Janeiro, e sucedendo os esquadrões e grupos de extermínio, as milícias tal como conhecemos hoje no Rio estão intimamente ligadas a questão da terra, isto é, ao domínio de territórios periféricos, em que não há serviços básicos que seriam de responsabilidade do Estado promover e nos quais chega apenas seu braço repressivo cada vez mais hipertrofiado.
As milícias, como se sabe, são organizações compostas por agentes penitenciários, policiais militares e civis, bombeiros, integrantes das forças armadas, na ativa ou não, e também de alguns civil, que passam, pelo controle armado de territórios, extorquir a população a partir da cobrança de taxas pelo serviço da proteção, além de administrarem mercados ilegais e legais de segurança, do tráfico de armas, drogas e, em algumas regiões, a fornecer outras mercadorias ilícitas como gás, luz, internet, transporte, moradia e até mesmo combustível adulterado a partir do roubo de petróleo de oleodutos da Petrobras. É uma maneira de agentes do Estado complementar sua renda, conseguir alguma renda e/ou enriquecer a partir da pilhagem em territórios relativamente desintegrados dos circuitos do capital globalizado que deixa como rastro zonas de pobreza e abandono. No Rio de Janeiro, em plena pandemia, as milícias que dominam territórios, para manter os negócios, obrigam os comércios a reabrirem para que as taxas cobradas pelas milícias sejam pagas.
Evidentemente, essas práticas mercantis das milícias não se restringe aos domínio territoriais como ocorre no Rio de Janeiro, mas se faz de maneira diversas e distintas em cada Estado do país.
José Claudio Alves vê na formação das milícias uma ampliação, pela face ilegal, do poder do Estado, que se torna cada mais totalitário e ditatorial, e que dá a ele o poder de controlar cada vez mais a vida social, uma espécie de Leviatã miliciano:
“A meu ver a milícia tem dimensões mais poderosas e mais amplas do que eu poderia ter imaginado há algum tempo. As milícias crescem velozmente por dentro do Estado e se beneficiam dessa dupla face da mesma moeda, a face legal e a ilegal. O ilegal é o Estado. Por mais que o Estado se reconheça como legal e trabalhe com essa concepção para todos nós, o determinante aqui é a dimensão ilegal, que ultrapassa a dimensão do legal, ampliando os poderes do Estado e dando a ele uma face cada vez mais totalitária, absoluta, irresistível, incontornável e capaz de controlar massas e espaços geográficos ao longo do tempo, de uma forma como nós vivemos hoje. Essa face ilegal amplia o poder do Estado, não restringe o seu poder. Não é o anti-Estado, o poder paralelo, mas sim a presença multidimensional de um Estado autoritário, totalitário e ditatorial”
Contudo, me parece que as milícias integram mais uma economia de saque que passa pelo Estado e é alimentada pelo Estado: são formadas pelos agentes do Estado, elegem políticos e se serve do Estado para enriquecimento ilícito, mas sem ter como vetor um processo de centralização e totalização conduzido pelo Estado e limitada ao seu círculo. Ou seja, trata-se de dizer que a espoliação armada da polícia não é feita em benefício e como objetivo do Estado, mas é o próprio Estado que é objeto de saque e de disputa desse saque que conduz ao seu desmantelamento. Desse modo, ao mesmo tempo que o Estado participa da produção das milícias, as milícias passam a dominar cada vez mais o funcionamento do Estado, conduzindo não há um simples reforço do seu poder centralizador e totalitário, mas a uma implosão da sua condição de funcionamento. Essa implosão decorre não só pelo fato de visarem enriquecer de maneira privada a partir de negócios cada vez mais ilícitos e desregulados de territórios, mas pelo fato de que as políticas econômicas de austeridade adotadas, que alimentam o crescimento das milícias, destrói cada vez mais as fontes e recursos do próprio Estado.
Assim, o processo de produção das milícias pelo Estado é um processo que tem uma lógica autofágica. Nesse sentido, as milícias estão mais próxima daquilo que Deleuze e Guattari chamaram de uma máquina de guerra mundial pós-fascista: um processo tautológico e autofágico de produção permanente da guerra, a partir da mobilização destrutiva de meios de produção e força de trabalho que toma conta do próprio Estado e que escapa ao seu controle e seus objetivos políticos. É a partir desse conceito que os autores, inclusive, caracterizam o fascismo, isto é, como “uma máquina de guerra”:
“No fascismo, o Estado é muito menos totalitário do que suicida. Existe, no fascismo um niilismo realizado. É que, diferentemente do Estado totalitário, que se esforça por colmatar todas as linhas de fuga possíveis, o fascismo se constrói sobre uma linha de fuga intensa, que ele transforma em linha de destruição e abolição puras”.
O fascismo destrava uma guerra total, isto é, que mobiliza toda a sociedade e visa a destruição não só do inimigo, mas das populações e sua economia. Esta guerra total como uma compulsão necessário para manter a acumulação do capital, se autonomiza na guerra fria, isto é, numa Terceira Guerrra Mundial em que a guerra se torna permanente justamente por ter a pacificação preventiva como objeto. A guerra, assim, passa a ser menos um empreendimento de um Estado
“do que uma máquina de guerra que se apropria do Estado, fazendo passar através dele o fluxo de guerra absoluta que não terá outra saída senão o suicídio do próprio Estado.”
Há, como tentamos apresentar, muitas razões para pensarmos que estamos num momento de asselvajamento dessa máquina de guerra que nos conduz para um aniquilamento permanente e suicida. Isto é, à maneira do fascismo, o corpo social do qual as milícias fazem parte é “um corpo canceroso mais do que um organismo totalitário”.
III. A Guerra como produtora de desejo
A formação dessa máquina de guerra no Brasil, ou a máquina de guerra do Brasil como um momento dessa máquina de guerra mundial, se deu em décadas de políticas, como numa continuação da guerra contra o inimigo interno da ditadura, baseadas na guerra aos pobres, à população negra, camponesa e indígena, isto é, na militarização crescente da vida social, no encarceramento e extermínio de parcela da população, e que reforçaram o poder das milícias. Como argumentamos, a formação das milícias fazem parte da formação de uma máquina de guerra conduzida pelo próprio Estado com fins políticos determinados, mas que cada vez mais “se apropria dos Estados e assume cada vez mais funções políticas”. Desse modo, a guerra se tornou um fim em si mesmo de destruição pura.
Entretanto, essa política do Estado não se dá sem que ao mesmo tempo produza desejo ou uma paixão de guerra ou abolição, isto é, produza um investimento libidinal que deu a base não só para que esse tipo de política fosse reproduzida, mas que se ampliasse de uma maneira descontrolada: é preciso uma linha passional, ou potência de abolição coextensiva ao campo social e sua macropolítica da morte. Assim, o Estado se torna uma peça de um modo de governo social baseado na produção de uma potência destrutiva que o ultrapassa e que é composta por agentes heterogêneos (além de agentes de segurança na ativa ou não, há também agentes religiosos, empresários de diversos setores, células de extrema-direita e apoiadores civis) e que estão inclusive em disputa entre si, sem terem nenhum projeto de poder coerente e programático.
Há alguns dados que nos parecem servir de índices de acesso desse inconsciente agenciado pela guerra. Nos últimos anos vimos crescer, no Brasil, o número de clubes de tiro, aumento de registros Colecionadores, Atirados e Caçadores (CAC’s), o que aumenta a circulação de armas tanto legais quanto ilegais, e o aumento da procura pelos clubes de tiros. Assim, de 2005 a 2008 havia 4.979 registros para atiradores, de 2008 a 2011 40.223. Em 2019 havia 200.178. Sendo que o número total de registro de CAC’s fechou 2019 em 396.955. Entre 2014 e 2018, a taxa desse aumento foi de 879%, de 8.988 para 87.986. De 2018 para 2019, o crescimento foi de 68%.
A procura por clubes de tiros aumentou cerca de 500% nos últimos anos. Em 2018, vários estados apresentaram crescimento de em torno de 60% da procura por clubes de tiro. Em 2019 aumentou mais ainda depois do decreto do bolsonaro que flexibilizava a regulação do porte de armas. Em 2004 havia 14 clubes de tiros registrados, em 2011, 534. Ou seja, há uma tendência que clubes de tiros cresçam.
Assim, nas últimas décadas, houve, em decorrência desse processo armamentista e securitário de governo das relações sociais, a produção de uma disposição e mobilização para guerra e conflitos armados e que o aumento da procura por clubes de tiro é um índice.
Há um potencial, aliás, para que esses clubes venham a operar cada vez mais, à maneira dos clubes do Batalhão Azov, como lugares de formação e aglutinação de agentes milicianos e amparados numa propaganda de recrutamento de neonazistas realizada pelos bolsonaristas.
O bolsonarismo, assim, não se sustenta tanto pela centralização do poder, mas mais por uma base que é molecular e está ligada a uma longa duração de produção micropolítica de formas de sociabilidade cotidiana baseadas na violência, em micro-gestões, empresariais e armadas, dos pequenos-medos e que operam no nível inconsciente das populações, moldando de antemão “as posturas, as atitudes, as percepções, as antecipações, as semióticas, etc”.Como argumenta Lapoujade, essa administração securitária, que é, aliás, global, é “inseparável de uma ‘micropolítica da insegurança’ em escala molecular.
Como dizem Deleuze e Guattari, “o desejo nunca é uma energia indiferenciada, mas resulta ele próprio de uma montagem elaborada, de um engineering de altas interações: toda uma segmentaridade flexível que trata de energias moleculares e determina eventualmente o desejo de já ser fascistas”. Desse modo, podemos dizer que os anos de promoção macropolítica da guerra contra um “inimigo disperso” e virtual, de extermínio, encarceramento da população pobre e negra, que indicam uma mudança macropolítica no trato de nossa questões social e de reprodução das divisões de classe, de raça e gênero, andou a par com uma potência ou um vetor de guerra permanente, com microprocessos de gestão cotidiana, irregular ou informal da insegurança a partir, inclusive, da venda da “proteção” e sob o controle das armas, é o que moldou o desejo de parte da população à investir o bolsonarismo como fenômeno de massa e aceitar um processo de abolição social baseado na destruição do outro racializado, territorializado e genderificado e, no limite, de si mesmo.
Desse modo, num nível molecular, que não se distingue do macro de um ponto de vista da escala, mas do ponto de vista da qualidade das relações (relações ligadas muito mais as pulsões, aos afetos, que circula entre os estratos e o corpo social como num continuum, escapando as representações e as segmentaridades de classe, apesar participar de sua reprodução) o bolsonarismo se constitui como fenômeno de massa que encontra na militarização, na guerra social permanente contra a pobreza e minorias uma máquina de determinação do inconsciente e do desejo das massas.
Toda macropolítica só se estabelece se ela for capaz de determinar ou dar para si um inconsciente que lhe é adequado e que torna possível sua sustentação para além do recurso à violência direta. Não se trata, nesse sentido, de dizer que as massas aceitam passivamente o poder, que elas “querem” espontaneamente ser reprimidas ou ainda que elas são manipuladas ou enganadas pela ideologia. Não se trata, nem mesmo, de uma oposição entre indivíduo (onde residiria o inconsciente como dimensão do aparelho psíquico) e sociedade, que seria investida a partir de mecanismos psicológicos como a projeção, sublimação etc: o Hitler ou o Bolsonaro como encarnações da imago do pai internalizada como modelo de identificação etc. Trata-se, ao contrário, de dizer que o modo de produção social baseado na guerra permanente condiciona o desejo como coletividade a investir diretamente, como real-social pré-individual ou subjetivo, a guerra permanente e como fim em si, moldando as percepções, as sensações e as condutas para aderirem previamente a esse processo. O poder do bolsonarismo reside, assim, justamente, nessa potência social e afetiva destravada como correlato de uma macropolítica do Estado Penal, e que torna possível o agrupamento de estratos sociais distintos e mesmo com interesses conflitantes na condução dessa guerra.
Segundo um levantamento recente feito pela ONG Safernet, em maio de 2020 foram criadas 204 novas páginas de conteúdo neonazi, ante 42 no mesmo mês do ano passado e 28 em maio de 2018. Ou seja, há um crescimento de formas de propaganda neonazi que se aglutinam em torno de políticos e grupos milicianos. Assim, se como vimos, a formação das milícias no Brasil não se dava com vistas a uma mobilização política para a tomada do Estado, com perseguição de grupos comunistas e subsrvisos, o que vemos agora, e que há de novo, é um processo de ideologização neonazista num contexto em que as milícias já operam e crescem há anos, e que encontra na intensificação da crise e dos conflitos sociais um terreno propício para crescer.
Assim, se podemos falar de uma ucranização do Brasil, é preciso dizer que ela ocorreu e ocorre objetivamente antes de se dar ideologicamente. E a tarefa para barrar esse processo e seu caráter catastrófico deve levar em consideração a máquina de guerra do encarceramento em massa, da militarização e da formação das milícias no Brasil, inclusive sob o governo da “esquerda”.

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