
O preço dos alimentos explodiu. Fotos de gôndolas de mercados com preço de arroz a 30, 35 e até mais de 40 reais circulam pelos jornais e redes sociais. Feijão, óleo de soja e leite não ficam atrás no aumento de preços e compõem a cesta de reclamações. Além do preço escandaloso, agora aparecem anúncios de limitação de compra por cliente. O temor dobra: ao pesadelo da dissolução do poder de compra do dinheiro se junta o medo de desabastecimento. Como sempre, as rápidas explicações se amparam em dogmas econômicos, elementos superficiais e até motivos esdrúxulos. Mas a questão está na própria estrutura da economia brasileira, que há muito não é uma “economia nacional”.
A alegação mais recorrente para a alta substancial do preço dos alimentos, que está na boca dos especialistas em perversidade financeira e na conversa da esquina contra os “vagabundos”, é a que aponta o auxílio emergencial como causa. O beabá econômico arregimenta a superficialidade do mercado para dar conta dos preços disparados: a distribuição de dinheiro pelo governo levou a uma corrida nos mercados, o que forçou a alta. Esse argumento é acompanhado tanto de autoelogios oficiais – a redução da pobreza extrema forrou a mesa do povo – quanto da mania de perseguição aos agentes da circulação de mercadorias – os varejistas se aproveitaram da procura e remarcaram os preços, ávidos por mais lucro.
Essa explicação ignora a própria natureza dos alimentos que estão sob pressão inflacionária: como são artigos de primeira necessidade, a “elasticidade-renda” deles é limitada, portanto, um ganho de renda dos consumidores deveria implicar em preços ampliados de bens supérfluos. O impacto só seria significativo nos alimentos básicos, que já estão de qualquer modo na mesa do brasileiro, se o recebimento da renda de emergência levasse à estocagem doméstica desses itens. O auxílio começou a ser pago em abril, mas a explosão de preços ocorreu a partir de julho e agosto – nesse meio tempo, onde o isolamento social foi mais expressivo, os preços sofreram aumento pequeno. Um grande jornal chegou a dizer, tratando a alta expressiva do arroz no mês passado, que “se os brasileiros queriam estocar alimentos, houve um movimento semelhante no exterior e as exportações de arroz em agosto cresceram 98 %”!
O argumento da pressão de demanda é ainda menos convincente quando se nota que o Brasil teve várias altas na produção agrícola em 2020, com recorde na produção de soja, aumento de 5% em média nas safras de feijão e crescimento até na produção de arroz se comparado ao ano passado, ainda que não seja das melhores safras obtidas.
Uma interpretação mais cuidadosa deveria buscar as causas da subida de preços na produção. Os produtores agrícolas estão alegando um aumento significativo de custos, principalmente de fertilizantes e defensivos, ainda que o preço do petróleo tenha caído drasticamente no mercado internacional. Como o Brasil se tornou um dos países agrícolas mais dependentes da importação de insumos químicos (resultado da desindustrialização de longo prazo), o impacto no preço final se eleva na proporção do câmbio. Além disso, há um custo crescente também com as terras – o arrendamento tem sido apontado em elevação nos últimos meses. Nesse caso, trata-se de um fenômeno que remonta à crise de 2008, pois grandes fundos encontraram uma “nova fronteira” de investimentos na aquisição de terras no Brasil, mas tem se agravado com a queda da taxa de juros dos títulos públicos, o que força a busca por ativos imobiliários no campo.
É nesse plano mais amplo da “circulação global” do capital que devem ser buscadas as principais causas para a alta dos alimentos em nosso quintal. É a posição do Brasil no mercado mundial, como principal fornecedor global de commodities agrícolas (sempre em disputa com o agribusiness yankee), que explica o quilo do feijão preto e do arroz branco a quase 10 reais. Se a alta significativa do dólar foi responsável pela elevação dos insumos agrícolas, por outro lado levou ao relativo barateamento dos produtos brasileiros no mercado mundial: o real está no topo das mais desvalorizadas moedas frente à norte-americana.
É a conexão direta das cadeias da agroindústria brasileira com o mercado mundial que produz o fenômeno da alta de preços e escassez relativa de alimentos no mercado nacional – exatamente porque não há algo mais que se possa chamar de mercadonacional, relativamente dissociado e com estruturas distintas do mercado mundial. E isso é ainda mais verdadeiro para o campo brasileiro, dado que nunca tivemos proteção efetiva à produção alimentar de pequenos agricultores. Com dólar elevado, para o grande e médio produtor agrícola – conectado às redes globais de circulação de mercadorias – é mais vantajoso mandar a saca de arroz para a China do que para Uberlândia. A agropecuária é o setor exemplar do “capital mundial imediato” (Robert Kurz) em nossas terras.
Como um conjunto de vasos comunicantes, os circuitos do capital deslocam as mercadorias de menor custo para os locais de melhor preço, uma cadeia de transmissão envolvendo não apenas a materialidade dos alimentos mas também a fluidez monetária abstrata, que torna um produto mais barato ou caro apenas confrontando moedas distintas. E isso está longe de ser um fenômeno recente, pois nas últimas décadas, se chorou ou se sorriu, o que chamamos de Brasil foi movido pela produção das commodities para o mercado mundial.
Durante a Era Lula, já era possível observar que o modelo de produção agroindustrial orientado para o mercado externo, “além de promover a expropriação das terras e dos modos de vida tradicionais, desorganiza a produção e ameaça a segurança alimentar – como se pode ver na necessidade crescente de importação de itens básicos”. Embora ideologicamente o “neodesenvolvimentismo” fosse anunciado como uma nova qualidade de crescimento amparado no mercado interno, em 2012 o Brasil já importava arroz e feijão diante do risco de desabastecimento com o boom das commodities.
Portanto, não se trata de problemas pontuais ou meramente conjunturais que explicam um ou outro preço mais salgado (o arroz se tornou o vilão de todos devido também a uma safra minguada na Tailândia). Muito menos o problema é a distribuição de dinheiro pelo governo – o real talvez se desvalorize pra valer quando a armadilha fiscal montada pelo governo da austeridade extrema exija uma expansão da base monetária. O problema aqui é o agronegócio brasileiro está bombando e a natureza da lógica capitalista é trazida à tona de modo mais evidente.
Não basta ressaltar a abominável convivência de superprodução e escassez: o sucesso absoluto do setor mais dinâmico da economia brasileira resulta necessariamente na transformação do “mercado interno” em algo secundário. Os milhões de brasileiros que recebem auxílio emergencial e temem o futuro sem esse frágil amparo monetário não foram apenas descartados pelo mercado de trabalho, são tão também dispensáveis como mercado consumidor. O sucesso do agronegócio é o fracasso social da primeira (ou segunda) potência agrícola do mundo.

A vitória do agronegócio é a demonstração de como os únicos empreendimentos ainda rentáveis são aqueles da destruição ambiental e do descarte social. Há alguns meses, os neoliberais sociopatas pediam aos seus avós para que morressem de covid, em nome da manutenção da economia aberta. Para justificar os ganhos crescentes do agronegócio, já devem estar preparando os discursos em que exortam os jovens que passem fome pela “pátria amada”.
Obrigado
Ou seja, é difícil conviver com os teólogos do mercado, esta coisa fantasmal que desconsidera pessoas; Ah, errei, falava de pessoas? Não, são apenas máquinas biológicas consumidoras impertinentes de proteína e carboidratos, de utilidade apenas pontual, sazonal.
Obrigado