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Sujeito Contemporâneo – um debate com o Prof. Robson Oliveira

arlindenor pedro
Por arlindenor pedro 46 leitura mínima

Em tempos em que o bezerro não reconhece a vaca , este livro do prof. Robson Oliveira presta uma prestimosa contribuição no entendimento do caráter do Sujeito Contemporâneo – o Sujeito criado pela Sociedade da Mercadoria .

Contents
Prefácio, por Anselm Jappe UMA OBRA INCOMPARÁVEL NA LITERATURA CRÍTICA Não há novidade nenhuma em se afirmar que vivemos hoje uma situação de crise permanente e que a crise ecológica e a crise econômica – a devastação das bases naturas da vida e a pobreza crescente em sociedade – convivem numa atmosfera de catástrofe cada vez mais próxima. Enquanto as ameaças parecem se renovar de modo incessante e nós nos vemos diante de perigos de cuja existência nem tínhamos conhecimento até uma data recente – como as mudanças climáticas – e que imaginávamos completamente superados – como os movimentos políticos de tonalidade fascista – o pensamento que deveria fazer frente a tais ameaças não se renovou com a mesma velocidade e o mesmo vigor durante as últimas décadas (é mínimo que se pode dizer). No mais das vezes, intentou-se compreender situações historicamente inéditas com as categorias herdadas do marxismo tradicional e do liberalismo, da teoria do desenvolvimento ou do subdesenvolvimento, da justiça social redistributiva e da democracia representativa.Entre as raras tentativas de repensar globalmente o que está nos acontecendo, encontramos a “crítica do valor”. Ela consiste numa crítica radical do valor mercantil e do dinheiro, do trabalho e da mercadoria, do Estado e do fetichismo da mercadoria que constituem as categorias centrais do capitalismo desde seus primórdios. A crítica do valor também analisa a crise irreversível na qual essas categorias se encontram hoje. Trata-se de uma abordagem inspirada em Marx, mas de modo algum “ortodoxa”. Nascida na Alemanha nos anos 1980 (e de maneira similar, mas independente, nos Estados Unidos com a obra de Moishe Postone) em torno da revista Krisis, a crítica do valor teve uma repercussão particularmente importante no Brasil. Seu principal autor, Robert Kurz, sempre esteve presente na mídia escrita e nas universidades brasileiras nos anos 1990 – antes que o boom dos anos Lula criasse a sensação de que estavam equivocados aqueles que falavam de uma crise fundamental e definitiva do capitalismo. Em seguida, a crise voltou, no Brasil mais forte ainda que em outros cantos – e agora resta saber se o pensamento crítico também vai despertar.A crítica do valor, que é uma abordagem, um método, um paradigma, e não uma “escola de pensamento”, já deu inúmeros frutos. Por um lado, dezenas de livros e centenas de artigos escritos por Robert Kurz (falecido em 2012) e outros autores. A maioria foi redigido em alemão, às vezes em francês e inglês; mas o português é – de longe – a língua na qual encontramos mais traduções. Por outro, a parte lusófona do mundo é também a região onde se podem encontrar o maior número de elaborações e continuações originais dessa abordagem. As revistas, as publicações, os blogs, os grupos de discussão e os cursos universitários são muitos. Não se trata somente de traduções e de divulgação, mas também de novos estudos, tanto sobre temas relacionados especificamente ao Brasil como também sobre outros temas. O fato de podermos notar amiúde uma tendência a combinar a crítica do valor com outras abordagens, com frequência oriundas do marxismo tradicional, deve ser considerado como o destino comum de teorias muito divulgadas.Não se trata apenas de um aumento quantitativo das pesquisas baseadas na crítica das categorias aparentemente tão “naturais” como são a mercadoria e o valor, o dinheiro e principalmente o trabalho em sua dupla natureza (abstrato e concreto). O aumento é também qualitativo: novas esferas da vida, do que se costumou chamar por convenção de “ciência humanas”, são submetidas a análises do tipo wertkritisch.A crítica do valor nasceu historicamente como retomada da “crítica da economia política” de Marx: não se trata de teoria econômica, mas de uma crítica do totalitarismo econômico, da dominação total da economia mercantil sobre a vida, algo que caracteriza intrinsecamente o capitalismo. Não se tratava em absoluto de se limitar a “análises econômicas”. Mas de todo modo a crítica do valor, e as contribuições de Robert Kurz em especial, privilegiaram durante um longo período a análise da vertente econômica da crise do capitalismo e suas consequências políticas, assim como um confronto com a obra de Marx e seus intérpretes. A introdução dos conceitos de “forma-sujeito” e “valor-dissociação” no arsenal da crítica do valor ampliaram em seguida os horizontes. Mas ainda faltava quase que completamente um aspecto essencial para toda e qualquer teoria com pretensões globais: pesquisas sobre a literatura, as artes, a música – em suma, sobre a chamada “cultura” em sentido estrito.Tal tarefa era tão necessária quanto difícil. Difícil porque é preciso medir forças com o peso da tradição marxista nesse terreno. Marx e Engels voltaram-se muito pouco para as questões culturais, limitando-se muito mais a algumas amostras. Mas o caminho havia sido aberto: era o materialismo histórico. As criações culturais, principalmente aquelas que caracterizam realmente uma época, seriam o “reflexo” dos conflitos de classe dessa dada época. É o esquema bem conhecido de “base” e “superestrutura”, do “ser” (Sein em alemão) que determina a consciência (Bewußtsein). Entretanto, os próprios fundadores dessa abordagem tinham também indicado a possibilidade de uma relação não mecânica entre esses fatores e de uma “autonomia relativa” das superestruturas. A partir dos anos 1920, quando as ideias de Marx foram adotadas fora do movimento operário e começaram a encontrar as outras ciências humanas, inúmeros autores utilizaram, de maneira mais ou menos “ortodoxa”, os métodos de Marx e de Engels, e às vezes também seus comentários no mínimo sucintos sobre algumas obras culturais, para elaborar uma teoria marxista da literatura. G. Lukács e J.-P. Sartre, H. Lefebvre e Lucien Goldmann, Theodor Adorno e Walter Benjamin, E. Bloch e H. Marcuse, L. Althusser e F. Jameson estão entre os representantes mais conhecidos desse debate (sem contar os estudos realizados nos países do Leste, que são muitas vezes as coisas menos desinteressantes que ali foram feitas, sem falar de M. Bakhtin e sua escola). Frente a frente, principalmente os defensores do “realismo”, como Lukács, e os autores mais abertos às experiências da literatura moderna e experimental, como Adorno (que não se definia como “marxista” em sentido estrito). O debate não dizia respeito aliás somente à interpretação a ser dada a obras passadas e presentes, mas assumia também, principalmente entre os “ortodoxos”, um forte valor normativo: tratava-se de determinar em que deve consistir uma literatura “revolucionária” ou “socialista”, chegando-se ao ponto nos países “comunistas” de se proibirem obras literárias por não serem suficientemente comunistas. A história desses debates, que continuaram até os anos 1970 para se interromper bruscamente em seguida, é bastante rico. No Brasil, as discussões de teoria literária mais ou menos influenciadas por Marx jogaram um papel especialmente grande. Porém, o aporte de Marx nesses debates – quer fosse preponderante, como em Lukács, ou somente um elemento entre outros, como em Adorno – consistia inevitavelmente em assumir que a literatura traduz os conflitos sociais de uma época, as estratégias dos atores sociais, os esforços de emancipação. Para tudo que não entrava nesse esquema, os marxistas não-ortodoxos pediam o socorro de outras ciências, como a semiótica.A crítica do valor revisitou de cabo a rado a herança de Marx e introduziu a distinção capital entre o “Marx esotérico” (teórico do fetichismo da mercadoria, que se exprime principalmente no primeiro capítulo do Capital e cujas análises, que tocam no coração mesmo da sociedade mercantil, são mais atuais do que nunca) e o “Marx exotérico”, que colocou no centro de suas análises a luta de classes tais como existiam em seu tempo. Mas que olhar devemos lançar para a esfera cultural? A questão durante muito tempo não mereceu muita atenção por parte das publicações inspiradas pela crítica do valor. Teria sido possível investigar as descrições literárias em relação à resistência popular ao trabalho, tema evidentemente negligenciado pelo marxismo tradicional que se fixa no papel positivo do trabalho. Na literatura brasileira, aliás, encontramos bons exemplos, aos quais também faz alusão o livro de Oliveira. Mas é fácil entender que uma tal perspectiva só alcançaria um campo limitado.É aqui que o conceito de “forma-sujeito” mostra todo seu poder heurístico. A partir do começo dos anos 1990, a crítica do valor aprofundou progressivamente o fato que o “sujeito” não é um dado supra-histórico que se viu colonizado pelo capitalismo. O sujeito é ele próprio uma forma fetichista: a forma-sujeito constitui uma “forma a priori” como são o valor, o trabalho abstrato, o dinheiro. Uma forma historicamente determinada, mas inconsciente e que estrutura os comportamentos e os pensamentos das pessoas – dos “sujeitos” – à sua revelia. O sujeito não é o polo contrário da dominação capitalista, ele nasceu e se desenvolveu juntamente com ela. A forma-sujeito é aparentemente abstrata e vazia de conteúdo, como o é o valor criado pelo lado abstrato do trabalho. Ela considera o mundo somente pelo prisma da quantificação e da abstratificação de todo e qualquer conteúdo. Ao mesmo tempo, seu caráter abstrato esconde o fato de que a forma-sujeito está essencialmente ligada a uma figura histórica precisa: o homem branco, macho e ocidental que conquistou o mundo e submeteu a natureza a partir do século XV. O sujeito não é idêntico à “pessoa” ou ao “indivíduo”. Ele é o indivíduo que vestiu a forma-sujeito como se veste uma camisa de força ou como se entra num leito de Procrusto. Mas esse sujeito, e sua forma, são vieram ao mundo já com todas as suas formas delineadas. Eles tiveram sua história, uma história que ainda continua.É o grande mérito do livro de Robson de Oliveira, ter empreendido a primeira análise de diferentes episódios da história da literatura mundial relacionando-os com as etapas do desenvolvimento da forma-sujeito. Ele fala de uma verdadeira “dupla acumulação primitiva”: objetiva – a subordinação da vida social à lógica do capital, crescente de forma incessante durante a modernidade – e subjetiva: a importância crescente da abstratificação e da indiferença (o autor retira de Georg Simmel o conceito de “blasé”) das estruturas psíquicas dos portadores dessa modernidade. Isso diz respeito, deve-se sublinhar, a todas as classes sociais, embora nem sempre da mesma forma: o “sujeito burguês” é uma categoria mais ampla do que apenas a classe burguesa. De maneira bem convincente, ele mostra que a forma-sujeito, que é uma pura abstração, se constitui pelo fim da Idade Média na Europa, paralelamente à emergência do dinheiro, e em relação estreita com uma nova maneira de conceber o tempo, em prelúdio à sua futura abstratificação e aceleração. Mas esse sujeito abstrato permanece durante séculos mesclado às formas concretas de socialização e não se liberta senão gradualmente de sua imbricação e de seus compromissos com as formas pré-burguesas e concretas (que aliás não são necessariamente melhores, como Oliveira chama a atenção).Ao falar do teatro de Molière, o livro de Oliveira evoca a oposição entre a velha aristocracia e a nova burguesia, rica em dinheiro mas pobre em cultura e savoir-vivre. Essa oposição, mil vezes analisada em termos históricos e sociológicos, é apresentada por Robson de Oliveira como duas etapas de um conflito que vai ser o esteio da evolução do sujeito moderno: uma que remete a esse sujeito moderno em vias de formação (a burguesia) e outra que remete para uma mentalidade ainda estruturada pelas formas pré-modernas de socialização. Quase três séculos depois, O homem sem qualidades (1930-1942) de Robert Musil representa para Robson de Oliveira um estágio histórico em que o sujeito abstrato, o sujeito da mercadoria e do dinheiro, destinado à pura quantificação, chega a uma vitória quase completa e não se defronta senão com os últimos restos de uma mentalidade pré-capitalista. A ausência do sentido de limites, o desaparecimento da dimensão simbólica nos atos cotidianos e nas trocas, onde o dinheiro toma o lugar o dom (no sentido de Marcel Mauss), e o desaparecimento da experiência transmissível, que tanto preocupava Walter Benjamin, contam entre suas características fundamentais. Evidentemente, tanto nesse como em outros casos citados, não são as intenções explícitas dos autores que contam, mas o que se pode exaurir de suas obras enquanto testemunhos ou sintomas.O livro de Oliveira é também precioso por mostrar que o arcabouço dessa análise pode igualmente dar resultados importantes no que diz respeito ao Brasil e seus aspectos particulares, que não são de modo algum um simples prolongamento de situações europeias. Ele constata ali, como outros já o fizeram antes dele, a ausência de uma classe burguesa e de sua subjetividade. Mas em vez de lamentar e desejar uma “modernização” das consciências como pressuposto necessário do “progressos social”, de Oliveira lembra – citando também suas experiência pessoais no sertão – as devastações produzidas por essa modernização – sem entretanto idealizar, nem nesse caso nem em qualquer outro em seu livro, as formas sociais pré-capitalistas. Nesse contexto, ele mostra também a importância da cooptação de formas inicialmente de contestação para a própria renovação do capitalismo. Criticando Antônio Cândido, ele aponta as ambiguidades da “superação” da subjetividade burguesa: a malandragem não aparece finalmente senão como uma via alternativa à sociedade de concorrência. Essa via era menos “eficiente” na época do “primeiro espírito do capitalismo”, weberiano, puritano e nórdico, mas agora vive sua revanche com o “terceiro espírito” (Luc Boltansky), pós-moderno, narcísico e globalizado. Essa excursão nas particularidades da forma-sujeito brasileira em relação às formas europeias pode aliás explicar – será que é preciso lembrar? – muitos elementos da história recente do país. E será interessante – embora não agradável – ver qual será a importância relativa do componente liberal-pós-moderno e do componente autoritário e conservador nas novas formas de dominação social que estão se configurando no Brasil e alhures.É importante destacar que essas interpretações são muito originais; é difícil encontrar algo comparável na literatura crítica. Além do mais, a utilidade dessas pesquisas é dupla: o conceito de forma-valor permite jogar uma nova luz sobre a história da literatura e das formas de consciência em geral. Ao mesmo tempo, os fenômenos culturais constituem um ótimo prisma para melhor distinguir e compreender as etapas da evolução da forma-sujeito. É do mesmo modo digno de nota que tais análises podem contribuir a ir além da oposição, tão velha quanto inútil, entre “materialismo” e “idealismo”, entre “ser” e “representações”. O conceito de fetichismo se situa com efeito para além dessa dicotomia do qual o marxismo tradicional fez um de seus cavalos de batalha.O último autor tratado neste livro é Samuel Beckett com Esperando Godot (1952), Fim de Partida (1957) e Dias Felizes (1961). Embora Godot esteja mais próximo, em anos, da obra de Musil do que de nossa época, temos a impressão de que Musil descreve um mundo findo, enquanto que o mundo de Beckett parece ser de uma desconcertante atualidade. Aqui, o sujeito vazio e sem conteúdo triunfou sobre tudo que pertence ao mundo concreto e reina soberano. Poderíamos ver aí uma realização integral da forma, uma realização definitiva do sujeito moderno: mas como muito bem mostra a obra de Beckett, o triunfo do sujeito mercantil coincide necessariamente com seu desabamento. Os homens mutilados de Beckett não constituem a negação do sujeito burguês, mas sua realização. Exatamente como a vitória da forma-valor na vida econômica e social coincide com sua ruína. Com efeito, a abstração só pode viver às expensas do concreto; se ela conseguir devorá-la completamente, perde sua própria base. O sujeito realizado destrói a si mesmo tanto quanto o capitalismo que aboliu quase todas as formas de vida pré-capitalista provoca sua própria crise: o valor é cego perante todo e qualquer conteúdo e não pode senão devastar o mundo social e natural. Beckett pinta um quadro sem piedade do waste land do capitalismo conseguindo coincidir consigo mesmo. Como Oliveira sublinha, Beckett não evoca de modo algum uma situação existencial “absurda” atemporal que caracterizaria o ser humano enquanto tal, nem, ao contrário, descreve apenas a situação do pós-guerra na Europa, mas anuncia precisamente o estágio final do sujeito burguês – que se tornou a forma-sujeito de todos os membros das sociedades modernas, sem grandes diferenças entre os grupos sociais.Aqui, o círculo se fecha. A crítica do valor, depois das análises literárias, retorna à análise do mundo contemporâneo, que era seu ponto de partida, e que não consiste de forma alguma numa consideração deslocada, mas num grito de alerta. A crise, o declínio e a autodissolução do sujeito com toda segurança não fazem parte de um processo pacífico que dará lugar automaticamente a formas melhores – do mesmo modo que o desabamento gradual do capitalismo não implica necessariamente a passagem para uma sociedade emancipada. Ele apenas abre a possibilidade. Compreender a evolução histórica da forma-sujeito e a catástrofe final à qual ela conduz não serve apenas para entender a literatura, mas também os desafios que estão à nossa espera.Quer se trate da incapacidade geral de reagir contra a catástrofe climática – incapacidade que assume hoje dimensões suicidas – ou do aumento de crimes absolutamente irracionais como os massacres nas escolas ou outros lugares públicos (school shooting, amok), quer se trate do aumento contínuo do narcisismo e outros distúrbios psíquicos ou da propagação do ódio sob forma de racismo e feminicídio, de guerra contra os pobres e de nostalgia da tortura e da pena de morte: trata-se de fenômenos cotidianos que não podem ser explicados apenas pelas razões “materialistas”, evocando os “interesses de classe” ou as estratégias dos dominantes. O capitalismo entrou há décadas numa fase de autodestruição. Essa autodestruição sempre existiu em germe em sua própria essência: a transformação, vazia de sentido, de trabalho em dinheiro, sem qualquer relação com o conteúdo. Os sujeitos são em grande medida (mas não completamente) afetados por essa lógica autodestrutiva. As populações votam espontaneamente no tipo de opressor que, há algumas décadas, só teriam como chegar ao poder pela força. A forma-valor e a forma-sujeito, dois lados da mesma forma de base, remetem uma para a outra, cada uma sendo tanto o pressuposto como a consequência da outra.Todavia, nem tudo está perdido. Não estamos diante de uma condição imutável do ser humano, mas de forma históricas. Assim como essas formas vieram ao mundo, também podem desaparecer. Entendê-las é o primeiro passo para se libertar delas um dia. Este livro constitui uma importante contribuição a essa compreensão. A erudição de que dá mostras não constitui um fim em si, mas está a serviço da compreensão da atualidade mais palpitante – sobretudo com relação às particularidades da forma-sujeito no Brasil.Como diz o autor, ainda não somos homens completamente sem qualidades, ainda não somos puro vazio – e ainda é possível evitar que nos tornemos. __________O HOMEM SEM QUALIDADES À ESPERA DE GODOT (Robson Oliveira) Posfácio por Marildo MenegatA ESSÊNCIA DA COISA Pode parecer estranho se falar de homens sem qualidades. Por pior que eles sejam, no limite, seus defeitos poderiam fazer a vez do que lhes falta. Mas não é o caso. Trata-se da forma neutra que, como resultado de um todo absurdo, lhes confere com frequência qualidades negativas que não são suas, mas meros empréstimos de uma estrutura de dominação impessoal que faz de homens e mulheres seus suportes – estes também, frequentemente, absurdos. Este ponto de partida de Robson de Oliveira é desprovido de qualquer antropologia apoiada numa visão essencialista de que a história e o ser humano devam ter sentidos transcendentais. Interessante caso de uma crítica social da literatura que não tem pretensões além de demonstrar uma incômoda figura do espírito presa num emaranhado de fios, tal como uma marionete voluntária. A exposição da constituição do sujeito burguês assim empreendida, difere de outras chaves conceituais sobre este tema, que se assentam primariamente no estudo da formação ideológica, enquanto Robson tem como referência implícita o estudo das máscaras de caráter que os homens vestem no capitalismo. O burguês, situado deste modo, é uma existência desassossegada que se explica a partir de sua interioridade em permanente conflito com as transformações da estrutura social, sendo, por seu turno, ele próprio um resultado adequado desta. As relações entre as determinações da forma social e a adaptação das ideias a estes imperativos, figuram como uma perspectiva de leitura de um objeto que, ao fim, não cabe a este nenhuma simpatia. Por ser ele o desdobramento de uma dupla máscara – a do caráter do capital em determinado tempo da sua história, e a do personagem literário, que tem o dilema de viver sua existência situado neste tempo -, este resultado é frequentemente risível (ou ridículo!), ainda quando o drama é pesado.A sequência de autores mobilizada para este fim não é aleatória. Todos os 4 (Molière, Musil, Mário de Andrade e Beckett) escreveram em momentos decisivos do desenvolvimento deste dramalhão insano que é a história da modernidade. São escritas de épocas de transição social. Para alguns deles, esta transição se combinou com tremendas crises do capital. Porém, nestas mudanças, algo de ‘substancial’ do conteúdo sempre permaneceu. O pressuposto desta concepção reside no modo como a realidade se estrutura. Em História e consciência de classe Lukács afirma que “só no terreno do capitalismo, da sociedade burguesa, é possível reconhecer na sociedade a realidade“[1]. E, aprofundando esta afirmação, Jamenson arremata: “Quando passamos de tal contexto [de uma sociedade pré-industrial, MM] para a literatura da era industrial, tudo se altera. Os elementos da obra começam a abandonar seu núcleo humano: uma espécie de dissolução do humano se manifesta, uma espécie de dispersão centrífuga na qual, a cada ponto, os caminhos levam ao contingente, à matéria e ao fato bruto, ao não-humano”[2]. O substancial da realidade no capitalismo não é o ser humano, por isso, as metamorfoses do sujeito burguês são, antes de tudo, metamorfoses das formas fundamentais das coisas que governam os homens[3]. A mercadoria não existe sem ser produto do trabalho. Como fruto dessa atividade humana abstrata, ela é um gasto de energia num tempo objetivado no valor de troca, que apenas pode preservar sua existência no momento em que se torna dinheiro para seu proprietário. Mas o dinheiro, que é a essência deste processo, precisa realizar-se na forma capital, voltando ao início das metamorfoses, quando se transforma novamente em produção de mercadorias, e assim por diante. Esta seria a matéria substancial da realidade. Ocorre que ela, como elemento dinâmico de uma sociedade sistêmica, se altera. Na busca incessante da ampliação quantitativa de riqueza, o capital precisa realizar mudanças qualitativas da produção de valor. Com as renovações tecnológicas ele atinge parcialmente este fim, eliminando quantidades crescentes de trabalho do processo de produção. Ora, mas é justamente ele, cujo tempo dá a medida abstrata da substância, que sustenta o tal “devir tautológico da modernidade”. Assim, quanto mais se desenvolve o capitalismo, mais rarefeita se torna a vida nele vivida. Não porque no passado tivesse sido verdadeira, mas sim, porque no passado ela tinha algo de uma promessa de verdade que a movia, e hoje dela apenas soa o som puído de sua falsificação.É muito original sustentar este devir tautológico a partir de um estudo de obras – e autores – nas quais as relações humanas passaram a se apoiar cada vez mais na mediação monetária. Este é um tema essencial para a compreensão das formas narrativas da modernidade. Nelas se faz presente, como expressão artística, o processo histórico em que homens e mulheres em suas relações sociais passaram a deixar de lado suas qualidades de seres humanos que desenvolvem suas potências, para se tornarem as qualidades transmitidas pelo dinheiro[4]. Em Molière, por exemplo, esta é a matéria que organiza os conflitos da consolidação da passagem de relações de obrigação baseadas na honra, para relações de obrigação mediadas pelo ‘vil metal’. Que seja deste contexto a primeira menção aos homens sem qualidade, na pele de arrivistas entesourados que buscavam legitimidade social com casamentos de interesse e relações com a aristocracia quebrada economicamente, não é um mero acaso. Esta menção expressa, ao mesmo tempo, um ressentimento destes aristocratas com a perda do privilégio do reconhecimento social, que era monopólio da sua condição de homens superiores e inatingíveis e, de outra parte, o anuncio de um nivelamento das condições de se arrastar atrás de si a admiração social centrada nas qualidades das novas formas de riqueza. Tal problema, implicado na ascensão do capitalismo, em que os conflitos pessoais precisaram ceder a este telos tautológico, desde então esteve em andamento. As relações monetárias passaram a operar como uma verdadeira tábula rasa da distribuição do status quo. Pensado do ponto de vista de um narrador onisciente, tudo seria risível, não fosse a experiência dolorosa em curso que haveria de humilhar inclusive os possuidores de dinheiro, já que este é, por natureza, desapegado e infiel com as mãos que o carrega.Neste contexto constitutivo da chamada cultura burguesa, se realizou a elaboração e internalização de normas comuns, em que, segundo Roswitha Scholz, as formas dominantes do moderno patriarcado produtor de mercadorias se consolidaram. A literatura foi um espaço em que o conflito com o que deve ficar dissociado das formas fundamentais de dominação se manifesta como dolorosa mutilação das potências, particularmente as das mulheres, que são desvalorizadas a priori pelas qualidades sociais de seus fazeres. Como o capitalismo é um modo de vida originado na Europa e movido pelo poder exercido por homens brancos no espaço externo à intimidade da casa, o qual inclui a autonomia da esfera econômica e seu domínio sobre as demais esferas da vida social, deste poder acabam dissociados também todos os grupos étnicos diferentes dos envolvidos na origem. O livro de Musil é assombroso por estas tensões, que o sobrecarregam e por meio dele transbordam o que no seu tempo ainda viria a acontecer. Partindo de uma Europa do início do século XX – que ainda há pouco se orgulhava de ser o berço da civilização e seu ponto mais elevado, mas que, não obstante, caminhava a passos céleres para o aniquilamento -, as mulheres, nesta condição histórica, ou eram exterminadas, como no cruel assassinato de uma prostituta por Moosbrugger, ou faziam parte de um jogo sedutor e conflituoso de potências mobilizadas para celebrar o velho patriarca, numa conjunção entre o último suspiro da aristocracia e a necessária adequação a moldes mais atualizados do patriarcado, agora exclusivamente alinhado ao poder do dinheiro. O homem sem qualidades dos tempos de Molière é, neste romance, a afirmação positivada do declínio do sujeito burguês – e não mais a forma ambígua e conflituosa do anúncio de uma promessa de felicidade. O quadro de uma guerra total (1914-18), que era preparada para realizar o espírito deste mundo, em que a crise de superacumulação de capital se conjugou violentamente com elementos de ‘persistência da tradição’ do antigo regime, encontrou nesta ausência de qualidades justamente as qualidades necessárias para a continuidade do devir tautológico. A sociedade do valor-dissociação, para permanecermos nos termos de Roswitha Scholz, ao perseguir inconscientemente o fim em si da valorização do valor, precisou transformar massas humanas em modos passivos e desvalorizados de existência para, em seguida, encaminhá-las ao autoextermínio. Neste ponto, o romance moderno abandonou sua origem de epopeia da vida burguesa. O sarcasmo de Musil torna este gênero absolutamente incômodo ao apaziguamento dos sentimentos com os conflitos sociais que nesta nova constelação se produzem. O distanciamento jornalístico com que Musil descreve o assassinato por Moosbrugger, de certo modo, antecipa o sentido e a frieza com que a Europa se preparava para a continuidade da era dos assassinatos em massa (1939-45).As transformações dentro da era industrial, desde meados do século XIX, mas especialmente no último quarto daquele século e o início do XX, transtornaram a vida social de tal sorte que as patologias coletivas se tornaram muito frequentes. Hannah Arendt observou que o surgimento da ralé, como um fenômeno novo da cultura europeia, ocorreu nesta época. Uma de suas causas teria sido a passagem em ato, com uma força até então pouco vista, das formas fictícias do capital. Esta modalidade de uma ‘acumulação em excesso’, desesperada por manter seu vínculo ativo com a valorização num mercado de possibilidades de investimentos estreitadas, se deve ao fato de que ‘a substância do valor’ já neste momento foi se tornando cada vez mais difícil de ser produzida e, com isso, tornou supérflua a função da forma de existência de milhões de seres humanos. A ralé se forma quando o desespero dessas massas passa a ser organizado politicamente para um direcionamento destrutivo de tudo o que pode levar à reflexão e impedir a continuidade desta vida de marionetes voluntárias. O homem sem qualidades deste momento histórico é uma explosiva transmutação desta decadência do sujeito burguês, assomada a um incurável niilismo passivo que a tábula rasa das relações de obrigação por meio do dinheiro criou, além da nova e ampliada experiência do que Lukács chamou de reificação. Não há muito para onde se fugir. A destruição da guerra total passa a ser um canhestro desejo de morte, como escreveu Freud, acerca desta encruzilhada, no seu Por que a guerra?. Não faltaram na literatura outras elaborações embaraçosas desta situação. Na Rússia, por exemplo, o debate sobre o verdadeiro significado histórico do niilismo e seus ‘demônios’, na versão de Dostoiévski, chegou ao ponto de profetizar algumas das consequências que a ausência de qualidades do homem moderno poderia vir a criar[5]. Quando mais tarde o stalinismo tornou um acontecimento pitoresco de província, numa realidade nacional[6], foi possível um entendimento ampliado daquilo que Lukács queria dizer com “só no capitalismo é possível reconhecer na sociedade a realidade“. O leitor não deve esquecer que a Revolução de 1917 foi a solução a Leste desta situação histórica. Sua novidade já nasceu envelhecida, como pôde ser finalmente constatado em 1991. Mas ela está longe de ser distinta do que ocorre no Ocidente e que tem tragado o capitalismo para um dos buracos negros da história.O que estes autores estudados por Robson de Oliveira não deixam esquecer, é que o devir tautológico é um processo progressivo que resulta na crescente ampliação deste estado explosivo. Não é aleatório para um leitor de Adorno que um estudo desta natureza termine em Beckett. É possível se encontrar nas peças deste uma espécie de mensagem em garrafa lançada ao mar, que guarda a notícia do futuro próximo-passado da morte da terra. Em tal cenário, seus personagens perdidos puderam se furtar, não se sabe como, da hecatombe final, mas não poderão deixar nenhuma pista além de suas impressões deste fim, que, aliás, ignoram as causas e ignoram que seja um fim, apesar de desconfiarem não lhes caber a espera de nada, a não ser a de um infindável prolongamento do vazio. Svetlana Alieksándrovich no seu Vozes de Tchernobil descreve, entre outros testemunhos, a história de uma comunidade de 4 pessoas que se formou na região contaminada pela radioatividade, dentro do deserto da zona de exclusão do acidente nuclear. Não é ficção. Estas pessoas vivem sem maiores medos além dos humanos, como o medo da morte e da fragilidade da velhice. As portas de suas casas podem ficar escancaradas e eles mesmos definem sua existência como um ‘verdadeiro comunismo’. São, em diversos aspectos fundamentais para se analisar a vida moderna, surpreendentemente livres: nenhum Estado ou mercado os importuna ou coage. Porém, esta comunidade não sobreviverá e nem poderá transmitir ao futuro o legada das misérias que são a causa de seu presente venturoso. Alguma consciência de mundo ainda os habita, mas ela é inócua, não pode ser legada, e se for, não podemos fazer nada com sua boa nova, pois ela dependeria de um tempo a ser vivido como o da morte da terra. Esta realidade é um intermundo que se formou dentro do devir tautológico da modernidade. Há nela vida, se bem que consciente de se tratar de um sussurro que se despede. No lado de cá da cortina, a cegueira do sujeito burguês ante este estado de coisas sequer procura sua cura. Ele desistiu das promessas do passado e se empenha em levar ao fim a obra que com ele se iniciou. O capitalismo desde os anos 1980 apenas sustenta sua dinâmica de reprodução por meios especulativos. As formas ficcionais do capital agora não são mais uma ocasional aparição, mas a própria estrutura e o motor que empurra a sociedade ao breu. A acumulação permanente somente pode ser simulada nestas condições e, mesmo assim, exige um grau incomensurável de destruição da natureza e dos laços sociais. Tem sido inviável, nestas condições, delimitar a borda do real neste modo intransponível de funcionamento do fim da acumulação.Pode parecer estranho se falar de uma irrealidade do real. Por mais esquisito que seja, no limite, este irreal poderia ser um tipo de real. Mas não é o caso. Trata-se do resultado de um absurdo que contou com a cumplicidade de homens e mulheres sem qualidades. A substância que estruturava esta realidade se esvaneceu, porque a sua produção se tornou impossível no atual nível de desenvolvimento tecnológico – como consequência do seu devir bem sucedido.Já não sei se para hoje Godot virá… [1] Cf. LUKÁCS, G. História e consciência de classe – estudos de dialética marxista. Lisboa: Editora ESCORPIÃO, 1974, p. 35.[2] Cf. JAMENSON, F. Marxismo e forma – teorias dialéticas da literatura no século XX. São Paulo: Editora Ática, 1985, p. 132.[3] “[O]s trabalhos privados só atuam, de fato, como membros do trabalho social total por meio das relações que a troca estabelece entre os produtos do trabalho e, por meio dos mesmos, entre os produtores. Por isso, aos últimos aparecem as relações sociais entre seus trabalhos privados como o que são, isto é, não como relações diretamente sociais entre pessoas em seus próprios trabalhos, senão como relações reificadas entre as pessoas e relações sociais entre coisas”. Cf. MARX, K. O capital: crítica da economia política, Livro I, vol. 1. São Paulo: Nova cultural, 1985, p. 71[4] “O que é para mim pelo dinheiro, o que eu posso pagar, isto é, o que o dinheiro pode comprar, isso sou eu, o possuidor do próprio dinheiro. Tão grande quanto a força do dinheiro é a minha força. As qualidades do dinheiro são minhas […] qualidade e forças essenciais. O que eu sou e consigo não é determinado de modo algum, portanto, pela minha individualidade. Sou feio, mas posso comprar para mim a mais bela mulher. Portanto, não sou feio, pois o efeito da fealdade […] é anulado pelo dinheiro”. MARX, K. Manuscritos econômicos-filosóficos. São Paulo, Boitempo, 2004, p. 159.[5] Este debate se iniciou com Ivan Turguêniev, no seu romance Pais e filhos. Mais tarde, um DOSTOIÉVSKI já mordido pelo tema, não perdeu a ocasião de um ‘funesto acontecimento’, em que uma célula da organização clandestina Justiça Sumária do Povo executa, em 1869, um estudante que se afastava do grupo por divergências, para escrever Os demônios. A certa altura deste romance, um de seus personagens niilistas proclama: “No mundo só falta uma coisa: obediência. A sede de educação já é uma sede aristocrática. […]. Vamos eliminar o desejo: vamos espalhar a bebedeira, as bisbilhotices, a delação; vamos espalhar uma depravação inaudita; vamos exterminar todo e qualquer gênio na primeira infância” (2004: 407). Sobre as ‘profecias’ de Dostoiévski ver BEZERRA, P. “Um romance e profecia”; in: DOSTOIÉVSKI, F. Os demônios. São Paulo, Editora 34, 2004, pp. 689-697.[6] No mesmo contexto da passagem anterior (nota supra), o referido personagem dostoiévskiano diz ainda: “No esquema dele [trata-se dos escritos de outro personagem] cada membro da sociedade vigia o outro e é obrigado a delatar. Cada um pertence a todos, e todos a cada um. Todos são escravos iguais na escravidão”. Cf. DOSTOIÉVSKI (2004: 407). O surpreendente é que tudo isso continue atual, mesmo que as ‘realidades nacionais’ sejam outras!

Veja aqui o lançamento do livro : O Homem sem qualidades à espera de Godot – Prof. Robson Oliveira , feito pelo Grupo Crítica Radical de Fortaleza

Prefácio, por Anselm Jappe

 

UMA OBRA INCOMPARÁVEL NA LITERATURA CRÍTICA

 

Não há novidade nenhuma em se afirmar que vivemos hoje uma situação de crise permanente e que a crise ecológica e a crise econômica – a devastação das bases naturas da vida e a pobreza crescente em sociedade – convivem numa atmosfera de catástrofe cada vez mais próxima. Enquanto as ameaças parecem se renovar de modo incessante e nós nos vemos diante de perigos de cuja existência nem tínhamos conhecimento até uma data recente – como as mudanças climáticas – e que imaginávamos completamente superados – como os movimentos políticos de tonalidade fascista – o pensamento que deveria fazer frente a tais ameaças não se renovou com a mesma velocidade e o mesmo vigor durante as últimas décadas (é mínimo que se pode dizer). No mais das vezes, intentou-se compreender situações historicamente inéditas com as categorias herdadas do marxismo tradicional e do liberalismo, da teoria do desenvolvimento ou do subdesenvolvimento, da justiça social redistributiva e da democracia representativa.
Entre as raras tentativas de repensar globalmente o que está nos acontecendo, encontramos a “crítica do valor”. Ela consiste numa crítica radical do valor mercantil e do dinheiro, do trabalho e da mercadoria, do Estado e do fetichismo da mercadoria que constituem as categorias centrais do capitalismo desde seus primórdios. A crítica do valor também analisa a crise irreversível na qual essas categorias se encontram hoje. Trata-se de uma abordagem inspirada em Marx, mas de modo algum “ortodoxa”. Nascida na Alemanha nos anos 1980 (e de maneira similar, mas independente, nos Estados Unidos com a obra de Moishe Postone) em torno da revista Krisis, a crítica do valor teve uma repercussão particularmente importante no Brasil. Seu principal autor, Robert Kurz, sempre esteve presente na mídia escrita e nas universidades brasileiras nos anos 1990 – antes que o boom dos anos Lula criasse a sensação de que estavam equivocados aqueles que falavam de uma crise fundamental e definitiva do capitalismo. Em seguida, a crise voltou, no Brasil mais forte ainda que em outros cantos – e agora resta saber se o pensamento crítico também vai despertar.
A crítica do valor, que é uma abordagem, um método, um paradigma, e não uma “escola de pensamento”, já deu inúmeros frutos. Por um lado, dezenas de livros e centenas de artigos escritos por Robert Kurz (falecido em 2012) e outros autores. A maioria foi redigido em alemão, às vezes em francês e inglês; mas o português é – de longe – a língua na qual encontramos mais traduções. Por outro, a parte lusófona do mundo é também a região onde se podem encontrar o maior número de elaborações e continuações originais dessa abordagem. As revistas, as publicações, os blogs, os grupos de discussão e os cursos universitários são muitos. Não se trata somente de traduções e de divulgação, mas também de novos estudos, tanto sobre temas relacionados especificamente ao Brasil como também sobre outros temas. O fato de podermos notar amiúde uma tendência a combinar a crítica do valor com outras abordagens, com frequência oriundas do marxismo tradicional, deve ser considerado como o destino comum de teorias muito divulgadas.
Não se trata apenas de um aumento quantitativo das pesquisas baseadas na crítica das categorias aparentemente tão “naturais” como são a mercadoria e o valor, o dinheiro e principalmente o trabalho em sua dupla natureza (abstrato e concreto). O aumento é também qualitativo: novas esferas da vida, do que se costumou chamar por convenção de “ciência humanas”, são submetidas a análises do tipo wertkritisch.
A crítica do valor nasceu historicamente como retomada da “crítica da economia política” de Marx: não se trata de teoria econômica, mas de uma crítica do totalitarismo econômico, da dominação total da economia mercantil sobre a vida, algo que caracteriza intrinsecamente o capitalismo. Não se tratava em absoluto de se limitar a “análises econômicas”. Mas de todo modo a crítica do valor, e as contribuições de Robert Kurz em especial, privilegiaram durante um longo período a análise da vertente econômica da crise do capitalismo e suas consequências políticas, assim como um confronto com a obra de Marx e seus intérpretes. A introdução dos conceitos de “forma-sujeito” e “valor-dissociação” no arsenal da crítica do valor ampliaram em seguida os horizontes. Mas ainda faltava quase que completamente um aspecto essencial para toda e qualquer teoria com pretensões globais: pesquisas sobre a literatura, as artes, a música – em suma, sobre a chamada “cultura” em sentido estrito.
Tal tarefa era tão necessária quanto difícil. Difícil porque é preciso medir forças com o peso da tradição marxista nesse terreno. Marx e Engels voltaram-se muito pouco para as questões culturais, limitando-se muito mais a algumas amostras. Mas o caminho havia sido aberto: era o materialismo histórico. As criações culturais, principalmente aquelas que caracterizam realmente uma época, seriam o “reflexo” dos conflitos de classe dessa dada época. É o esquema bem conhecido de “base” e “superestrutura”, do “ser” (Sein em alemão) que determina a consciência (Bewußtsein). Entretanto, os próprios fundadores dessa abordagem tinham também indicado a possibilidade de uma relação não mecânica entre esses fatores e de uma “autonomia relativa” das superestruturas. A partir dos anos 1920, quando as ideias de Marx foram adotadas fora do movimento operário e começaram a encontrar as outras ciências humanas, inúmeros autores utilizaram, de maneira mais ou menos “ortodoxa”, os métodos de Marx e de Engels, e às vezes também seus comentários no mínimo sucintos sobre algumas obras culturais, para elaborar uma teoria marxista da literatura. G. Lukács e J.-P. Sartre, H. Lefebvre e Lucien Goldmann, Theodor Adorno e Walter Benjamin, E. Bloch e H. Marcuse, L. Althusser e F. Jameson estão entre os representantes mais conhecidos desse debate (sem contar os estudos realizados nos países do Leste, que são muitas vezes as coisas menos desinteressantes que ali foram feitas, sem falar de M. Bakhtin e sua escola). Frente a frente, principalmente os defensores do “realismo”, como Lukács, e os autores mais abertos às experiências da literatura moderna e experimental, como Adorno (que não se definia como “marxista” em sentido estrito). O debate não dizia respeito aliás somente à interpretação a ser dada a obras passadas e presentes, mas assumia também, principalmente entre os “ortodoxos”, um forte valor normativo: tratava-se de determinar em que deve consistir uma literatura “revolucionária” ou “socialista”, chegando-se ao ponto nos países “comunistas” de se proibirem obras literárias por não serem suficientemente comunistas. A história desses debates, que continuaram até os anos 1970 para se interromper bruscamente em seguida, é bastante rico. No Brasil, as discussões de teoria literária mais ou menos influenciadas por Marx jogaram um papel especialmente grande. Porém, o aporte de Marx nesses debates – quer fosse preponderante, como em Lukács, ou somente um elemento entre outros, como em Adorno – consistia inevitavelmente em assumir que a literatura traduz os conflitos sociais de uma época, as estratégias dos atores sociais, os esforços de emancipação. Para tudo que não entrava nesse esquema, os marxistas não-ortodoxos pediam o socorro de outras ciências, como a semiótica.
A crítica do valor revisitou de cabo a rado a herança de Marx e introduziu a distinção capital entre o “Marx esotérico” (teórico do fetichismo da mercadoria, que se exprime principalmente no primeiro capítulo do Capital e cujas análises, que tocam no coração mesmo da sociedade mercantil, são mais atuais do que nunca) e o “Marx exotérico”, que colocou no centro de suas análises a luta de classes tais como existiam em seu tempo. Mas que olhar devemos lançar para a esfera cultural? A questão durante muito tempo não mereceu muita atenção por parte das publicações inspiradas pela crítica do valor. Teria sido possível investigar as descrições literárias em relação à resistência popular ao trabalho, tema evidentemente negligenciado pelo marxismo tradicional que se fixa no papel positivo do trabalho. Na literatura brasileira, aliás, encontramos bons exemplos, aos quais também faz alusão o livro de Oliveira. Mas é fácil entender que uma tal perspectiva só alcançaria um campo limitado.
É aqui que o conceito de “forma-sujeito” mostra todo seu poder heurístico. A partir do começo dos anos 1990, a crítica do valor aprofundou progressivamente o fato que o “sujeito” não é um dado supra-histórico que se viu colonizado pelo capitalismo. O sujeito é ele próprio uma forma fetichista: a forma-sujeito constitui uma “forma a priori” como são o valor, o trabalho abstrato, o dinheiro. Uma forma historicamente determinada, mas inconsciente e que estrutura os comportamentos e os pensamentos das pessoas – dos “sujeitos” – à sua revelia. O sujeito não é o polo contrário da dominação capitalista, ele nasceu e se desenvolveu juntamente com ela. A forma-sujeito é aparentemente abstrata e vazia de conteúdo, como o é o valor criado pelo lado abstrato do trabalho. Ela considera o mundo somente pelo prisma da quantificação e da abstratificação de todo e qualquer conteúdo. Ao mesmo tempo, seu caráter abstrato esconde o fato de que a forma-sujeito está essencialmente ligada a uma figura histórica precisa: o homem branco, macho e ocidental que conquistou o mundo e submeteu a natureza a partir do século XV. O sujeito não é idêntico à “pessoa” ou ao “indivíduo”. Ele é o indivíduo que vestiu a forma-sujeito como se veste uma camisa de força ou como se entra num leito de Procrusto. Mas esse sujeito, e sua forma, são vieram ao mundo já com todas as suas formas delineadas. Eles tiveram sua história, uma história que ainda continua.
É o grande mérito do livro de Robson de Oliveira, ter empreendido a primeira análise de diferentes episódios da história da literatura mundial relacionando-os com as etapas do desenvolvimento da forma-sujeito. Ele fala de uma verdadeira “dupla acumulação primitiva”: objetiva – a subordinação da vida social à lógica do capital, crescente de forma incessante durante a modernidade – e subjetiva: a importância crescente da abstratificação e da indiferença (o autor retira de Georg Simmel o conceito de “blasé”) das estruturas psíquicas dos portadores dessa modernidade. Isso diz respeito, deve-se sublinhar, a todas as classes sociais, embora nem sempre da mesma forma: o “sujeito burguês” é uma categoria mais ampla do que apenas a classe burguesa. De maneira bem convincente, ele mostra que a forma-sujeito, que é uma pura abstração, se constitui pelo fim da Idade Média na Europa, paralelamente à emergência do dinheiro, e em relação estreita com uma nova maneira de conceber o tempo, em prelúdio à sua futura abstratificação e aceleração. Mas esse sujeito abstrato permanece durante séculos mesclado às formas concretas de socialização e não se liberta senão gradualmente de sua imbricação e de seus compromissos com as formas pré-burguesas e concretas (que aliás não são necessariamente melhores, como Oliveira chama a atenção).
Ao falar do teatro de Molière, o livro de Oliveira evoca a oposição entre a velha aristocracia e a nova burguesia, rica em dinheiro mas pobre em cultura e savoir-vivre. Essa oposição, mil vezes analisada em termos históricos e sociológicos, é apresentada por Robson de Oliveira como duas etapas de um conflito que vai ser o esteio da evolução do sujeito moderno: uma que remete a esse sujeito moderno em vias de formação (a burguesia) e outra que remete para uma mentalidade ainda estruturada pelas formas pré-modernas de socialização. Quase três séculos depois, O homem sem qualidades (1930-1942) de Robert Musil representa para Robson de Oliveira um estágio histórico em que o sujeito abstrato, o sujeito da mercadoria e do dinheiro, destinado à pura quantificação, chega a uma vitória quase completa e não se defronta senão com os últimos restos de uma mentalidade pré-capitalista. A ausência do sentido de limites, o desaparecimento da dimensão simbólica nos atos cotidianos e nas trocas, onde o dinheiro toma o lugar o dom (no sentido de Marcel Mauss), e o desaparecimento da experiência transmissível, que tanto preocupava Walter Benjamin, contam entre suas características fundamentais. Evidentemente, tanto nesse como em outros casos citados, não são as intenções explícitas dos autores que contam, mas o que se pode exaurir de suas obras enquanto testemunhos ou sintomas.
O livro de Oliveira é também precioso por mostrar que o arcabouço dessa análise pode igualmente dar resultados importantes no que diz respeito ao Brasil e seus aspectos particulares, que não são de modo algum um simples prolongamento de situações europeias. Ele constata ali, como outros já o fizeram antes dele, a ausência de uma classe burguesa e de sua subjetividade. Mas em vez de lamentar e desejar uma “modernização” das consciências como pressuposto necessário do “progressos social”, de Oliveira lembra – citando também suas experiência pessoais no sertão – as devastações produzidas por essa modernização – sem entretanto idealizar, nem nesse caso nem em qualquer outro em seu livro, as formas sociais pré-capitalistas. Nesse contexto, ele mostra também a importância da cooptação de formas inicialmente de contestação para a própria renovação do capitalismo. Criticando Antônio Cândido, ele aponta as ambiguidades da “superação” da subjetividade burguesa: a malandragem não aparece finalmente senão como uma via alternativa à sociedade de concorrência. Essa via era menos “eficiente” na época do “primeiro espírito do capitalismo”, weberiano, puritano e nórdico, mas agora vive sua revanche com o “terceiro espírito” (Luc Boltansky), pós-moderno, narcísico e globalizado. Essa excursão nas particularidades da forma-sujeito brasileira em relação às formas europeias pode aliás explicar – será que é preciso lembrar? – muitos elementos da história recente do país. E será interessante – embora não agradável – ver qual será a importância relativa do componente liberal-pós-moderno e do componente autoritário e conservador nas novas formas de dominação social que estão se configurando no Brasil e alhures.
É importante destacar que essas interpretações são muito originais; é difícil encontrar algo comparável na literatura crítica. Além do mais, a utilidade dessas pesquisas é dupla: o conceito de forma-valor permite jogar uma nova luz sobre a história da literatura e das formas de consciência em geral. Ao mesmo tempo, os fenômenos culturais constituem um ótimo prisma para melhor distinguir e compreender as etapas da evolução da forma-sujeito. É do mesmo modo digno de nota que tais análises podem contribuir a ir além da oposição, tão velha quanto inútil, entre “materialismo” e “idealismo”, entre “ser” e “representações”. O conceito de fetichismo se situa com efeito para além dessa dicotomia do qual o marxismo tradicional fez um de seus cavalos de batalha.
O último autor tratado neste livro é Samuel Beckett com Esperando Godot (1952), Fim de Partida (1957) e Dias Felizes (1961). Embora Godot esteja mais próximo, em anos, da obra de Musil do que de nossa época, temos a impressão de que Musil descreve um mundo findo, enquanto que o mundo de Beckett parece ser de uma desconcertante atualidade. Aqui, o sujeito vazio e sem conteúdo triunfou sobre tudo que pertence ao mundo concreto e reina soberano. Poderíamos ver aí uma realização integral da forma, uma realização definitiva do sujeito moderno: mas como muito bem mostra a obra de Beckett, o triunfo do sujeito mercantil coincide necessariamente com seu desabamento. Os homens mutilados de Beckett não constituem a negação do sujeito burguês, mas sua realização. Exatamente como a vitória da forma-valor na vida econômica e social coincide com sua ruína. Com efeito, a abstração só pode viver às expensas do concreto; se ela conseguir devorá-la completamente, perde sua própria base. O sujeito realizado destrói a si mesmo tanto quanto o capitalismo que aboliu quase todas as formas de vida pré-capitalista provoca sua própria crise: o valor é cego perante todo e qualquer conteúdo e não pode senão devastar o mundo social e natural. Beckett pinta um quadro sem piedade do waste land do capitalismo conseguindo coincidir consigo mesmo. Como Oliveira sublinha, Beckett não evoca de modo algum uma situação existencial “absurda” atemporal que caracterizaria o ser humano enquanto tal, nem, ao contrário, descreve apenas a situação do pós-guerra na Europa, mas anuncia precisamente o estágio final do sujeito burguês – que se tornou a forma-sujeito de todos os membros das sociedades modernas, sem grandes diferenças entre os grupos sociais.
Aqui, o círculo se fecha. A crítica do valor, depois das análises literárias, retorna à análise do mundo contemporâneo, que era seu ponto de partida, e que não consiste de forma alguma numa consideração deslocada, mas num grito de alerta. A crise, o declínio e a autodissolução do sujeito com toda segurança não fazem parte de um processo pacífico que dará lugar automaticamente a formas melhores – do mesmo modo que o desabamento gradual do capitalismo não implica necessariamente a passagem para uma sociedade emancipada. Ele apenas abre a possibilidade. Compreender a evolução histórica da forma-sujeito e a catástrofe final à qual ela conduz não serve apenas para entender a literatura, mas também os desafios que estão à nossa espera.
Quer se trate da incapacidade geral de reagir contra a catástrofe climática – incapacidade que assume hoje dimensões suicidas – ou do aumento de crimes absolutamente irracionais como os massacres nas escolas ou outros lugares públicos (school shooting, amok), quer se trate do aumento contínuo do narcisismo e outros distúrbios psíquicos ou da propagação do ódio sob forma de racismo e feminicídio, de guerra contra os pobres e de nostalgia da tortura e da pena de morte: trata-se de fenômenos cotidianos que não podem ser explicados apenas pelas razões “materialistas”, evocando os “interesses de classe” ou as estratégias dos dominantes. O capitalismo entrou há décadas numa fase de autodestruição. Essa autodestruição sempre existiu em germe em sua própria essência: a transformação, vazia de sentido, de trabalho em dinheiro, sem qualquer relação com o conteúdo. Os sujeitos são em grande medida (mas não completamente) afetados por essa lógica autodestrutiva. As populações votam espontaneamente no tipo de opressor que, há algumas décadas, só teriam como chegar ao poder pela força. A forma-valor e a forma-sujeito, dois lados da mesma forma de base, remetem uma para a outra, cada uma sendo tanto o pressuposto como a consequência da outra.
Todavia, nem tudo está perdido. Não estamos diante de uma condição imutável do ser humano, mas de forma históricas. Assim como essas formas vieram ao mundo, também podem desaparecer. Entendê-las é o primeiro passo para se libertar delas um dia. Este livro constitui uma importante contribuição a essa compreensão. A erudição de que dá mostras não constitui um fim em si, mas está a serviço da compreensão da atualidade mais palpitante – sobretudo com relação às particularidades da forma-sujeito no Brasil.
Como diz o autor, ainda não somos homens completamente sem qualidades, ainda não somos puro vazio – e ainda é possível evitar que nos tornemos.

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O HOMEM SEM QUALIDADES À ESPERA DE GODOT (Robson Oliveira)

 

Posfácio por Marildo Menegat

A ESSÊNCIA DA COISA

 

Pode parecer estranho se falar de homens sem qualidades. Por pior que eles sejam, no limite, seus defeitos poderiam fazer a vez do que lhes falta. Mas não é o caso. Trata-se da forma neutra que, como resultado de um todo absurdo, lhes confere com frequência qualidades negativas que não são suas, mas meros empréstimos de uma estrutura de dominação impessoal que faz de homens e mulheres seus suportes – estes também, frequentemente, absurdos. Este ponto de partida de Robson de Oliveira é desprovido de qualquer antropologia apoiada numa visão essencialista de que a história e o ser humano devam ter sentidos transcendentais. Interessante caso de uma crítica social da literatura que não tem pretensões além de demonstrar uma incômoda figura do espírito presa num emaranhado de fios, tal como uma marionete voluntária. A exposição da constituição do sujeito burguês assim empreendida, difere de outras chaves conceituais sobre este tema, que se assentam primariamente no estudo da formação ideológica, enquanto Robson tem como referência implícita o estudo das máscaras de caráter que os homens vestem no capitalismo. O burguês, situado deste modo, é uma existência desassossegada que se explica a partir de sua interioridade em permanente conflito com as transformações da estrutura social, sendo, por seu turno, ele próprio um resultado adequado desta. As relações entre as determinações da forma social e a adaptação das ideias a estes imperativos, figuram como uma perspectiva de leitura de um objeto que, ao fim, não cabe a este nenhuma simpatia. Por ser ele o desdobramento de uma dupla máscara – a do caráter do capital em determinado tempo da sua história, e a do personagem literário, que tem o dilema de viver sua existência situado neste tempo -, este resultado é frequentemente risível (ou ridículo!), ainda quando o drama é pesado.
A sequência de autores mobilizada para este fim não é aleatória. Todos os 4 (Molière, Musil, Mário de Andrade e Beckett) escreveram em momentos decisivos do desenvolvimento deste dramalhão insano que é a história da modernidade. São escritas de épocas de transição social. Para alguns deles, esta transição se combinou com tremendas crises do capital. Porém, nestas mudanças, algo de ‘substancial’ do conteúdo sempre permaneceu. O pressuposto desta concepção reside no modo como a realidade se estrutura. Em História e consciência de classe Lukács afirma que “só no terreno do capitalismo, da sociedade burguesa, é possível reconhecer na sociedade a realidade[1]. E, aprofundando esta afirmação, Jamenson arremata: “Quando passamos de tal contexto [de uma sociedade pré-industrial, MM] para a literatura da era industrial, tudo se altera. Os elementos da obra começam a abandonar seu núcleo humano: uma espécie de dissolução do humano se manifesta, uma espécie de dispersão centrífuga na qual, a cada ponto, os caminhos levam ao contingente, à matéria e ao fato bruto, ao não-humano”[2]. O substancial da realidade no capitalismo não é o ser humano, por isso, as metamorfoses do sujeito burguês são, antes de tudo, metamorfoses das formas fundamentais das coisas que governam os homens[3]. A mercadoria não existe sem ser produto do trabalho. Como fruto dessa atividade humana abstrata, ela é um gasto de energia num tempo objetivado no valor de troca, que apenas pode preservar sua existência no momento em que se torna dinheiro para seu proprietário. Mas o dinheiro, que é a essência deste processo, precisa realizar-se na forma capital, voltando ao início das metamorfoses, quando se transforma novamente em produção de mercadorias, e assim por diante. Esta seria a matéria substancial da realidade. Ocorre que ela, como elemento dinâmico de uma sociedade sistêmica, se altera. Na busca incessante da ampliação quantitativa de riqueza, o capital precisa realizar mudanças qualitativas da produção de valor. Com as renovações tecnológicas ele atinge parcialmente este fim, eliminando quantidades crescentes de trabalho do processo de produção. Ora, mas é justamente ele, cujo tempo dá a medida abstrata da substância, que sustenta o tal “devir tautológico da modernidade”. Assim, quanto mais se desenvolve o capitalismo, mais rarefeita se torna a vida nele vivida. Não porque no passado tivesse sido verdadeira, mas sim, porque no passado ela tinha algo de uma promessa de verdade que a movia, e hoje dela apenas soa o som puído de sua falsificação.
É muito original sustentar este devir tautológico a partir de um estudo de obras – e autores – nas quais as relações humanas passaram a se apoiar cada vez mais na mediação monetária. Este é um tema essencial para a compreensão das formas narrativas da modernidade. Nelas se faz presente, como expressão artística, o processo histórico em que homens e mulheres em suas relações sociais passaram a deixar de lado suas qualidades de seres humanos que desenvolvem suas potências, para se tornarem as qualidades transmitidas pelo dinheiro[4]. Em Molière, por exemplo, esta é a matéria que organiza os conflitos da consolidação da passagem de relações de obrigação baseadas na honra, para relações de obrigação mediadas pelo ‘vil metal’. Que seja deste contexto a primeira menção aos homens sem qualidade, na pele de arrivistas entesourados que buscavam legitimidade social com casamentos de interesse e relações com a aristocracia quebrada economicamente, não é um mero acaso. Esta menção expressa, ao mesmo tempo, um ressentimento destes aristocratas com a perda do privilégio do reconhecimento social, que era monopólio da sua condição de homens superiores e inatingíveis e, de outra parte, o anuncio de um nivelamento das condições de se arrastar atrás de si a admiração social centrada nas qualidades das novas formas de riqueza. Tal problema, implicado na ascensão do capitalismo, em que os conflitos pessoais precisaram ceder a este telos tautológico, desde então esteve em andamento. As relações monetárias passaram a operar como uma verdadeira tábula rasa da distribuição do status quo. Pensado do ponto de vista de um narrador onisciente, tudo seria risível, não fosse a experiência dolorosa em curso que haveria de humilhar inclusive os possuidores de dinheiro, já que este é, por natureza, desapegado e infiel com as mãos que o carrega.
Neste contexto constitutivo da chamada cultura burguesa, se realizou a elaboração e internalização de normas comuns, em que, segundo Roswitha Scholz, as formas dominantes do moderno patriarcado produtor de mercadorias se consolidaram. A literatura foi um espaço em que o conflito com o que deve ficar dissociado das formas fundamentais de dominação se manifesta como dolorosa mutilação das potências, particularmente as das mulheres, que são desvalorizadas a priori pelas qualidades sociais de seus fazeres. Como o capitalismo é um modo de vida originado na Europa e movido pelo poder exercido por homens brancos no espaço externo à intimidade da casa, o qual inclui a autonomia da esfera econômica e seu domínio sobre as demais esferas da vida social, deste poder acabam dissociados também todos os grupos étnicos diferentes dos envolvidos na origem. O livro de Musil é assombroso por estas tensões, que o sobrecarregam e por meio dele transbordam o que no seu tempo ainda viria a acontecer. Partindo de uma Europa do início do século XX – que ainda há pouco se orgulhava de ser o berço da civilização e seu ponto mais elevado, mas que, não obstante, caminhava a passos céleres para o aniquilamento -, as mulheres, nesta condição histórica, ou eram exterminadas, como no cruel assassinato de uma prostituta por Moosbrugger, ou faziam parte de um jogo sedutor e conflituoso de potências mobilizadas para celebrar o velho patriarca, numa conjunção entre o último suspiro da aristocracia e a necessária adequação a moldes mais atualizados do patriarcado, agora exclusivamente alinhado ao poder do dinheiro. O homem sem qualidades dos tempos de Molière é, neste romance, a afirmação positivada do declínio do sujeito burguês – e não mais a forma ambígua e conflituosa do anúncio de uma promessa de felicidade. O quadro de uma guerra total (1914-18), que era preparada para realizar o espírito deste mundo, em que a crise de superacumulação de capital se conjugou violentamente com elementos de ‘persistência da tradição’ do antigo regime, encontrou nesta ausência de qualidades justamente as qualidades necessárias para a continuidade do devir tautológico. A sociedade do valor-dissociação, para permanecermos nos termos de Roswitha Scholz, ao perseguir inconscientemente o fim em si da valorização do valor, precisou transformar massas humanas em modos passivos e desvalorizados de existência para, em seguida, encaminhá-las ao autoextermínio. Neste ponto, o romance moderno abandonou sua origem de epopeia da vida burguesa. O sarcasmo de Musil torna este gênero absolutamente incômodo ao apaziguamento dos sentimentos com os conflitos sociais que nesta nova constelação se produzem. O distanciamento jornalístico com que Musil descreve o assassinato por Moosbrugger, de certo modo, antecipa o sentido e a frieza com que a Europa se preparava para a continuidade da era dos assassinatos em massa (1939-45).
As transformações dentro da era industrial, desde meados do século XIX, mas especialmente no último quarto daquele século e o início do XX, transtornaram a vida social de tal sorte que as patologias coletivas se tornaram muito frequentes. Hannah Arendt observou que o surgimento da ralé, como um fenômeno novo da cultura europeia, ocorreu nesta época. Uma de suas causas teria sido a passagem em ato, com uma força até então pouco vista, das formas fictícias do capital. Esta modalidade de uma ‘acumulação em excesso’, desesperada por manter seu vínculo ativo com a valorização num mercado de possibilidades de investimentos estreitadas, se deve ao fato de que ‘a substância do valor’ já neste momento foi se tornando cada vez mais difícil de ser produzida e, com isso, tornou supérflua a função da forma de existência de milhões de seres humanos. A ralé se forma quando o desespero dessas massas passa a ser organizado politicamente para um direcionamento destrutivo de tudo o que pode levar à reflexão e impedir a continuidade desta vida de marionetes voluntárias. O homem sem qualidades deste momento histórico é uma explosiva transmutação desta decadência do sujeito burguês, assomada a um incurável niilismo passivo que a tábula rasa das relações de obrigação por meio do dinheiro criou, além da nova e ampliada experiência do que Lukács chamou de reificação. Não há muito para onde se fugir. A destruição da guerra total passa a ser um canhestro desejo de morte, como escreveu Freud, acerca desta encruzilhada, no seu Por que a guerra?. Não faltaram na literatura outras elaborações embaraçosas desta situação. Na Rússia, por exemplo, o debate sobre o verdadeiro significado histórico do niilismo e seus ‘demônios’, na versão de Dostoiévski, chegou ao ponto de profetizar algumas das consequências que a ausência de qualidades do homem moderno poderia vir a criar[5]. Quando mais tarde o stalinismo tornou um acontecimento pitoresco de província, numa realidade nacional[6], foi possível um entendimento ampliado daquilo que Lukács queria dizer com “só no capitalismo é possível reconhecer na sociedade a realidade“. O leitor não deve esquecer que a Revolução de 1917 foi a solução a Leste desta situação histórica. Sua novidade já nasceu envelhecida, como pôde ser finalmente constatado em 1991. Mas ela está longe de ser distinta do que ocorre no Ocidente e que tem tragado o capitalismo para um dos buracos negros da história.
O que estes autores estudados por Robson de Oliveira não deixam esquecer, é que o devir tautológico é um processo progressivo que resulta na crescente ampliação deste estado explosivo. Não é aleatório para um leitor de Adorno que um estudo desta natureza termine em Beckett. É possível se encontrar nas peças deste uma espécie de mensagem em garrafa lançada ao mar, que guarda a notícia do futuro próximo-passado da morte da terra. Em tal cenário, seus personagens perdidos puderam se furtar, não se sabe como, da hecatombe final, mas não poderão deixar nenhuma pista além de suas impressões deste fim, que, aliás, ignoram as causas e ignoram que seja um fim, apesar de desconfiarem não lhes caber a espera de nada, a não ser a de um infindável prolongamento do vazio. Svetlana Alieksándrovich no seu Vozes de Tchernobil descreve, entre outros testemunhos, a história de uma comunidade de 4 pessoas que se formou na região contaminada pela radioatividade, dentro do deserto da zona de exclusão do acidente nuclear. Não é ficção. Estas pessoas vivem sem maiores medos além dos humanos, como o medo da morte e da fragilidade da velhice. As portas de suas casas podem ficar escancaradas e eles mesmos definem sua existência como um ‘verdadeiro comunismo’. São, em diversos aspectos fundamentais para se analisar a vida moderna, surpreendentemente livres: nenhum Estado ou mercado os importuna ou coage. Porém, esta comunidade não sobreviverá e nem poderá transmitir ao futuro o legada das misérias que são a causa de seu presente venturoso. Alguma consciência de mundo ainda os habita, mas ela é inócua, não pode ser legada, e se for, não podemos fazer nada com sua boa nova, pois ela dependeria de um tempo a ser vivido como o da morte da terra. Esta realidade é um intermundo que se formou dentro do devir tautológico da modernidade. Há nela vida, se bem que consciente de se tratar de um sussurro que se despede. No lado de cá da cortina, a cegueira do sujeito burguês ante este estado de coisas sequer procura sua cura. Ele desistiu das promessas do passado e se empenha em levar ao fim a obra que com ele se iniciou. O capitalismo desde os anos 1980 apenas sustenta sua dinâmica de reprodução por meios especulativos. As formas ficcionais do capital agora não são mais uma ocasional aparição, mas a própria estrutura e o motor que empurra a sociedade ao breu. A acumulação permanente somente pode ser simulada nestas condições e, mesmo assim, exige um grau incomensurável de destruição da natureza e dos laços sociais. Tem sido inviável, nestas condições, delimitar a borda do real neste modo intransponível de funcionamento do fim da acumulação.
Pode parecer estranho se falar de uma irrealidade do real. Por mais esquisito que seja, no limite, este irreal poderia ser um tipo de real. Mas não é o caso. Trata-se do resultado de um absurdo que contou com a cumplicidade de homens e mulheres sem qualidades. A substância que estruturava esta realidade se esvaneceu, porque a sua produção se tornou impossível no atual nível de desenvolvimento tecnológico – como consequência do seu devir bem sucedido.
Já não sei se para hoje Godot virá…

 

[1] Cf. LUKÁCS, G. História e consciência de classe – estudos de dialética marxista. Lisboa: Editora ESCORPIÃO, 1974, p. 35.
[2] Cf. JAMENSON, F. Marxismo e forma – teorias dialéticas da literatura no século XX. São Paulo: Editora Ática, 1985, p. 132.
[3] “[O]s trabalhos privados só atuam, de fato, como membros do trabalho social total por meio das relações que a troca estabelece entre os produtos do trabalho e, por meio dos mesmos, entre os produtores. Por isso, aos últimos aparecem as relações sociais entre seus trabalhos privados como o que são, isto é, não como relações diretamente sociais entre pessoas em seus próprios trabalhos, senão como relações reificadas entre as pessoas e relações sociais entre coisas”. Cf. MARX, K. O capital: crítica da economia política, Livro I, vol. 1. São Paulo: Nova cultural, 1985, p. 71
[4] “O que é para mim pelo dinheiro, o que eu posso pagar, isto é, o que o dinheiro pode comprar, isso sou eu, o possuidor do próprio dinheiro. Tão grande quanto a força do dinheiro é a minha força. As qualidades do dinheiro são minhas […] qualidade e forças essenciais. O que eu sou e consigo não é determinado de modo algum, portanto, pela minha individualidade. Sou feio, mas posso comprar para mim a mais bela mulher. Portanto, não sou feio, pois o efeito da fealdade […] é anulado pelo dinheiro”. MARX, K. Manuscritos econômicos-filosóficos. São Paulo, Boitempo, 2004, p. 159.
[5] Este debate se iniciou com Ivan Turguêniev, no seu romance Pais e filhos. Mais tarde, um DOSTOIÉVSKI já mordido pelo tema, não perdeu a ocasião de um ‘funesto acontecimento’, em que uma célula da organização clandestina Justiça Sumária do Povo executa, em 1869, um estudante que se afastava do grupo por divergências, para escrever Os demônios. A certa altura deste romance, um de seus personagens niilistas proclama: “No mundo só falta uma coisa: obediência. A sede de educação já é uma sede aristocrática. […]. Vamos eliminar o desejo: vamos espalhar a bebedeira, as bisbilhotices, a delação; vamos espalhar uma depravação inaudita; vamos exterminar todo e qualquer gênio na primeira infância” (2004: 407). Sobre as ‘profecias’ de Dostoiévski ver BEZERRA, P. “Um romance e profecia”; in: DOSTOIÉVSKI, F. Os demônios. São Paulo, Editora 34, 2004, pp. 689-697.
[6] No mesmo contexto da passagem anterior (nota supra), o referido personagem dostoiévskiano diz ainda: “No esquema dele [trata-se dos escritos de outro personagem] cada membro da sociedade vigia o outro e é obrigado a delatar. Cada um pertence a todos, e todos a cada um. Todos são escravos iguais na escravidão”. Cf. DOSTOIÉVSKI (2004: 407). O surpreendente é que tudo isso continue atual, mesmo que as ‘realidades nacionais’ sejam outras!

Professor Robson de Oliveira- Professor da Casa de Cultura Francesa da Universidade Federal do Ceará, tradutor-intérprete. Graduado em Letras com habilitação em Português e Francês – e respectivas literaturas. Mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal do Ceará e Doutor em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, tendo estudado o processo de desenvolvimento da subjetividade moderna (forma-sujeito burguesa)

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Libertário - professor de história, filosofia e sociologia .
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