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Refletindo sobre uma questão essencial : a fome – Sergio Granja

arlindenor pedro
Por arlindenor pedro 10 leitura mínima

Vou começar com uma citação do médico e geógrafo pernambucano Josué de Castro (1908-1973), autor de GEOGRAFIA DA FOME, livro clássico publicado em 1946. Quando Josué de Castro foi presidente da FAO, nos anos 1950, ele denunciou: :

“No Brasil, ninguém dorme por causa da fome. Metade porque está com fome e a outra metade porque tem medo de quem tem fome”.

Nem é preciso dizer que ele teve os direitos políticos cassados pelo golpe militar de 1964.

Mas o fato é que a situação não melhorou de lá pra cá. A fome até se agravou. E o aparato de repressão aos famintos (polícia, exército, justiça, etc.) se fortaleceu e se sofisticou para dar uma satisfação aos que temem não a fome, mas os famintos. Junto com a fome, cresceu, então, o encarceramento dos pobres (em sua maioria negros). Para se ter uma ideia, o Brasil tem a quarta maior população carcerária do mundo. Até junho de 2019, a população carcerária no Brasil era de 773.151 presos, número que triplicou desde 2000, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) divulgados nesta sexta-feira (14). A taxa de encarceramento triplicou de 2000 a 2019: a cada 100 mil habitantes, passou de 137 para 368.

Vale considerar que a tendência ao aumento do encarceramento é mundial. 10.2 milhões de pessoas estão encarceradas em todo o mundo. A taxa cresceu em 15 anos de 136 por 100.000 pessoas para 144. E os países que mais encarceram em termos absolutos são Estados Unidos, com mais de 2.2 milhões de prisioneiros (698 presos por 100.000 habitantes em 2013, além de 71.000 crianças em centros de detenção juvenil); China, com mais de 1.6 milhão de presos; Rússia, com 642.444 presos (em 2014) ; e Brasil (em 15 anos, a população carcerária aumentou 160%, atingindo mais de meio milhão de presos em 2014).

Nesse quadro catastrófico, no qual o sistema econômico-social demonstra sua incapacidade para prover as necessidades mais elementares da população, o Banco Mundial chama o Estado a realizar políticas compensatórias focadas nas zonas de carência, além das de contenção através da repressão. Assim, quando, em 2002, dona Ruth Cardoso, no governo FHC, cria a Rede de Proteção Social para unificar a assistência aos famintos, já havia no Brasil vários programas sociais, beneficiando cerca de 5 milhões de famílias. Entre esses programas, o Bolsa-escola, vinculado ao Ministério da Educação, o Auxílio Gás, vinculado ao Ministério de Minas e Energia e o Cartão Alimentação, vinculado ao Ministério da Saúde.

O Programa Bolsa Família, consistiu na unificação e ampliação desses programas, com cadastro e administração centralizados no Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Desde que foi criado por Lula, através da Lei 10.836, de 9 de janeiro de 2004, o Bolsa Família passou de uma clientela de pouco mais de 3 milhões de famílias para cerca de 14 milhões, número estável desde 2012.

O Bolsa Família é citado pela FAO como um dos responsáveis pela saída do Brasil do Mapa Mundial da Fome, em 2014. Outros motivos são o aumento da oferta de alimentos, o crescimento real de 71,5% do salário mínimo, a geração de 21 milhões de empregos e a merenda escolar a 43 milhões de crianças e jovens brasileiros. Entre 2001 e 2014, ocorreu uma redução de 75% da pobreza extrema no Brasil.

Para a OIT, no contexto da crise econômica internacional, o Bolsa Família é uma importante medida anticíclica, que estimula a economia como um todo ao fomentar a demanda de alimentos e produtos de primeira necessidade.

Paul Wolfowitz, presidente do Banco Mundial, considera que: “o Bolsa Familia já se tornou um modelo altamente elogiado de políticas sociais. Países, ao redor do mundo, estão aprendendo lições com a experiência brasileira e estão tentando reproduzir os mesmos resultados para suas populações”

Pois bem, em outubro de 2015, o valor médio do benefício do bolsa-família era de R$ 176,00 mensais e o menor valor, de R$ 35,00 mensais. Isso me faz pensar que a crise estrutural do capital só pode ser verdadeiramente grave. Como pode um país com a estrutura social brasileira, um país radicalmente desigual, com uma situação social miseravelmente extremada, servir de exemplo para quem quer que seja? Ainda mais na boca de um banqueiro internacional como Paul Wolfowitz.

O auxílio emergencial foi aprovado pelo Congresso Nacional e sancionado por Bolsonaro. Foi um benefício que garantiu uma renda de R$ 600 aos brasileiros em situação vulnerável durante a pandemia do Covid-19, já que muitas atividades econômicas foram gravemente afetadas. Isso propiciou a maior transferência de renda da história do Brasil e alavancou a popularidade de Bolsonaro. Entusiasmado com o sucesso do Auxílio Emergencial, Bolsonaro propôs o Auxílio Brasil, como o maior programa social do mundo.

O Auxílio Brasil reformula todos os programas sociais do Governo Federal, em especial o Bolsa Família, com previsão de aumento no valor pago aos mais vulneráveis, Além do Auxílio Brasil, que substituiu o Bolsa Família com um benefício mínimo de R$ 400, e que pode totalizar um gasto de R$ 90 bilhões em 2022 (por acaso, ano eleitoral), Bolsonaro tem acenado com outras medidas para famílias inscritas no Cadastro Único, porta de acesso a benefícios sociais do governo. Mas o aumento no auxílio vai depender da aprovação da PEC dos Precatórios, que altera as regras atuais para os pagamentos dos precatórios judiciais.

Eu acho que devemos apoiar todo gasto social. Mas temos que ser radicais. Ser radical é ir à raiz dos problemas. E qual é o problema do capitalismo hoje? Como aponta o sociólogo italiano Domenico De Masi, “a capacidade de produzir cada vez mais bens e serviços com cada vez menos trabalho humano” é um traço característico do capitalismo atual. Temos, em consequência, um desemprego estrutural que só tende ao agravamento. Qual é a solução? A solução é simples: a redução da jornada de trabalho. O aumento de produtividade deve redundar em redução da jornada de trabalho e não em redução do número de trabalhadores empregados. A consigna é trabalhar menos para que todos trabalhem.

Isso está relacionado à dialética necessidade versus liberdade.

No Anti-During, Engels diz que “Hegel foi o primeiro a expor com justeza as relações da liberdade e da necessidade”. Para Hegel, segundo Engels, “a liberdade é o conhecimento da necessidade”. E “a necessidade somente é cega enquanto não é compreendida”.

Marx, por sua vez, diz que “o reino da liberdade começa no ponto em que termina o trabalho determinado pela necessidade”. Para ele, “o homem civilizado tem, tal como o selvagem, que lutar contra a natureza para satisfazer as suas necessidades, tem que o fazer em todas as formas de sociedade e em todos os modos de produção possíveis; com o seu desenvolvimento, esse reino da necessidade natural e as necessidades aumentam simultaneamente: mas as forças produtivas que as satisfazem, essas alargam-se de um modo semelhante. Neste domínio, a liberdade só pode consistir no seguinte: o homem em sociedade, os produtores associados, determinam racionalmente essa troca material com a natureza, submetem-na ao seu controle coletivo, em vez de serem por ela dominados como por um poder cego; realizam-na com os esforços tão reduzidos quanto possível, nas mais dignas condições da sua natureza humana e nas mais adequadas a essa natureza.

Mas continua a substituir um reino da necessidade. É para além desse reino que começa o desenvolvimento das potencialidades do homem, que é por si próprio a sua finalidade, que é o verdadeiro reino da liberdade, mas que só pode desenvolver-se apoiando-se nesse reino da necessidade. A redução do número de horas de trabalho diário é a condição fundamental”.

Eu quero chamar a atenção para essa formulação marxiana: “a redução do número de horas de trabalho diário é a condição fundamental” do reino da liberdade.

Sergio Granja

Carioca de 1948. Iniciou sua militância em 1965, no PCB. Foi da ALN, exilado político, mestre em Literatura Brasileira, é professor da rede estadual do RJ.

Sergio Granja

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Libertário - professor de história, filosofia e sociologia .
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