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Prologo à Segunda Edição de “O 18 Brumários de Luiz Bonaparte “- Herbert Marcuse*

arlindenor pedro
Por arlindenor pedro 20 leitura mínima

A releitura da obra de Karl Marx , “ O 18 Brumários de Luiz Bonaparte “ , torna-se essencial no agravamento da crise brasileira, dada ao aprofundamento do colapso da economia e do marasmo político advindo do presidente e os generais que lhes dão sustentação , com suas ameaças de golpe . Parece- nos que personagem Bolsonaro, no momento na Presidência da República , está se apresentado como incapaz de aprofundar as reformas políticas e sociais de que necessitam as elites brasileiras neste momento de crise do capitalismo. Mas, detentor ainda de boa passagem entre os militares e alguns segmentos econômicos que dão sustentação ao governo, insiste em permanecer na cena, levando o país a uma crise política sem precedentes. Sem querer fazer paralelo , bom é voltar aos acontecimentos de crises do passado . E nada melhor do fato histórico que foi analisado por Marx na análise do golpe bonapartista do sobrinho de Napoleão.

Deixamos então esta tarefa aos cuidados do leitor, que melhor saberá apreender a análise daquela realidade histórica do passado, aplicando os ensinamentos ali existentes para o entendimento da realidade brasileira em curso .

Mas, na Edição feita pela Editora Boitempo de onde de colhemos este texto, deste clássico da literatura política, emerge o Prólogo feito pelo pensador Herbert Marcuse e que achamos poderá contribuir, talvez como uma chave de leitura, para a compressão desta obra marxista . Daí a nossa intenção de publica-lo . Vale a pena a leitura . Um grande abraço .

Arlindenor Pedro

Serra da Mantiqueira, abril de 2021

A análise que Marx faz do processo de evolução da Revolução de 1848 para o domínio autoritário de Luís Bonaparte antecipa a dinâmica da sociedade burguesa tardia: a liquidação do seu período liberal que se consuma em razão da sua própria estrutura. A república parlamentarista se transforma num aparato político-militar encabeçado por um líder “carismático” que tira das mãos da burguesia as decisões que essa classe não consegue mais tomar e executar por suas próprias forças. Simultaneamente sucumbe, nessa fase, o movimento socialista: o proletariado sai de cena (por quanto tempo?). Tudo isso já é século XX – mas é século XX na perspectiva do século XIX, que ainda não conhece o horror do período fascista e pós fascista. Esse horror exige uma correção das sentenças introdutórias de O 18 de brumário: os “fatos e personagens da história mundial” que ocorrem, “por assim dizer, duas vezes”, na segunda vez, não ocorrem mais como “farsa”. Ou melhor: a farsa é mais terrível do que a tragédia à qual ela segue.

A república parlamentarista incorre numa situação em que só resta uma escolha à burguesia: “Despotismo ou anarquia. Ela, na turalmente, optou pelo despotismo”. Marx conta a anedota do Concílio de Constança, segundo a qual o cardeal Pierre d’Ailly respondeu aos defensores da reforma dos costumes: “O único que ainda pode salvar a Igreja católica é o diabo em pessoa e vós rogais por anjos”.Hoje nem mesmo o desejo de que os anjos intervenham continua na ordem do dia. Mas como se chegou a essa situação em que a sociedade burguesa só pode ainda ser salva pela dominação autoritária, pelo exército, pela liquidação e traição das suas promessas e instituições liberais? Tentemos resumir o universal que Marx torna manifesto em toda parte nos acontecimentos históricos particulares.

“A burguesia tinha a noção correta de que todas as armas que havia forjado contra o feudalismo começavam a ser apontadas contra ela própria, que todos os recursos de formação que ela havia produzido se rebelavam contra a sua própria civilização, que todos os deuses que ela havia criado apostataram dela. Ela compreendeu que todas as assim chamadas liberdades civis e todos os órgãos progressistas atacavam e ameaçavam a sua dominação classista a um só tempo na base social e no topo político, ou seja, que haviam se tornado ‘socialistas’.”

Essa inversão é manifestação do conflito entre a forma política e o conteúdo social da dominação da burguesia. A forma de dominação política é a república parlamentarista, mas em países “com estrutura de classes evoluída” e modernas condições de produção, a República “só pode representar a forma de revolução política da sociedade burguesa e não a sua forma de vida conservadora”. Os direitos à liberdade e à igualdade conquistados contra o feudalismo, que são definidos e instaurados nos debates, compromissos e decisões parlamentares, não se deixam circunscrever ao âmbito do Parlamento e dos limites por ele traçados: eles são generalizados nas lutas e nos interesses de classe extraparlamentares. A própria discussão parlamentar na sua forma liberal-racional (no século XX, ela também já foi descartada e transformada em passado) “transformou em ideias universais” cada interesse, cada instituição social: o interesse particular da burguesia tomou o poder como interesse geral da sociedade. Mas a ideologia, tornando-se oficial, compele à sua realização. Os debates no Parlamento têm continuidade na imprensa, nos bares e salões, na “opinião pública”. “O regime parlamentarista submete tudo à decisão das maiorias; como poderiam as maiorias que estão além do Parlamento querer não decidir? Se vós que estais no topo do Estado tocais o violino, por acaso não esperais que os que estão lá embaixo dancem? “E “os que estão lá embaixo” são o inimigo de classe ou os não privilegiados da classe burguesa.

Aqui liberdade e igualdade têm um sentido bem diferente – um sentido que ameaça a dominação estabelecida. A generalização e a realização da liberdade não são mais do interesse da burguesia; isso já é “socialismo”. Onde se originou essa dinâmica nefasta? Onde se pode captá-la? O espectro ameaçador do inimigo parece estar em toda parte, inclusive no próprio arraial. A classe dominante se mobiliza para liquidar não só o movimento socialista, mas também as suas próprias instituições, que entraram em contradição com o interesse da propriedade e do negócio: os direitos civis, a liberdade de imprensa, a liberdade de reunião, o direito ao sufrágio universal foram sacrificados a esse interesse para que a burguesia pudesse, “sob a proteção de um governo forte e irrestrito, dedicar-se aos seus negócios privados. Ela declarou inequivocamente que estava ansiosa por desobrigar-se do seu próprio domínio político para livrar-se, desse modo, das dificuldades e dos perigos nele implicados”. O Poder Executivo se converte em poder autônomo.

Mas como poder autônomo ele precisa de legitimação. Ao promover a secularização da liberdade e da igualdade, a democracia burguesa põe em perigo o caráter abstrato, transcendente, “interior” da ideologia e, desse modo, a tranquilidade trazida pela diferenciação essencial entre ideologia e realidade – a liberdade e a igualdade interiores querem exteriorizar-se. Na sua ascensão, a burguesia mobilizou as massas e reiteradamente as traiu e abateu. A sociedade capitalista em desenvolvimento precisa contar de modo crescente com as massas, integrá-las na normalidade econômica e política, torná-las capazes de pagar e (até certo ponto) inclusive de governar. O Estado autoritário necessita de uma base democrática de massas; o líder deve ser eleito pelo povo, e ele o é. O direito ao sufrágio universal, que a burguesia nega de facto e depois também de iure, torna-se a arma do Poder Executivo autoritário contra os grupos renitentes da burguesia.

Em O 18 de brumário, Marx oferece uma análise exemplar da ditadura plebiscitária. Naquela época, quem alçou Luís Bonaparte ao poder foram as massas dos pequenos camponeses. O seu papel histórico no presente foi projetado pela análise marxiana. A ditadura bonapartista não conseguiu eliminar a miséria do campesinato e este descobre o seu “aliado e líder natural no proletariado citadino, cuja missão é a subversão da ordem burguesa”. E vice-versa: nos camponeses desesperados, “a revolução proletária recebe o coro sem o qual o seu canto solo se transforma em lamento fúnebre em todas as nações camponesas”.

O compromisso da dialética marxiana com a realidade impede o seu compromisso com o dogma: talvez em nenhuma outra parte a distância entre a teoria marxiana e a atual ideologia marxista seja tão grande quanto no reconhecimento da “abdicação” do proletariado em um dos “anos mais esplêndidos de prosperidade industrial e comercial”. A anu- lação do direito ao sufrágio universal excluiu os trabalhadores “de toda e qualquer participação no poder político”. “Ao se deixarem conduzir pelos democratas frente a um acontecimento como esse e ao esquecerem o seu interesse revolucionário por força de uma sensação momentânea de bem-estar, eles renunciaram à honra de ser um poder conquistador, submeteram-se à sua sina, comprovaram que a derrota de junho de 1848 os havia incapacitado para a luta por muitos anos e que o processo histórico, num primeiro momento, necessariamente voltaria a desenrolar-se por cima das suas cabeças”.

Já em 1850, diante do Comitê Central de Londres, Marx havia se voltado contra uma minoria que, “no lugar da visão crítica”, colocava uma “visão dogmática” e, no lugar da avaliação materialista, colocava uma avaliação idealista da situação

“Enquanto nós dizemos aos trabalhadores: ‘Vós deveis arrostar quinze, vinte, cinquenta anos de guerras civis e entre nações para transformar não só as condições imperantes, mas também a vós mesmos e capaci- tar-vos para a dominação política’, vós dizeis, ao contrário: ‘Devemos chegar imediatamente ao poder…’”

A consciência da derrota e até do desespero fazem parte da teoria e da sua esperança. A fragmentação do pensamento – sinal da sua autenticidade frente à realidade fragmentada – determina o estilo de O 18 de brumário: contra a vontade de quem a escreveu, a obra se torna alta literatura. A linguagem torna-se conceito da realidade, o qual, mediante a ironia, resiste ao horror dos eventos. Diante da realidade, nenhuma fraseologia, nenhum clichê – nem mesmo os do socialismo. Na medida em que os homens traem, vendem a ideia da humanidade e chacinam ou trancafiam os que lutam por ela, a ideia como tal deixa de ser pronunciável; o escárnio e a sátira constituem a aparência real da sua verdade. A sua figura se encontra tanto na “sinagoga socialista” que o governo instaura no Palácio de Luxemburgo quanto na carnificina das jornadas de junho. A mistura de estupidez, ganância, baixaria e brutalidade que perfaz a po- lítica deixa a seriedade sem fala. O que acontece então é cômico: cada partido se apoia sobre os ombros do primeiro que está à sua frente até que este o deixa cair, então se apoia sobre o seguinte.

Assim se procede da esquerda até a direita, do partido proletário até o Partido da Ordem. “O Partido da Ordem encolheu os ombros, deixou os republicano-burgueses caírem e se jogou nos ombros das Forças Armadas. Ele ainda acreditava estar sentado sobre os ombros destas quando, numa bela manhã, deu-se conta de que os ombros haviam se transformado em baionetas. Cada um desses partidos bateu por trás naquele que avançava e se curvou para trás para apoiar-se naquele que retrocedia. Não admira que, nessa pose ridícula, cada um desses partidos tenha perdido o equilíbrio e, depois de ter rasgado as suas inevitáveis caretas, estatelado-se no chão fazendo cabriolas esquisitas.”

Isso é cômico, mas a própria comédia já é a tragédia, na qual tudo é jogado fora e sacrificado. Tudo ainda é século XIX: passado liberal, pré-liberal. A figura do terceiro Napoleão, que Marx ainda acha ridícula, há muito já deu lugar a outros políticos ainda mais temíveis; as lutas de classe se transformaram e a classe dominante aprendeu a dominar. O sistema dos partidos democráticos foi abolido ou reduzi- do à unidade que se faz necessária para não pôr em risco a sociedade no que se refere às suas instituições estabelecidas.

E o proletariado integrou-se na generalidade das massas trabalhadoras dos grandes países industrializados, que carregam e mantêm o aparato de produção e dominação. Este força a sociedade a unir-se numa totalidade administrada, que mobiliza as pessoas e o país em todas as dimensões contra o inimigo. Somente estando sujeita à administração total, que a qualquer momento pode transformar o poder da técnica no poder dos militares, a máxima produtividade em destruição definitiva, essa sociedade é capaz de se reproduzir em escala ampliada e estendida, pois o inimigo não está só fora dela, mas também dentro, como a sua própria possibilidade: como pacificação da luta pela existência, como eliminação do trabalho alienado. Marx não chegou a antever com que rapidez e quão próximo o capitalismo chegaria dessa sua possibilidade e como as forças que o detonariam se conver- teram em instrumentos da sua dominação.

Nesse estágio, a contradição entre forças produtivas e relações de produção se tornou tão ampla e tão manifesta que não mais podia ser dominada racionalmente, não mais podia ser expressa. Não há véu tecnológico, não há véu ideológico que possa continuar a encobri-la. O único modo de manifestar-se que lhe resta é a contradição nua e crua, a irracionalidade convertida em racionalidade; só uma cons- ciência falsa pode ainda suportá-la, uma consciência que se tornou indiferente à própria diferença entre verdadeiro e falso.

Ela encontra a sua expressão autêntica na linguagem orwelliana (que Orwell com excessivo otimismo projetara para 1984). Nela, a escravidão é denominada liberdade, a intervenção armada, autodeterminação, tortura e bombas incendiárias são “conventional techniques” [técnicas con- vencionais], o objeto é sujeito. Nela, fundem-se política e publicity [publicidade], negócio e filantropia, informação e propaganda, bom e ruim, a moral e a sua eliminação. Em que antilinguagem a razão ainda pode se expressar nesse caso? O que se encena aí não é mais uma sátira, e, diante da seriedade do terror, a ironia se transforma em cinismo. O 18 de brumário começa lembrando Hegel: a análise marxiana ainda estava comprometida com a “razão não histórica”: dela e das suas manifestações no âmbito do ser-aí a crítica extraiu a sua força.

Mas a razão com a qual Marx estava comprometido naquela época tampouco estava “aí”: ela se manifestou somente na sua negatividade e nas lutas daqueles que se sublevaram contra o existente, que protestaram e foram derrotados. A eles o pensamento marxiano permaneceu fiel – em face da derrota e contra a razão dominante. E da mesma forma, na derrota da Comuna de Paris de 1871, Marx manteve a esperança para os desesperançados. Nos dias atuais, em que a própria irracionalidade se converteu em razão, seu único modo de ser é a razão da dominação.

Assim, ela continua sendo a razão da exploração e da repressão inclusive quando os dominados colaboram com ela. E, em toda parte, ainda há aqueles que protestam, que se rebelam, que combatem. Até mesmo na sociedade da superabundância eles estão aí: os jovens, que ainda não desaprenderam a ver, a ouvir e a pensar, que ainda não abdicaram, e aqueles que ainda são as vítimas da superabundância e que dolorosamente estão apenas começando a aprender a ver, ouvir e pensar. É para eles que O 18 de brumário foi escrito, é para eles que ele ainda não envelheceu.

Herbert Marcuse

*Originalmente publicado como epílogo em Der achtzehnte Brumaire des Louis Bona- parte (Frankfurt, Insel, 1965, p. 143-50). Aqui publicado com a permissão de Peter Marcuse, executor literário de Herbert Marcuse, cuja autorização é necessária para qualquer publicação posterior. Materiais complementares de trabalhos inéditos de Herbert Marcuse, agora no arquivo da Universidade Goethe, em Frankfurt, estão sen- do publicados em inglês pela editora Routledge, em uma série de seis volumes, orga- nizada por Douglas Kellner, e em alemão pela editora Klampen, também em uma série de seis volumes, organizada por Peter-Erwin Jansen. Todos os direitos de publi- cação são de propriedade do executor literário. (N. E.)

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Libertário - professor de história, filosofia e sociologia .
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