
Você corta um verso
Eu escrevo outro
Você me prende vivo
Eu escapo morto
De repente, olha eu de novo
Perturbando a paz
Exigindo o troco
Vamos por aí, eu e meu cachorro
Olha o Verso, olha o velho
Olha o moço chegando
Que medo você tem de nós
Olha, aí!
(Maurício Tapajós e
Paulo César Pinheiro)
I-INTRODUÇÃO
Estamos tão acostumados a falar e ouvir falar sobre as “mazelas” e “carências” das “camadas mais empobrecidas” da população, que, geralmente, nossas reflexões teóricas, de forma sofisticada, tendem a repetir essa compreensão apontando para uma análise que lança “sobre” a população, ainda que pretendendo estar “com” a população.
Como acreditamos que tal efeito não é natural, este trabalho busca apontar alguns processos de subjetivações que se tornaram hegemônicos quando nos referimos àqueles que vivem na posição de subalternos. Assim, queremos, também, contribuir para desnaturalizar maneiras de pensar a vida de parcelas da população, e o saber produzido no percurso de suas experiências de vida, cuja produção dominante nos faz acreditar estarmos diante de um saber precário, insuficiente, inferior.
Esta tarefa se constitui em desafio, pois, como nos alerta Martins (1986):
(…) o modo capitalista de pensar, enquanto modo de produção de ideias, marca tanto o senso comum quanto o conhecimento científico. Define a produção das diferentes modalidades de ideias necessárias à produção das mercadorias nas condições da exploração capitalista, da coisificação das relações sociais e da desumanização dos homens. Não se refere estritamente ao modo como pensa o capitalismo, mas ao modo de pensar necessário à reprodução do capitalismo, à reelaboração das suas bases de sustentação: ideológicas e sociais.
(p. IX)
Nossa investigação vem buscando caminhos que nos levem a ter um conhecimento maior das estratégias que a população vai encontrando para enfrentar as situações adversas com que se defronta, quando nos falam desses enfrentamentos.
As falas que fazem parte desse artigo são de moradores (as) de Realengo, bairro da periferia de uma grande metrópole, espaço da luta e sonho de pessoas anônimas e dos visíveis invisíveis.
Realengo situa-se na Zona Oeste do Município do Rio de Janeiro, a 40 minutos do centro da cidade, cortado pela linha férrea Central do Brasil, a qual funciona como orientação espacial. Em Realengo se está à direita ou à esquerda da linha do trem numa direção centro-periferia da cidade. A Avenida Brasil, mesmo atravessando a região, não produz o mesmo efeito. Costuma-se dizer: “lá para os lados da Avenida Brasil”, já que esta, como a linha férrea, não “divide” o bairro.
Entendemos que o espaço da cidade também é socialmente produzido, guardando os espaços de periferia uma relação com o núcleo da cidade (sede do poder) que não é simplesmente mecânica entre ricos e pobres, mas sofre modificações de aparência e conteúdo como resultado dos interesses que estão colocados nos diferentes momentos da história.
Ressaltamos que procuramos fugir das análises convencionou-se chamar de campo macropolítico e, como uma escada, ir ao campo da micropolítica. Recorremos a Guattari que nos alerta para o fato de que:
(…) se a democracia talvez se expresse a nível das grandes organizações políticas e sociais, ela só se consolida, só ganha consistência, se existir, no nível da subjetividade dos indivíduos e dos grupos, em todos os níveis moleculares, novas práxis, novas atitudes, novas sensibilidades, que impeçam a volta das velhas estrutura”. (1986:p.61)
II- A PRODUÇÃO DA INCOMPETÊNCIA POPULAR
Em 1994, quando trabalhava com responsáveis por alunos de escolas situadas em Realengo, uma dessas mulheres fez o seguinte relato:
Aí ela me chamou naquela sala pequena e perguntou: Quem te orientou para fazer isso? Eu respondi: Foi da minha cabeça. Ela respondeu que eu não tinha tido a ideia não, era coisa de alguém e ela ia descobrir. Perguntei se ela estava dizendo que eu não tinha capacidade. Ela nem respondeu, me olhou e disse que ia chamar as mães, fazer uma fila, perguntar uma a uma de quem tinha saído a ideia e descobrir a verdade. Disse que eu tinha traído ela.
Relacionei a cena relatada com situações vividas nos recentes anos de chumbo atravessados pelo Brasil; aproximei-a dos diálogos de Menocchio, relatado por Ginzburg, com os representantes da Igreja, pensei que poderia estar em algum livro de Foucault. Porém, longe de qualquer visibilidade social, ela se passou em uma pequena sala de uma escola pública de um bairro de periferia da cidade do Rio de janeiro. Seus protagonistas foram um profissional da escola e uma mãe de aluno. O “crime” cometido? Encabeçar um abaixo-assinado solicitando que duas outras professoras, diferentes das que já tinham se apresentado como candidatas para eleição de diretores(as) da escola se apresentassem para concorrer.
Longos anos de trabalho junto às escolas públicas do Município do Rio de Janeiro me fazem afirmar que nos encontramos frente a situações como essa não se constitui em novidade. Essas cenas miúdas ocorrem todos os dias e produzem a (re)atualização de relações de poder que têm servido para reificação do mito de que a população não sabe participar da vida pública, precisando ter alguém que tutele suas ações e iniciativas (BENEVIDES, 1991).
Além da desqualificação da população empobrecida, essas situações trazem uma ameaça velada àquele(a) que rompe com a ordem tacitamente estabelecida de que “não é qualquer um que pode dizer qualquer coisa a qualquer outro em qualquer ocasião e em qualquer lugar” (CHAUÍ, 190: p.2).
A situação vivida por essa mãe não significa somente um fato miúdo, ela penaliza e obstrui a possibilidade de se produzir uma cultura onde a cidadania faça parte da vida das pessoas. Cidadania só pode ser entendida numa produção diária, não havendo meio termo para essa questão: ou se é cidadão(ã) ou n, pois “não se é cidadão(ã).
Os efeitos dessas ações nos permitem dar sentido substantivo à categoria de subalterno que temos buscado utilizar como ferramenta de análise, pois “é certamente mais intensa e mais expressiva que a simples categoria de trabalhador (…) e prefigura a diversidade das situações de subalternidade, a riqueza histórica, cultural e política” (MARTINS, 1989:p. 98).
Queremos salientar que a categoria de subalterno não significa uma mera substituição linguística à de trabalhador, e por extensão à de classe trabalhadora. Aqueles que assim o fazem, na nossa compreensão, não só cometem uma troca vulgar, como desistoricizam o surgimento dos trabalhadores enquanto classe. O que nos parece mais propício é a constatação da complexidade da sociedade de nossos dias, o que nos leva a não mais estarmos diante de organização clássica da sociabilidade capitalista. De outro modo, não temos uma “classe operária homogênea, cuja situação dentro da relação capital-trabalho lhe dava um papel de protagonista por excelência dos conflitos ocorridos nessa relação” (BORON,1994:p.227)
Retomando o fato acima resgatado, percebemos que a ação demarca lugares diferenciados que busca despotencializar o outro diante da vida, modelá-lo segundo normas e regras necessárias à sustentação das relações hierárquicas da sociedade capitalista, modelo hegemônico desse final de milênio.
Como entendemos que a produção de subalterno não se dá somente nas relações de trabalho, o encontro na sala pequena também produz esse lugar. Ali, a posição desigual de poder foi desocultada pela fala, pela ameaça do “interrogatório” de outros responsáveis; ingredientes na produção do medo como consequência de uma ação participativa, fazendo com que um triplo esforço se dê: lutar para romper com o lugar de subalternidade, lutar contra a interiorização do sentimento de vergonha de suas ações não serem consideradas corretas e contra o medo de que, diante das condições de desigualdade, possa acontecer algo ao filho, como extensão de seu ato rebelde, expressado na fala da mulher/mãe: “ medo, vergonha(…) porque eu não tenho formação nenhuma, medo de falar errado, medo das pessoas não entenderem, medo de prejudicar meu filho”.
Começa a ser percebida, a partir desse confronto, que tipo de participação é desejada e esperada, como a presença dos responsáveis na escola é de fato considerada. No contato diário, ela, como muitas mães que mandam seus filhos à escola, elaborou suas experiências frente à escola: os pequenos favores, a solicitação humilde de um direito, a rejeição percebida, a participação limitada e concedida (ALMEIDA,1995).
Foi, ainda, no contato diário que essa relação perdeu a calma (pura aparência) e transformou-se em embate, com as experiências do viver passando por uma reelaboração das circunstâncias em que ocorreram e dos efeitos produzidos, transformando-se no vivido (reflexão sobre o viver). O movimento que se dá nessa reelaboração. produz um conhecimento mais crítico da realidade (SADER, 1988).
A fala contém uma denúncia que transcende o próprio fato. Demonstra como se articulam, enquanto estratégia, o saber e o poder expressos através do discurso, através de sutis ou não tão sutis ações, utilizadas como arma de exclusão, e que acabam por produzir na população um efeito de (re)conhecimento dos lugares hierarquizados de quem pode e de quem não pode empreender determinadas ações. O seu lugar é do “não pode”.
Cumpre-se, num dia qualquer, de um bairro de periferia do Rio de Janeiro, o que, estrategicamente, começou a ser produzido no século XVIII: a retirada da importância e do prazer com a vida pública, substituída pela valorização do espaço privado. Numa pequena escola, uma ação reafirma e fortalece, uma ação reafirma e fortalece, uma ação reafirma e fortalece o intimismo como forma de estar no mundo, produz a dicotomia entre a vida íntima e a vida pública, desqualifica o saber da população
(SENNETT,1989).
E, entre essas pessoas e o mundo, será produzido um exército de “especialistas”, donos dos saberes parcelados, que lhes dirão como cada um é, como deve viver, sentir, falar, amar. Legiões de antropólogos, sociólogos, psicólogos, entre outros, desse homem ou mulher, apartado dos meios de ser sujeito de sua vida, se nutrirão.
A conversa particularizada cumpre, também, a função de proteção ao lugar do profissional, legitimado como competente, e cria a possibilidade de se perguntar: “Mas, foi assim que aconteceu?” Velha desconfiança, incorporada no dia a dia dos subalternos, que além de passarem situações de humilhação, têm de lutar contra a possibilidade de duvidarem de seus relatos. Preocupação que se expressa na fala que nos diz: “Eu dou minha palavra, que eu não tenho cara pra mentir”. O interrogatório funcionando como prerrogativa de quem tem autoridade para fazê-lo, como um poder abstrato que se eleva acima dos homens e mulheres e que não tem autoria.
Nessas produções cotidianas o que percebemos é que são “ambos…protagonistas da tragédia(…) que nos fragiliza a todos, nos empobrece e nos mutila (…) porque preenche com a figura da vítima o lugar do cidadão” (MARTINS,1993:p.13), pois quando ocupante do lugar tão bem-marcado do exercício do poder vence o “subversivo”. Nesse momento, tem-se a certeza de que o “mundo é ruim. E que o melhor, o ideal mesmo, é a orientação para casa e para família e nunca para a rua (…) onde a vida se manifesta na injustiça e crueza” (DA MATTA, 1990:p.172).
Movimentos paulatinos vão colocando o corpo numa “forma social” que o mutila e o aprisiona, submetido a uma modelagem que busca definir, quando nega tal definição, aqueles que, ironicamente, encontrar-se-ão incluídos no processo histórico pela exclusão a que estão submetidos. Produz-se constantemente uma das formas de violência mais difíceis de se lidar: aquela que tece mitos e crenças sobre a população subalternizada, que faz com que tais mitos façam parte do senso comum, que se tornem naturais.
Produções que buscam conciliar democracia e desigualdade, desconsideram a divisão social em classes antagônicas (análise, hoje, considerada, por muitos ultrapassada), privilegiando o talento como único critério de acesso social, sentenciam que aqueles que fazem parte do povo são incapazes, por suas próprias dificuldades (BENEVIDES, 1991).
Remexendo nesse terreno, por vezes pantanoso, em que vai sendo produzida a incompetência da população, procurando desvendar os mecanismos que a produzem, percebemos como é atual a forma de pensar que leva os homens e mulheres a aceitarem como verdade irrefutável a velha lógica capitalista que diz: a) os homens não nascem iguais; b) alguns, com seu próprio esforço, chegarão aos níveis sociais e econômicos mais altos; c) a ascensão social de alguns deve corresponder `a aceitação e a solidariedade de todos, já que todos têm as mesmas oportunidades ( PATTO, 1991).
Já que o sistema econômico, social, político e cultural típico do capitalismo tem como ideário a igualdade e a liberdade, as desigualdades, que, porventura, existam, devem ser responsabilidade do próprio homem, década homem em si, terminando por culpabilizar a própria vítima. “A culpabilização é uma função da subjetividade capitalística” (GUATTARI, 1986: p.40).
Queremos afirmar, nesse texto, que nossas reflexões estão longe de qualquer fatalismo, fugimos de considerar as produções da sociabilidade capitalista como um caminho previamente determinado por alguma “mente maquiavélica” que se sobrepõe às ações dos homens. Vemos em suas produções contradições tais que tornam possível o estabelecimento de áreas de escape, linhas de fuga (GUATTARI & ROLNIK, 1986). Queremos também escapar, porque já seria uma outra armadilha, das concepções que colocam a população como incapaz e conformada, ou daquelas que a colocam como vítima indefesa de um Estado vilão.
De fato, o que se observa é que a população, no seu cotidiano, vai encontrando estratégias de luta em situações adversas e, diante de uma direção de escola que de maneira distante e superior anuncia a ausência de vaga um pouco, assume-se um comportamento mais submisso, por vezes chora-se um pouco, e a vaga é conseguida.
Vários são os recursos utilizados para enfrentar situações que negam direitos, privatizam o que é público, impõem a hierarquia. Diante de circunstâncias que têm na exclusão o seu registro, a população vai tecendo formas de intervir, de participar, de denunciar e partir os elos da rede que a silencia.
Tomemos como outro exemplo da produção de saber por parte da população subalternizada a questão dos diretos, onde encontramos a diferença sutil e ao mesmo tempo fundamental, que suas falas nos apontam, entre direitos humanos e direitos sociais.
Se existem direitos humanos, com caráter universal, estes não se materializam nos direitos sociais que continuam a ser negados. Se a escolaridade é um direito humano, como fazê-la existir na concretude quando há peregrinação por uma vaga nas portas das escolas? Se o direito de ir e vir é universal, como fazê-lo ter correspondência na vida social se o trabalhador mora distante de seu trabalho e seu dinheiro acaba antes do final do mês? Se a saúde é um direito, é negado quando médicos são obrigados, pela absoluta falta de condições, a escolher quem terá atendimento, o que, algumas vezes, pode significar a diferença entre a vida e a morte.
Desta maneira, a vida dos subalternos, mesmo em situações, para nós, insuportáveis, torna-se intensa, se percebida como denunciadora das relações político-econômicas, da precariedade dos serviços públicos que lhes são oferecidos, do “imprevisto” que atravessa o seu dia a dia (SAIDON,1991). O discurso da falta e da carência não nos interessa, urge engendrar o coletivo enquanto intensidade e possibilidades múltiplas. Poderemos (quem sabe?) começar a produzir um movimento contra hegemônico, quando começarmos a considerar as “massas desorganizadas” como possuidoras de formas de organização próprias e subversivas.
Organizadas, por possuírem a força da resistência dos despossuídos frente ao mundo que os cerca, e subversivas, pela possibilidade de não só inverterem a lógica capitalista, mas a subverterem de fato, ao passarem da força de resistência para a força política de ação.
Queremos fugir, também, da “tentação otimista” e darmos uma face simplesmente heroica as ações da população subalternizada, por se encontrarem em permanente situação de desafios. Consideramos que o grande desafio está colocado para quem trabalha com essa parcela da população; perceber as diversas dimensões que atravessam o cotidiano de suas vidas.
Por estarmos mergulhados num processo de temporalidade linear, onde se pensa o passado, o presente e o futuro como sucessão previsível de fatos e situações, onde o hoje é visto como o amanhã garantido e previsto, nos acostumamos a ter um olhar sobre os grupos subalternizados a partir dessa lógica. Com isso se estabelece, mais uma vez, uma área de atrito, já que os subalternos vivem uma “temporalidade permeada pela imprevisibilidade que marca suas condições de vida” (CUNHA, 1994:p. 31)
No nosso caminhar encontramos na fala do Presidente de uma Associação de Moradores, em Realengo, a compreensão dessas dimensões temporais.
A única garantia que nós temos é o Estatuto de Registro da Comunidade, que é registrado no cartório de pessoas jurídicas. Nós temos direito, aqui, ao que construímos, temos como nosso. Se eles resolverem fazer alguma coisa aqui dentro e a comunidade tiver que ceder o terreno, nós não vamos ficar de mãos vazias. Temos que ser indenizados, ir para uma área do nosso gosto. Como tem acontecido com várias comunidades que são removidas. Junta àquele conselho e nós decidimos o lugar que queremos, perto do lugar onde morávamos.
Continua sua análise da comunidade onde mora:
A situação não era boa como está agora, nós não tínhamos iluminação, nós não tínhamos pavimentação, não tínhamos reflorestamento, não tínhamos sede, não tínhamos praça. Hoje temos tudo, conseguido na luta.
Podemos interpretar essas falas simplesmente como uma atitude de conformismo diante das circunstâncias que se apresentam ou como um comportamento que termina por se adaptar às determinações objetivas?
Nos parece que não. Podemos afirmar, o que, de certa forma, rompe com as ideias de conformismo, que o lidar com o imprevisto tece e produz relações outras que, se não impedem situações de exclusão, mantém a possibilidade de viver a vida de hoje, comparada com um passado que foi muito pior, e não com um futuro que não pode ser previsto.
Nesse quadro de desqualificação da população, o não saber, geralmente, não é visto como consequência de relações em que a informação tem valor de mercado, e a separação entre os que sabem e os que não sabem significa o poder de uns sobre os outros. Se o conhecimento se dá pelo trabalho reflexivo, o presente nos processos de apropriação das experiências do viver imediato, a grande dificuldade é acreditar que a população também produz e sistematiza conhecimento, de que a população subalternizada é capaz de pensar de maneira reflexiva.
É tanta a dificuldade de acreditar nesse fato que até na ideia de que “é preciso considerar “o conhecimento que a população traz para a escola” está embutida, na maioria das vezes, uma visão hierarquizada do conhecimento e uma visão socializadora da escola. Ainda aí trabalha-se com dois códigos de conhecimento: um que é considerado “legítimo”, “verdadeiro”, e, outro que é considerado “menor”, “incompleto” (CHAUÍ, 1990)
Os desencontros entre profissionais e população se devem muito mais a uma dificuldade por parte dos profissionais do que da população fala e porque fala, já que a referência é o conhecimento do profissional, seus códigos de comportamento. Se a escola tem como código de comportamento a fala, como entender o silêncio? Se a escola apresenta um conhecimento onde o espaço e a temporalidade seguem as demarcações que o capitalismo forjou, como considerar como legítimas outras espacialidades e temporalidades que não estas?
Se a referência para o saber é o profissional, tal postura dificulta a chegada ao saber do outro (…). Nós oferecemos o nosso saber por que pensamos que o da população é insuficiente, pois não é visto como equivalente, como igual ao nosso” (VALLA,1994:p.3)
Desencontros entre a população e profissionais ocorrem, muito mais, devido a relações de poder que produzem interdições, que produzem a “população carente”, “a população fragilizada”.
Enquanto discurso competente o discurso do conhecimento “é o discurso do especialista, proferido de um ponto determinado da hierarquia organizacional” (CHAUÍ, 1999:p. 11), esses discursos serão tantos quanto forem os “lugares hierárquicos autorizados a falar e a transformar ordens aos degraus inferiores”, sendo também um discurso instituído e dissimulador das relações de dominação. O discurso competente enquanto discurso do conhecimento é produzido por uma “afirmação tácita e aceitação da incompetência dos homens enquanto sujeitos sociais e políticos” (CHAUÍ. 990:p. 19).
Cremos que se forem possíveis sutis movimentos de compreensão por parte dos profissionais, começaremos a entender melhor o que a população quer dizer quando fala e o quanto de criticidade está contida nessas falas. Saber que de fato “é atravessado pelo saber hegemônico da instituição”, e que, se reproduz as explicações “oficiais” sobre suas vidas e avida de seus filhos, também lança no ar dúvidas sobre a verdade dessas explicações” (PEREGRINO,1994:p. 19).
Estando o desafio colocado para os profissionais, resta acreditar que estes serão capazes de romper com práticas hegemonizadas que têm como efeito as interdições que afastam a população de participar ativamente dos diversos espaços da vida pública, ações que produzem a “sua” incompetência.
No movimento de desconstrução dessas produções, pequenas ações adquirem fundamental importância quando, por exemplo, percebemos que as duas horas de e encontros, por nós organizados, não têm o mesmo significado para os diversos participantes, que as duas horas são na verdade meia hora. Se tal não ocorre, perdemos a chance de perceber a intensidade dessa meia hora, conseguida ou através de negociações domésticas, ou porque por meia hora foi possível suspender a situação de imersão cotidianamente desumanizadora.
Perdemos a oportunidade de adentrarmos numa área de escape não considerando que “o caráter contraditório da prática escolar no interior das relações capitalistas mostra que ela não é somente reprodução da ideologia dominante e das relações de produção. É algo mais. É alvo de disputas e lutas. Tentar articular essas lutas, ou seja, tentar operar uma ruptura e tornar possível uma outra lógica, uma outra realidade” (COIMBRA,1990:p.35).
A tarefa urgente é desnaturalizar essas produções excludentes e perversas, explodir com os lugares tão bem-marcados do saber, reafirmar as lutas miúdas e anônimas, que têm como palco não só o espaço das fábricas, mas todos os lugares possíveis de inserção; onde o “herói” não está vestido de macacão, mas pode se esconder em uma mulher qualquer que todos os dias manda seu filho para a escola, que desconstrói entre medos e lutas o mito da incompetência popular.
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