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Erosão do Poder Vertical – Tomasz Konicz

arlindenor pedro
Por arlindenor pedro 19 leitura mínima

Lutas pela distribuição até agora encobertas entre bandos concorrentes na Rússia estão saindo de controle

O Presidente russo Vladimir Putin quebrou o domínio dos oligarcas, mas o preço foi a formação de novas estruturas oligárquicas no aparelho de Estado em expansão. As lutas secretas pela distribuição entre redes concorrentes intensificaram-se na sequência da guerra na Ucrânia. A revolta do grupo mercenário Wagner mostrou a fragilidade do domínio do presidente russo.

É um simples jogo de poder, uma manobra política cotidiana com a qual a política é conduzida nas democracias capitalistas: uma decisão impopular, por exemplo, uma “reforma estrutural” neoliberal, deve ser imposta? Não há problema. Se algo correr mal – o que é mais fácil do que substituir um ministro? A substituição de pessoal é o preço que se paga habitualmente para manter as estruturas e a orientação política no establishment político do capitalismo tardio desenvolvido.

Quando a imprensa fala de cabeças rolando, isso não deve ser entendido literalmente, como é sabido. Embora na Rússia as cabeças também não rolem literalmente, as mortes misteriosas de funcionários do Estado ocorrem aí de vez em quando. A revista Newsweek contou nove desde o início da guerra na Ucrânia; o mais recente foi o juiz distrital Artem Bartenev, que teria caído da janela do seu apartamento no décimo segundo andar, em Kazan. O governo russo, no entanto, não é capaz da simples manobra da política de poder que é substituir um ministro. O Presidente Vladimir Putin deveria, de fato, substituir Sergei Shoigu, o seu ministro da Defesa manifestamente incompetente. Mas não o pode fazer sem desgastar ainda mais a sua já frágil base de poder – apesar de a invasão russa da Ucrânia ser há muito equivalente a um desastre geopolítico e militar, e de a substituição de um ministro pelo menos simular alguma ação.

A luta pelo poder na Rússia, que assumiu repentinamente as características de um motim, se não mesmo de uma tentativa de golpe de Estado, permanece obscura sem uma compreensão adequada do “poder vertical” russo moldado por Putin, por detrás da qual se esconde uma oligarquia estatal de tipo mafioso. A popularidade de que o chefe de Estado russo ainda goza foi adquirida na fase inicial do seu governo, quando pôs fim à fase caótica de transformação da Rússia, caracterizada pela desintegração estatal e social. Por isso Putin é visto, sobretudo pelos membros da geração mais velha, como um “homem da ordem”, como a personificação do Estado russo forte que destituiu do poder a oligarquia. A oligarquia era descendente da elite funcional soviética e, após a implosão da União Soviética, saiu vitoriosa das privatizações selvagens.

A contenção do pauperismo da fase de transformação dos anos 90, a revisão parcial da perda de importância geopolítica da Rússia, o restabelecimento de funções básicas do Estado como a cobrança de impostos e o fim da saída de capitais da Rússia –tais êxitos de Putin no início do século XXI teriam sido impensáveis sem o desmantelamento da oligarquia russa enquanto camada dominante.

Vários oligarcas, por exemplo Vladimir Gussinsky ou Boris Berezovsky, foram expulsos do país no decurso das disputas com o governo durante o primeiro mandato de Putin, enquanto o recalcitrante magnata do petróleo Mikhail Khodorkovsky ficou preso durante dez anos. Depois disso os barões ladrões e os oligarcas pós-soviéticos, que acumularam grande parte dos ativos da falência da União Soviética quase sem restrições durante a presidência de Boris Ieltsin na década de 1990, chegaram a um acordo com o governo. Para que pudessem aceitar a sua destituição do poder político, foram aparentemente dadas garantias informais de propriedade, sobretudo aos oligarcas do clã de Ieltsin.

A ascensão dos siloviki

A Rússia continua marcada por uma forte clivagem social entre ricos e pobres. Continua a existir uma pequena camada de super-ricos, mas já não se trata de uma oligarquia (como na Ucrânia) capaz de utilizar a sua riqueza para instrumentalizar partes do aparelho de Estado a fim de fazer valer os seus interesses econômicos particulares. Na Rússia surgiu uma oligarquia estatal. A atual estrutura do regime russo surgiu em conflito com a oligarquia surgida durante o governo de Ieltsin. Em resultado deste conflito, algumas empresas estrategicamente importantes na economia russa foram novamente nacionalizadas – especialmente nos sectores da energia e das matérias-primas. As forças que lideraram a luta bem sucedida de Putin contra a oligarquia foram recrutadas nos “ministérios do poder” pós-soviéticos, no KGB (ou no seu sucessor, o FSB), onde Putin também começou a sua carreira, e noutros organismos que impuseram o monopólio do Estado no uso da força.

Os chamados siloviki (o nome deriva da palavra russa para poder, “sila”), que assumiram funções de liderança nas empresas e grupos novamente nacionalizados, também enriqueceram imensamente. Putin derrotou a oligarquia russa, reviu algumas das privatizações, mas isso aconteceu à custa da formação de uma nova oligarquia, que hoje controla o sector estatal e o utiliza como fonte de riqueza e poder. O seu primeiro representante é o próprio Putin: O cientista político russo Stanislav Belkovsky estima a sua fortuna pessoal em 70 bilhões de dólares americanos, Bill Browder, diretor executivo da empresa de fundos Hermitage Capital Management, em 200 bilhões – pode considerar-se que Putin é um multimilionário, mesmo que a sua situação financeira seja cuidadosamente ocultada.

A ideia de que os cargos de Estado são uma fonte de enriquecimento impregna todo o aparelho de Estado russo; constitui a substância de todo o poder vertical, de alto a baixo. No entanto, quando os cargos do aparelho de Estado são utilizados para o enriquecimento privado, isso não contribui para manter e otimizar o processo de valorização do capital, como seria o caso da função habitual do Estado como “capitalista coletivo ideal”.

Clientelas e bandos continuam a lutar pelo acesso às posições de poder do Estado. As lutas oligárquicas abertas que caracterizavam a Ucrânia antes do início da guerra ocorrem na Rússia – em grande parte à porta fechada – dentro do aparelho de Estado. A guerra desastrosa é, de certo modo, o catalisador que faz com que esses conflitos entre oligarquias estatais aumentem e apareçam abertamente.

Putin é o centro de poder desse sistema; é ele que tem a última palavra nas lutas pelas coutadas e pela distribuição entre os bandos concorrentes dentro do Estado. Esta estrutura de poder faz lembrar a era imperial czarista que Putin aprecia, quando, nos séculos XVIII e XIX, o sucesso econômico dos comerciantes ou industriais dependia, não raramente, do favorecimento do Kremlin. Mas isto não significa que Putin tenha um poder autocrático sem restrições. Putin também atua como mediador entre as diferentes facções mafiosas do Estado. É um ato de equilíbrio permanente de política de poder que o Presidente tem de realizar para manter sob controle as forças centrífugas anômicas do brutalizante aparelho de Estado russo incapaz de modernização.

O próprio governo de Putin é um produto desse sistema. O seu bando é recrutado principalmente em São Petersburgo e inclui, por exemplo, o antigo presidente e primeiro-ministro Dmitry Medvedev e o presidente da Gazprom, Alexei Miller. Como é caraterístico das redes mafiosas, a lealdade, mais do que a competência, desempenha de longe o papel mais importante no preenchimento dos cargos. E dificilmente alguém é mais fiável para Putin do que o ministro da Defesa, Sergei Shoigu. Desde a sua nomeação, em 2012, tornou-se um dos mais próximos confidentes do Presidente e esteve também envolvido nos preparativos para a guerra. Uma vez que pertence ao círculo íntimo do poder do Kremlin, um ataque contra ele equivale a um ataque ao bando de Putin.

De fornecedor de refeições a líder de mercenários

Yevgeny Prigozhin, o líder do grupo mercenário Wagner, por outro lado, pertencia à periferia do círculo de poder de Putin – e é dos poucos que devem a sua ascensão principalmente ao seu desempenho. Começou a carreira nos anos noventa como “o cozinheiro de Putin”, que conseguiu obter contratos lucrativos de refeições do Estado devido ao seu conhecimento pessoal do Presidente. Não se sabe exatamente quando começou a aceitar outros contratos; o seu grupo mercenário Wagner apareceu pela primeira vez no leste da Ucrânia em 2014. Nos anos seguintes, provou ser um instrumento eficaz de política externa não oficial – a um custo relativamente baixo – especialmente em Estados africanos. Em vários Estados africanos, o Wagner refinancia-se participando na exploração de recursos minerais; segundo Putin, o grupo mercenário recebeu o equivalente a mil milhões de dólares americanos do Estado russo entre Maio de 2022 e Maio de 2023. O equipamento de guerra moderno também provém de stocks estatais.

Para Putin, esse investimento deu inicialmente frutos, mesmo na guerra da Ucrânia. Embora com pesadas perdas, os combatentes de Prigozhin alcançaram o único sucesso notável da ofensiva russa de inverno, a captura de Bakhmut. Tal fato aumentou as suas ambições políticas; falou abertamente sobre o fracasso do Exército, o que lhe valeu a inimizade do Ministério da Defesa. As disputas no seio da oligarquia estatal russa estão aumentando devido à desorganização do Exército e ao miserável desenvolvimento da guerra, o que contribuiu para a recente tentativa de golpe de Estado.

A transformação do aparelho de Estado numa loja de self-service de bandos concorrentes não se limita ao Exército. Compram-se promoções, vende-se equipamento e desviam-se fundos. Em vez de modernizar as Forças Armadas, Shoigu ocupa-se, aparentemente, com ele próprio – sua filha possui um imóvel em Moscou no valor de 18 milhões de dólares americanos. O exército russo que invadiu a Ucrânia era liderado por oficiais que o viam sobretudo como uma fonte de rendimento.

Sendo assim, Prigozhin não precisou inventar nada em suas discursos contra a má gestão e a corrupção no aparelho militar. Depois de muita hesitação, Putin decretou que a força mercenária deveria ser destituída da sua autonomia e colocada sob a alçada do odiado Ministério da Defesa a partir de 1 de Julho. Prigozhin teve de recear, pelo menos, ser privado do seu poder, talvez até ser preso ou liquidado; aparentemente, foi este o fator que desencadeou o motim. Foi uma luta pelo poder e pela distribuição no aparelho de Estado russo em erosão, alimentada pelos acontecimentos da guerra, que desta vez veio a público.

O desenrolar da insurreição revelou a fragilidade do regime de Putin. A oligarquia estatal, que é incapaz de se modernizar e está a destruir o aparelho de Estado com as suas lutas pela distribuição, ameaça transformar-se em anomia, em decadência estatal aberta. Quase nenhum ator estatal quis impedir a ação das tropas Wagner, os militares e a polícia mantiveram-se em grande parte passivos. Em Rostov-on-Don, unidades da Guarda Nacional Russa foram mobilizadas à pressa – mas dissolveram-se quando os mercenários marcharam para a cidade e tomaram sem luta o quartel-general do Distrito Militar do Sul da Rússia. As bases militares e os aeródromos também foram tomados sem luta, enquanto o governo mandava cavar trincheiras nas autoestradas para, pelo menos, atrasar um pouco o rápido avanço da força mercenária.

Os comboios de mercenários avançaram abertamente à luz do dia em direção a Moscou, onde a Guarda Nacional já estava a montar barreiras nas estradas e ninhos de metralhadoras. Deveria ter sido fácil para a força aérea russa simplesmente pulverizar os comboios. Mas houve apenas ataques esporádicos, nos quais a força aérea russa perdeu seis helicópteros e um avião de transporte. O seu comandante, o general Sergei Surovikin, antigo comandante das forças russas na Ucrânia, teria sido detido no final de Junho, segundo notícias dos media; o gabinete presidencial em Moscou recusou-se até agora a confirmar ou a desmentir este fato. De acordo com documentos obtidos pela CNN, Surovikin era um “membro VIP secreto do Wagner”.

Que apoio tinha a chamada “Marcha pela Justiça” de Prigozhin no aparelho militar continuará provavelmente a ser, por enquanto, objeto de especulação. Foi o Presidente da Bielorrússia, Aleksandr Lukashenko, segundo ele próprio declarou, que impediu uma nova escalada desta luta pelo poder, graças ao seu papel de mediador. Prigozhin, que alegadamente negociou com Lukashenko durante horas, deverá agora instalar-se numa base militar em Belarus com os seus combatentes que não queiram juntar-se ao Exército russo. Aos combatentes envolvidos na revolta foi prometida imunidade de ação penal. Prigozhin também foi anistiado, apesar de Putin o ter rotulado publicamente de traidor durante a revolta e ter anunciado a sua punição.

Perda de autoridade

Não está claro se Lukashenko desempenhou o papel por ele reivindicado e o que realmente aconteceu nas horas cruciais das negociações. A demissão de Shoigu e do Chefe do Estado-Maior General Valery Gerasimov, que Prigozhin exigiu e, segundo as primeiras informações, lhe foi prometida, parece estar fora de questão, pelo menos a curto prazo – caso contrário, o líder mercenário poderia festejar o fato como uma vitória a posteriori. Se, após um período de intervalo, houver uma substituição, é provável que Putin substitua estes dois titulares de cargos tão leais como incompetentes por membros igualmente fiáveis do bando. Em discussão está Alexei Djumin, um antigo guarda-costas de Putin que, entretanto, chegou a governador do oblast de Tula. O velho padrão de recompensar a lealdade está aparentemente a ser mantido. Embora também leal, o antigo praticante de artes marciais e ator Steven Seagal, que segundo os rumores estaria em conversações para ser o novo ministro da Defesa, não deverá ser seriamente considerado.

Independentemente do seu fracasso, a Guarda Nacional Russa com cerca de 200 mil efetivos, inicialmente destinada a uso doméstico, deverá ser equipada com armas pesadas no futuro. Além disso, os propagandistas e lacaios do regime em erosão estão a tentar retomar a normalidade e simular a normalidade o mais rapidamente possível.

No entanto, essa revolta mercenária, que foi recebida com uma passividade generalizada no aparelho de Estado russo, representa um ponto de viragem. Putin, que teve de mudar de posição em relação a Prigozhin em poucas horas, perdeu grande parte da sua autoridade. Qualquer aparência de um Estado ordeiro deu lugar à realidade de lutas pelo poder ao estilo da máfia e de negócios sujos.

É pouco provável que Putin recupere desta situação, mesmo que o seu poder não esteja sob ameaça imediata. A guerra, que está a alimentar a erosão da vertical do poder da Rússia, continua sem perspectivas de uma vitória russa. Mas o motim também mostrou qual é provavelmente o único caminho viável para a derrota da Rússia. Em termos militares, também é improvável que a Ucrânia ganhe a guerra, mesmo contra um Exército russo desolado e incapaz de grandes ofensivas, devido à enorme discrepância de recursos disponíveis. Esse fato é também ilustrado pelos reveses da atual ofensiva ucraniana, razão pela qual a Rússia prefere uma guerra de desgaste. O que parece possível, no entanto, é um cenário semelhante à ofensiva vietnamita do Tet, em Janeiro de 1968, quando uma derrota militar dos vietcongues pôde ser transformada em vitória política, devido às ondas de choque que o avanço criou na política interna dos EUA.

Erosion der Machtvertikale”, em Jungle World, 06.07.2023.

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Libertário - professor de história, filosofia e sociologia .
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