Assim, se refere Nietzsche ao pensamento Socrático:
“Mas a palavra mais penetrante desse culto novo e inaudito ao saber e ao entendimento foi Sócrates quem disse, quando constatou ser o único que confessava nada saber., enquanto em sua perambulação critica por Atenas, visitando os grandes estadistas, oradores, poetas e artistas, encontrava por toda parte a fantasia do saber.Com espanto, reconheceu que todas aquelas celebridades não tinham um entendimento correto e seguro nem mesmo sobre sua profissão e exerciam apenas por instinto”.Apenas por instinto”: com esta expressão tocamos o coração e o centro da tendência socrática.Com ela o socratismo condena tanto a arte vigente quanto a ética vigente: para onde dirige seu olhar inquisidor, lá ele vê a falta de entendimento e a força da ilusão, e conclui dessa falta que o que existe é intrinsecamente pervertido e repudiável.A partir desse único ponto acreditava Sócrates ter de corrigir a existência: ele sozinho, trazendo no rosto a expressão do desdém e da altivez, faz sua aparição, como precursor de uma cultura, arte,e moral de espécie totalmente outra, em um mundo que, para nós, haveria de ser a maior das felicidades simplesmente vislumbrar , com respeito e terror ( F. Nietzsche, in “O nascimento da tragédia no espírito da música, 1978)
Na atualidade tanto Nietzsche quanto Heidegger, cada qual em sua época, voltaram suas obras para a continuidade das perguntas que faziam os filósofos pré-socráticos, sobre a physis e a relação do homem com o cosmos, criticando a visão racionalista que levou a sociedade humana às grandes religiões monoteístas e ao extremo materialismo do mundo contemporâneo. Visão esta que desprezou o invisível, o irracional, em última instância, o diferente.
O conceito de Razão foi particularmente estudado por Aristóteles, que discordava de Platão em muitas teses, mas também serviu de base para a metafísica, que sedimentou o pensamento moderno.
Mas, é importante notarmos que, para muitos cientistas na atualidade, o dispositivo lógico-calculista racional, por si só, não daria conta de explicar a realidade, pois a mesma seria fugidia e escaparia ao seu pleno reconhecimento. Para eles, razão moderna pré estabelece suas as conclusões. Ela está sempre prestando constas. Desta forma, ela é uma operação que condiciona as operações do pensamento, pois aquilo que é concluído já está anteposto. O final é previsível, não causa surpresas. Chega-se a um final específico já determinado. Desta forma, a razão moderna seria a expressão mais estrema do sistema archeteleológico. Ela não suportaria o diferente, o não previsto, que seria posto no campo das extravagâncias. Isto se daria pelo fato dela se apresentar dentro dos parâmetros de um sistema arque-teleológico, com um final já esperado, dentro da ordem natural das coisas. Tudo que estivesse fora desta demarcação seria descartável, tido como irracional, portanto, não devendo ser levado em consideração. A ideia, estruturada desta forma, tudo organizaria, orientaria, legislaria e dominaria no mundo contemporâneo. O diferente não seria admissível, pois estaria fora do sistema.
O filósofo, Ibraim Vitor de Oliveira, professor da PUC de Minas Gerais, produziu um estudo sobre o pensamento de Nietzsche e Heidegger, que ele publicou sobre o nome de Arché e Telos. Niilismo Filosófico e Crise de Linguagem em F.Nietzsche e M.Heidegger , onde é abordada as limitações dos conceitos da Razão Moderna , dentro dos parâmetros arque-teleológicos.Trata-se de um estudo original pois nos remete ao pensamento da Nietzsche e Heidegger como dissolutor dos conceitos de ache e telos.
Ali, o autor acentua a limitação do sistema racional para o entendimento da realidade. Preocupado com isto, ele diz que está na leitura dos pensamentos de Nietzsche e Heidegger, dentro de uma visão de dissolução dos conceitos de arche e telos, o caminho para uma abertura pós-moderna, que abriria uma nova abordagem perante a vida, num mundo dominado pela Razão. Para ele a Razão não dá conta de regulamentar a vida, pois ela é evasiva: a vida sempre deixa brechas, diria o autor. Telos e arché teriam estão uma confluência muito íntima: telos seria uma espécie de arché e vice-versa, formando um sistema, que para o autor precisa ser rompido.
Segundo Ibrahim Victor, foi o pensamento de Aristóteles que expressou de forma mais característica estes dois conceitos, que veio orientando o pensamento ocidental até então. Através da dissolução dos conceitos de arche, visto aqui como a busca pelo princípio, a causa das coisas, a busca das origens e também de telos, aqui visto como a antecipação de um dado já concluído, o pré-estabelecimento mental de uma obra concluída, o caminho de uma construção, que Nietzsche e Heidegger criaram as condições para uma abertura, que permite hoje a filosofia sair da camisa de força dos conceitos iluministas que sustentam o dispositivo a visão lógico- calculista racional do mundo contemporâneo, e que é também uma violência querer uma demarcação acheteleológica para a vida. E é contra essa demarcação archeteleologica da vida, que se insurge Nietzsche nos seus trabalhos. Ao contrário do que muitos pensam, ele não estaria longe do sentido da vida. O que ele buscaria, segundo o professor da PUC de Minas, seria o sentido mais próprio da vida, que ele acreditava se expressava de forma mais intensa na tragédia grega da antiguidade. Em seu estudo ele nos fala :
“O dispositivo lógico-calculista racional, problematizado a partir da sua própria estruturação dialética, entra em falência, visto que o seu programa critico-opositivo, intrínseca e construtivamente seletivo, vale-se por aquilo que é compatível a um projeto preestabelecido. Em outras palavras, para se atingir um total calculável, será necessário predeterminar um específico circuito arque-teleológico, dentro do qual se moveriam as oposições e o aparato crítico. A tal circunscrição arque-teleológica é o que denomina “sistema”: a prescrição de uma arche indica um telos e, vice-versa, a demarcação de um telos revela uma arche.
Em sentido genérico, arche significa origem, início; telos quer dizer fim, escopo. Assim, arqueológico diz respeito às origens, teleológico, aos fins. No âmbito especificamente filosófico, porém, estas palavras adquirem uma conotação sui generis quando Aristóteles as utiliza para designar aquilo a partir do qual o devir se processa.”
É mais adiante continua …
“Não obstante tenham sentido característicos, aos olhos aristotélicos, arché e telos tramam uma profunda confluência:
“o nome, que é objeto da nossa pesquisa, refere-se a uma única e mesma ciência; esta deve especular em torno dos princípios primeiros e das causas: de fato, também o bem e o fim das coisas são uma causa” In Metafísica, afirma Aristóteles:
“Tudo aquilo que vem-a-ser move-se na direção de uma arché, ou seja, na direção de seu telos: de fato, o telos constitui um princípio e o devir se dá em função do fim “
“Heidegger, com base na Física de Aristóteles, o “Grundbuch da filosofia ocidental”, designa o aparato arque-teleológico da metafísica na dimensão da técnica. Um conceito cognitivo, teché significa “saber fazer, e não, já, um processo de produção. Nesse sentido, arché é, a um só tempo, início (Ausgang) e domínio, enquanto disposição (Verfugung) de um operar. Assim, arché é a disposição que inicia e início que dispõe. “
E continua…
“Por sua vez, telos não é apenas um fim a se atingir, mas é já a antecipação mental e substancial da obra concluída. É a pré-visão de seu aspecto final (telos” é” entelecheia e energeia). Colocados arché e telos, a produção de algo passa a significar “fabricação”, ”manipulação”, ”dynamis”.
O fato é que, no sentido especificamente aristotélico, afirma-se somente que arché e telos são causa das coisas, dos artefatos. Não são ainda nenhuma entidade humana ou divina, que cria ou governa o devir. Todavia, não parece demasiado detectar a conexão entre tal perspectiva e o desenvolvimento posterior da metafísica, na dimensão da ratio. Em outras palavras, como diz R.Schumann , “o núcleo da filosofia ocidental é uma metafísica da manufatura, do mano facere, que traça os deslocamentos da ideia”. Na evolução da metafísica, arché e telos, agora principium e finis, submetem ao domínio do ratio, enquanto “fundamento e razão” Ou seja, passam a ser o movimento da “idéia” que sistematizada pelo ratio, tudo organiza, unifica, orienta, legisla e domina. Tal disposição se verifica, por exemplo, no necesse est itaque stare da tradição, no praedicatum inest subjecto leibniziano, no “eu penso” e “esquematismo” de Kant, na racionalidade hegeliana. “O diferente e a diferença acabam por se instaurar como extra-vagâncias do “sistema”, por isso, desprovidos de sentido.”
( In, Arché e Telos. Niilismo Filosófico e Crise de Linguagem em F.Nietzsche e M.Heidegger , Ibrain Vitor de Oliveira, 2004,)
Nietzsche em sua obras, sempre teve uma opinião demolidora em relação a influência do pensamento socrático-platonico, e por conseguinte , do cristianismo, para a cultura ocidental. Ele afirmava que os filósofos pré-socráticos concebiam uma unidade entre a vida e o pensamento, sendo que uma estimulava a existência da outra. Mas, que principalmente à partir de Sócrates, a filosofia enveredou pelo caminho de julgar a vida, opondo a ela valores que julgava ser superiores, impondo-lhes limites: o limite socrático entre o essencial e o aparente, entre o verdadeiro e falso, inteligível e insensível, criando então a base da metafísica, desenvolvida por Aristóteles e pelo próprio cristianismo.
Conceitos como o Belo, o Bem, Divino, Verdadeiro passaram a se sobrepor ao homem mítico da era das tragédias.
Para Nietzsche , a tragédia grega traz no seu bojo o saber mítico da unidade da vida e da morte, e, por conseguinte, traz a chave essencial da vida-vivida, pois ela se apoia na relação equilibrada entre os elementos dionisíacos e apolíneos, opondo-se, dessa forma, a Sócrates que via a tragédia como irracional, algo que apresenta efeitos sem causas ou causas sem efeitos, devendo, portanto ser ignorada.
Pelo contrário, Nietzsche via nos elementos dionisíacos , a essência do homem, o seu elemento primordial, e por isso travou um intenso debate contra a filosofia socrático-platônica, e o cristianismo em particular, por encontrar neles elementos que anulam a criatividade e a própria liberdade do homem, transformando-o num ser submisso, preso a dogmas e preconceitos e incapaz de usar os seus instintos mais profundos, anulando-o na sua criatividade. Para ele, o cristianismo concebe o mundo terrestre como uma vale de lágrima, em oposição ao mundo de felicidade eterna do além, da pós-morte, pois vê o corpo como o provisório, o inautêntico. Segundo ele isso pervertia os instintos, a natureza humana. São os fracos, os escravos, os vencidos, que, para compensarem a miséria, inventaram o além.
“Esse ódio de tudo que é humano, de tudo que é animal e mais ainda de tudo o que é matéria, esse horror dos sentidos… esse temor da felicidade e da beleza; esse desejo de fugir de tudo que é aparência, devir, morte, esforço, desejo mesmo, tudo isso significa vontade de aniquilamento, hostilidade à vida, recusa em se admitir as condições fundamentais da própria vida”
( F.Nietzsche , in “ Para a Genealogia da Moral”,1978)
Singular, por exemplo, era a sua postura perante o teatro grego, que tinha a tragédia como modelo de estrutura, tendo o coro como elemento principal, dentro da peça teatral, segundo a tradição do ditirambo (canto cultual ao deus Dionisio). A peça desenvolvia-se através da narração e da musicalidade e torrente unitária da melodia do coro, aonde o personagem central, o herói trágico, vai sendo submetidos às surpresas da vida, sofrendo, portanto, todas as suas intempéries. Os personagens, centrais ou não, estavam presos aos desígnios dos deuses, e a história corria evasiva, podendo ter ou não um final feliz: nada era previsível dentro da lógica. Mas, ao mesmo tempo, existiria o amalgamento entre os elementos dionisicos, onde o irracional, aquilo que seria próprio da natureza humana, contido no fundo do seu ser, irromperia, e os elementos racionais, apolíneos, organizadores do espaço. O apolíneo, para Nietzsche, seria tomado como onírico por seu poder de delimitar e configurar imagens, enquanto que o dionisíaco seria exático, por seu poder de embriagar o individuo no auto-esquecimento e devolve-lo ao cerne da sua natureza, numa unidade de contrários.Mas, ele sabe que o destino da tragédia estava selado:
“Como aparece agora, contraposto a esse novo mundo cênico socrático, otimista, o coro e em geral todo pano de fundo musical-dionísico da tragédia? Como algo contingente, como uma reminiscência, aliás, bem prescindível, da origem da tragédia: enquanto vimos que o coro só pode ser entendido como causa da tragédia e do trágico. Em Sófocles já aparece aquela hesitação quanto ao coro- um sinal importante de que nele o solo dionisíaco da tragédia já começa a esboroar. Ele não ousa mais confiar ao coro a participação principal na ação, mas restringe o seu âmbito a tal ponto que ele aparece agora quase coordenado com os atores, como se fosse trazido da orquestra para o palco: com isso, sem dúvida, sua essência é totalmente destruída, mesmo se Aristóteles dá seu assentimento a essa concepção de coro. Esse deslocamento da posição do coro, que Sófocles recomendou, em todo caso, por sua prática e, segundo a tradição, até mesmo por um escrito, é o primeiro passo para o aniquilamento do coro, que prossegue em Eurípedes em Agthon e na comédia nova, em fases que se sucedem com rapidez aterrorizante. A dialética otimista, com o açoite de seus silogismos, expulsa a música da tragédia: isto é, destrói a essência da tragédia, que só se deixa interpretar como uma manifestação e figuração do estado dionisíaco, como simbolização visível da música, como mundo sonhado por uma embriagues dionisíaca.”
”(F. Nietzsche, in “O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música, 1978).
Sócrates não pensava assim: para ele a figura do herói tinha destaque e os valores humanos premiavam ou não aqueles que melhor os interpretassem. Existia uma lógica plenamente conhecida e o final era plenamente previsível. O homem era o centro da natureza e ela deveria se sujeitar aos seus caprichos. Dessa forma, Sócrates criou a separação entre os elementos dionisíacos e apolíneos, fazendo com que a figura do herói tivesse um destaque preponderante, pois ele assimila o princípio da individualidade em alto grau. Ele não só apareceria singularmente, como na tragédia clássica, mas levaria essa individualidade as últimas conseqüências. Esta concepção foi desenvolvida por Aristóteles, e o seu conceito de teatro, o teatro aristotélico, foi o que prevaleceu durante muitos séculos, sendo praticamente esquecido o conceito teatral da tragédia, onde os elementos irracionais, ou dionisíacos , perdem espaço.
Tal conceito só sofreu algum abalo, embora não o fossem na sua essência, com o teatro épico de Bertolt Brecht, no início do século XX.
Incontestavelmente, Brecht fez uma ruptura com o teatro tradicional aristotélico, principalmente no que se refere a representação, recusando a postura sedentária, voluntariosa e passiva das obras clássicas, onde predominam os elementos da catarse , como a purgação dos sentimentos, através da piedade ou do terror.Ao contrário, Brecht propõe um teatro político, engajado, procurando refletir a sociedade onde se desenrola a ação. Nele não existe o herói clássico, no sentido proposto por Sócrates, mas uma ação coletiva, inter-relacionada, onde o espectador se afasta para a análise crítica. Brecht propõe à descoberta e o assombro, em contraponto a passividade da catarse.
Mas, embora rejeite o primarismo cartesiano do realismo soviético, e busque sempre elementos inovadores para o desenvolvimento do seu teatro político, ele também é prisioneiro das concepções iluministas e da busca da verdade absoluta, onde a ciência torna-se o novo elemento de adoração, num racionalismo que ignora os sentidos, o irracional, a explosão humana. Dessa forma, persegue a construção de um homem ideal, dentro dos parâmetros soviéticos. Elementos como amor, sentimentos radicais, paixão, ódio, se dão sempre dentro do contexto social abordado, sendo secundários por serem individuais, levando ao racionalismo da busca do objetivo final, onde o bem e o mal aparecem de forma bastante definida.
Serra da Mantiqueira, julho de 2013
Arlindenor Pedro
Referências
F. Nietzsche, in “O nascimento da tragédia no espírito da música, 1978
Arché e Telos. Niilismo Filosófico e Crise de Linguagem em F.Nietzsche e M.Heidegger , Ibrain Vitor de Oliveira, 2004
Estudo sobre teatro – Bertold Brecht, Editora Nova Fronteira, 2005
Os Conceitos Fundamentais da Metafísica – Mundo – Finitude – Solidão – Martin Heidegger, Editora Martins Fontes Paulista, 2011
F.Nietzsche , in “ Para a Genealogia da Moral”,1978