
A tentativa de compreender o texto carta como um gênero específico se perde quando percebemos o discurso fronteiriço que nele se configura. O discurso epistolar, pode-se dizer, é itinerante e transita facilmente entre vários discursos. Muito utilizadas por escritores e intelectuais, as cartas põem em questão a sua configuração também enquanto texto literário, uma vez que apresentam, em sua hibridação, elementos estéticos diversos. Interessa-nos, nesta apresentação, discutir a presença desses elementos nas correspondências de Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade, na medida em que se prestaram à crítica artística e cultural da época e, metalinguisticamente, orientaram as produções literárias.
O gênero epistolar, muito utilizado por escritores e intelectuais, põe em questão a natureza da carta enquanto texto literário, uma vez que apresenta, em sua hibridação, elementos estéticos diversos. Interessa-nos, nesse trabalho, discutir a presença desseselementos nas correspondências de Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade, na medida em que as cartas se prestaram à crítica cultural da época e, metalinguisticamente, orientaram as produções literárias. A atitude estética nasescrituras parece ter o propósito de levar para a cadeia enunciativa uma tendência artística que se instaurava, o que as torna projetos literários, enquanto ação de autorreferencialidade.
Assim, a tentativa de compreender o texto carta como um gênero específico se perde quando percebemos o discurso fronteiriço que nele se configura. O discurso epistolar, pode-se dizer, é itinerante e transita facilmente entre vários discursos. No caso das cartas de Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade isto não é diferente. Na medida em que os missivistas falam de si e do outro falam também sobre o trabalho de feituras literárias e acabam estetizando a escrita das correspondências. Este exercício aponta para o diálogo entre o poeta (mestre) e o outro que busca se inscrever na cena literária da época. Nesse movimento, esse texto desliza para o caráter metaliterário de seus escritos quando a estética ali não é somente comentada ou teorizada mas também exercida.
Para essa discussão tomaremos, como exemplo, as cartas em que os poetas dialogam sobre o processo de produção do poema “Nota Social”. Nessas cartas, os comentários e críticas muitas vezes passam pela metalinguagem. Mário de Andrade, conhecido como o “Mestre” entre os modernistas, instaura em seus textos “novas” lógicas operacionais, guiando seus pares ideológicos, esteticamente falando, voltando para o interior do próprio sistema literário que defende. A esse respeito Eagleton, em “Teoria da literatura”, no capítulo “O que é literatura” diz que
“ Esse enfoque na maneira de falar, e não na realidade daquilo de que se fala, é por vezes considerado como uma indicação do que entendemos por literatura: uma espécie de linguagem autoreferencial, uma linguagem que fala de si mesma.”(p. 11).
E é essa processualidade autoreferencial que dá o tom estético das correspondências. O chamado tom estético muitas vezes, nas correspondências, é a proposta de uma gramática de reconhecimento diferenciado da língua, exercido no discurso e na prática do discurso, como pontua Bakthin:
“É justamente o caráter plurilíngue, e não a unidade de uma linguagem comum normativa, que representa a base do estilo.” (p. 113).
A experimentação não só da forma, mas daquilo que alimenta a própria produção, captado pelos olhos que se voltam para a cultura brasileira, inclusive quanto à língua aqui falada, torna-se o ponto nevrálgico de defesa de uma brasilidade. Mário de Andrade clama pela valorização da experiência, da inovação, libertando-nos das influências externas, principalmente francesas, em nossas artes. Para Mário, toda a experiência levada à ambientação artística poderia fazer-nos entender e representar melhor o que de fato seria o Brasil. Nesse contexto, Drummond, jovem poeta, tenta colocar em prática as orientações do “mestre e lhe escreve:
Não posso deixar de confessar o muito que lhe devo, prezado Mário: permite-me, nos meus versos (quase todos inéditos), algumas audácias que só a Paulicéia tornou possíveis. São audácias com carteira de identificação…Alguns desses versos seguem junto a esta carta. Quero ter sobre eles a sua nobre e autorizada opinião. Nos últimos (Minha terra tem palmeiras) creio haver indícios de que vou aplicando as idéias que, um pouco duro de cérebro, reluto em aceitar. Em todo o caso, quero a sua opinião e mesmo os seus conselhos; recebê-los-ei de alma aberta. (carta de 22 de novembro de 1924. p. 60)
A escrita aqui denuncia o lugar de “pai literário” delegado ao seu interlocutor. Drummond envia a Mário, nesta carta, vários poemas, solicitando seu comentário. Entre os poemas está o “Nota Social”, merecendo uma longa carta resposta, que soa quase como um manifesto dos ideais modernistas, defendidos pelo autor de Macunaíma. Porém, antes de entrarmos no texto das cartas vejamos o poema citado:
Nota Social
O poeta chega na estação
do caminho de ferro
O poeta desembarca.
O poeta toma um auto.
O poeta vai para o hotel.
E enquanto ele realiza
Esses cometimentos de todo dia,
uma ovação o persegue
feito vaia.
Bandeirolas
abrem alas.
Bandas de música, foguetes.
Discursos, o povo de chapéu de palha,
máquinas fotográficas assestadas,
ruído de gente, fonfom dos automóveis,
os bravos...
O poeta está melancólico.(...).” (1923).
No final do poema, Mário faz um breve e provocador comentário: “na estação gostei da regência. Bravo!”
Cometimentos não gosto. (p.74)
Assim, responde Drummond:
“Nota social” – 1) ‘O poeta’ chega na estação’ Você gostou da regência…. Pois eu não gostei, e agora que peguei o erro, vou emendá-lo. Isso é modo de ver pessoalísssimo: correção ou incorreção gramatical. Sou pela correção. Ainda não posso compreender os seus curiosos excessos. Aceitar tudo o que nos vem do povo é uma tolice que nos leva ao regionalismo. Na primeira esquina do ‘me deixa’ você encontra o Monteiro Lobato ou outro qualquer respeitável aproveitador comercial do Jeca. Há erros lindos, eu sei. Mas que diabo, a cultura!… E poesia é também cultura.
Se a transitividade indireta do verbo “chegar” foi um lapso para Drummond, para Mário de Andrade, esse equívoco tornou-se um valor estético, como relata acima. Contudo, em carta resposta Mário escreve uma extensa crítica com comentários a respeito dos poemas (aproximadamente 10 folhas), das quais apresentamos alguns fragmentos:
“NOTA SOCIAL:”
Foi ignomínia a substituição do na estação por à estação só porque em Portugal, paisinho desimportante para nós, diz assim. Repare que eu digo que Portugal fala assim e não escreve só. Em Portugal tem uma gente corajosa que, em vez de ir assuntar como é que dizia na Roma latina e materna, fez uma gramática pelo que se falava em Portugal mesmo. Mas, no Brasil, o senhor Carlos Drummond diz “cheguei em casa”, “fui na farmácia”, “vou no cinema” e quando escreve veste um fraque debruado de galego, telefona pra Lisboa e pergunta pro ilustre Figueiredo: −Como é que está dizendo agora no Chiado: é “chega na estação” ou “chega à estação”? E escreve o que o Senhor Figueiredo manda.” (p.100) (autor português de um dicionário da Língua Portuguesa)
Essa crítica vem carregada de ironia. Mário defende que a potencialização da linguagem cotidiana do povo brasileiro deve ser levada para a produção artística como estratégia de subversão do discurso dominante de nosso colonizador. Desta maneira, as produções poéticas também estariam na contramão dos padrões impostos pela lógica da superioridade de outras culturas em relação à nossa. Primeiro a europeia, depois a americana.
Continuando sua crítica, ao modo da criação de Macunaíma, Mário alerta:
E assim o Brasil progride com constituição anglo-estadunense, língua franco-lusa e outras alavancas fecundas e legítimas. Veja bem, Drummond, que não digo pra você que se meta na aventura que me meti de estilizar o brasileiro vulgar. Mas refugir de certas modalidades nossas e perfeitamente humanas como o chegar na estação (aller em viille, arraive in casa mia, andare in città) é preconceito muito pouco viril. Quem como você mostrou a coragem de reconhecer a evolução das artes até a atualização delas põe-se com isso em manifesta contradição consigo mesmo. (…) Não estou pitorescando o meu estilo nem muito mesmo colecionando exemplos de estupidez. O povo não é estúpido quando diz “vou na escola”, “me deixe”, “Carneirada” , “mapear”, “besta ruana”, “farra”, “futebol”. É antes inteligentíssimo nessa aparente ignorância porque sofrendo a influência da terra, do clima, das ligações e contatos com outras raças, das necessidades do momento e de adaptação, e da pronúncia, do caráter, da psicologia racial, modifica aos poucos uma língua que já não lhe serve de expressão…(M.A. São Paulo, 18 de Fevereiro de 1925 – p. 101).
Mário de Andrade orienta firmemente o jovem poeta, incentivando o uso de nosso linguajar, enfatizando também o caráter não estático da língua. É interessante notar a atualidade destas cartas. Imaginemos o que diria o poeta, diante da mais recente reforma ortográfica, na tentativa de unificar a língua portuguesa. Já naquela época, a maneira de pensar e o olhar astuto deste missivista volta-se para a percepção do jogo de poderes em relação às imposições, perpassando nossas produções artísticas. Este olhar, pautado em sua experiência estética, mostra o desprezo pela imitação e acentua o desejo de romper com a produção artística que desmerecerecesse a estética legitimamente brasileira.
Dessa maneira, no meio da carta de 18 de Fevereiro de 1925, Mário comenta: “ Ainda“Nota Social” me desperta uma porção de comentários. Porém se eu vou de um por um teria que escrever toda uma poética adquirida pela minha longa experiência de fazer versos.” (p.102)
Para este crítico, a valorização de elementos estéticos na medida em que retualiza as criações ditas de “vanguarda”, apontadas na crítica e nas escrituras, rompe com a mimese e se reconfigura numa outra forma artística, mostrando o potencial desestabilizador e recriador da arte.
Você já escapa com naturalidade do um galicismo nos seus poemas. Mas nem sempre. Aliás procure evitar o mais possível os artigos tanto definidos como indefinidos. Não só porque evita galicismo e está mais dentro das línguas hispânicas como porque dá mais rapidez e força incisiva pra frase. Pra não copiar mando o poema com os pronomes desaconselháveis grifados ou substituídos.Veja se não fica melhor como rapidez e energia. Mesma observação com possessivos e todos os berenguendéns que castram a frase. (M.A. p. 102)
Como reconhecimento, em outra carta sobre o “Nota social”, Drummond diz:– Perdão, Mário eu não escrevi aquele “chega à estação” em homenagem a Camilo e caterva. Foi um escrúpulo, sim, mas inocente. Com um pouco mais de reflexão torno a por “chega na estação”. Realmente a razão está com você. Mas, compreende, essas coisas a gente só faz depois de muito observar, e com muita independência. Tímido e inexperiente como sou, acompanho com interesse as suas pesquisas e tentativas no sentido de “estilizar o brasileiro vulgar”; (Março de 1925 – p.108).
A inovação passa, muitas vezes, pelas rupturas. Pelo difícil exercício de rompimento com normas culturalmente instituídas. O sujeito que fala é um sujeito social e histórico, constituído a partir de sua ideologia e ação. Assim, a inovação passa por uma forma de reiventar a nação. Isso explica, de certa forma, a audácia e a coragem em Mário e a resistência do principiante em Drummond. Continuando seu “testamento”, Mário, proclama:
“A língua que escrevo, as ilusões que prezo, os modernismos que faço são pro Brasil. E isso nem sei se tem mérito porque me dá felicidade, que é a minha razão de ser da vida. Foi preciso coragem, confesso, porque as vaidades são muitas. Mas a gente tem a propriedade de substituir uma vaidade por outra. Foi o que fiz. A minha vaidade hoje é o de ser transitório. Estraçalho a minha obra. Escrevo língua imbecil, penso ingênuo, só pra chamar a atenção dos mais dos mais fortes do que eu pra este monstro mole e indeciso ainda que é o Brasil. Os gênios nacionais não são de geração espontânea. Eles nascem porque um amontoado de sacrifícios humanos anteriores lhes preparou a altitude necessária de onde podem descortinar e revelar uma nação. Que me importa que a minha obra não fique?” (MA – São Paulo 10 de novembro de 1923. p. 51).
Em outra carta, Drummond, já estilizando sua escrita, demonstra os primeiros passos para a audácia, dizendo:
“Condenei ‘Nossa Senhora- a vida’ ao fogo eterno. E agora, peço-lhe catar as pulgas dos versos novos. Não achando bom, risque; não achando perfeito, corrija. Eu ficarei grato. Até hoje não encontrei em nenhum homem de letras franqueza igual à sua. Muito, muito obrigado pelo seu acolhimento, pela sua franqueza e pela sua bondade!” (Belo Horizonte, 30 de Dezembrode 1924- p.82)
Assim, a consciência estilística de Mário de Andrade e mais tarde também do Drummond permite-lhes elaborar um discurso outro que, mediante ao tradicionalismo narrativo da época, assume um tom contestador quanto às formas linguísticas vigentes e contra o beletrismo. Porém, não foram apenas correções, o jovem poeta recebeu elogios e incentivos. Mereceu inclusive oportunidade de publicações. O espaço das cartas também se fez meio para se chegar até o público:
“E paro por aqui as observações. Gosto francamente dos seus versos. Alguns dos poemas que tenho aqui acho muito bons de verdade. O “Construção” como realização e escolha dos elementos expressivos, como síntese, é magistral. Preferia ainda que o “um grito” e o “um sorveteiro” fossem mudados pra “o grito” e “sorveteiro”. Vou mandar os poemas que prefiro pros diretores de Estética que escolherão um ou dois ou três, não sei, pra publicar, você deixa? Mando “Construção”, “Orozimbo”, “ O vulto pensativo das secretárias”, “Sentimental”, Raízes e caramujos”. Não mando “No meio do caminho” porque tenho medo de que ninguém goste dele. E porque tenho o orgulhinho de descobrir nele coisas e coisas que talvez nem você tenha imaginado pôr nele.” (102).
Podemos observar que aqui a leitura metalinguística se dá especialmente pela percepção da mobilidade narrativa e do excessivo trabalho formal, não só nos poemas como também nas cartas. Além disso, podemos dizer que é pertinente ler as cartas como literatura porque
“Não existe uma essência da literatura. Qualquer fragmento de escrita pode ser lido ‘não-pragmaticamente’, se é isso o que se significa ler um texto como literatura, assim como qualquer escrito pode ser lido ‘poeticamente’’. “(Egleton, 2001: 12).
Notamos que formas e significados provocam um tom argucioso nos sentidos inscritos e uma sensação de subversão. Nas escrituras, a criação de vocábulos, isto é, os neologismos são recorrentes e essas palavras indicam o trabalho com a linguagem. A intenção não é apenas falar sobre o que seria o Português brasileiro, mas mostrá-lo, como literalmente explica:
“Eu, adverbiando por demais na Paulicéia, inconscientemente segui uma tendência muito auriverde. “Parisanatolefrance” não gosto. Isto sim pela extravagância pode cheirar mário-de-andrade.” (p. 116).
O poetacria palavras, advérbios, une palavras, usa o hífen etc. Tudo para mostrar a audácia, para salientar a critica e dar ênfase ao jogo da criação.
Neste caso, não podemos desconsiderar também certo exagero como forma de chamar a atenção para o uso de termos da oralidade, como os incontáveis “pra”, “pro”, “dum”,si etc. A percepção da metalinguagem, constatada na composição das cartas, comprova este raciocínio. Os textos possuem o tom da escrita poética/ metaliterária, praticamente em toda a sua composição. Mário de Andrade, não só orientava seus interlocutores sobre as tendências da época como colocava em prática o pensamento que defendia. Pois é como disse no Prefácio Interessantíssimo:
“Que Arte não seja porém limpar versos de exageros coloridos. Exagero: símbolo sempre novo da vida como sonho. Por ele vida e sonho se irmanaram. E, consciente, não é defeito, mas meio legítimo de expressão.”
BAKHTIN, Mikhail. O plurilinguismo no romance. In: Questões de Literatura e de Estética. São Paulo: UNESP. 1998.
BAKHTIN, Mikhail. A pessoa que fala no romance. In: Questões de Literatura e de Estética. São Paulo: UNESP. 1998.
BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico nono auge do capitalismo. Tradução José C. Barbosa, Hemerson Alves Baptista. In: ‘Obras Escolhidas’, v.3, São Paulo: Brasiliense, 1989.
BOSI, Alfredo. “Moderno e modernista na literatura brasileira”. Em Céu, inferno. 2.ed. São Paulo, Duas Cidades/ Editora 34, 2002.
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. São Paulo: Nacional, 1976.
FROTA, Lélia Coelho. A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 1998.
RODRIGUES, A. Medina (et al). Antologia da Literatura Brasileira: Textos Comentados. São Paulo: Marco, 1979. vol. 2, p. 28-32.
