Voltando a Mannheim, verificamos que uma das teses da Sociologia do Conhecimento, formulada por ele, é de que existem modos de pensamento que não podem ser compreendidos adequadamente enquanto se mantiverem obscuras as suas origens sociais. Ele afirma que intencionalmente, a abordagem da Sociologia do Conhecimento não parte do individuo isolado e de seu pensar a fim de à maneira do filosofo, prosseguir então diretamente até as alturas abstratas do “pensamento em si”. Ao contrário, para ele, a Sociologia do Conhecimento busca compreender o pensamento no contexto concreto de uma situação histórico-social, de onde só muito gradativamente emerge o pensamento individualmente diferenciado. Em última análise, o pensamento é gerado em torno de um interesse concreto, que ele verifica que é o interesse geral de uma classe social dentro de uma situação historicamente definida.
Na obra “Ideologia e Utopia”, Mannheim nomeia cinco grandes correntes de pensamento político e social, que permearam a prática política da sociedade nos séculos XIX e XX. Seriam matrizes de comportamento políticos, que mesmo com variantes específicas, estiveram presentes nas ações dos personagens políticos que se destacaram na história contemporânea, dentro de um contexto histórico definido.Seriam elas: o conservantismo burocrático; historicismo conservador; pensamento liberal-burguês; concepção socialista-comunista e o fascismo.
Para o filósofo húngaro, uma tendência marcante do modo de pensamento do conservantismo burocrático, ou mesmo militar-burocrático, que tem sua gênese na mentalidade aristocrático-feudal, é o de converter todos os problemas da política em problemas de administração. Ele acentua o fato de que esta corrente de pensamento nunca pode ter um papel progressista, pois ela opera nos limites das leis já formuladas, ficando o seu horizonte socialmente limitado. Esta corrente aceita de antemão que a ordem específica prescrita pela lei vigente equivale à ordem geral, passando com isto a reagir a qualquer tentativa de mudanças. Segundo Mannheim, ela não compreende que cada ordem racionalizada constitui apenas uma das formas pela quais as forças irracionais socialmente conflitantes se conciliam. Geralmente encontramos aí, segundo ele, a tendência a utilizar o arbítrio, quando na sociedade insatisfeita pela ordem vigente irrompem energias coletivas que levam à revolução, isto é, mudanças, não procurando enfrentar a situação política de contradições existentes dentro dos próprios termos. O conservantismo burocrático considera a revolução um acontecimento sinistro dentro de um sistema de outra forma ordenado, e não a expressão viva de forças sociais fundamentais de que dependem a existência, a preservação e o desenvolvimento da sociedade. Um slogan clássico desta corrente nos diz: “uma boa administração vale mais do que uma melhor constituição”.
Ainda no campo desta corrente, Mannheim nos arremete a uma variante de pensamento que ele observou existir na Alemanha, em paralelo ao conservantismo burocrático, que ele denominou de “conservantismo histórico”. A diferença entre elas seria que essa corrente, ao contrário da primeira, estar ciente da existência do campo irracional na vida do Estado, que não poderia ser controlada pela administração. Ao focalizar sua atenção nos fatores irracionais e impulsivos que propiciam a base real para o desenvolvimento do Estado e da sociedade, chegam à conclusão que essas forças são inteiramente incompreensíveis e, portanto, incontroláveis. Neste sentido, somente um instinto tradicionalmente herdado, forças espirituais operando silenciosamente (folk spirit) que vêem das profundezas do inconsciente, poderão contribuir de fato para moldar o futuro do Estado e da sociedade. Esta tese serviria para validar a liderança de forças conservadoras tradicionais na sociedade, que se legitimariam pela tradição e experiência.
“Não basta ao líder político meramente possuir o conhecimento correto e o domínio de determinadas leis e normas. Além deste, precisa possuir os instintos inatos, aguçados mediante longa experiência, que o conduza à resposta correta”. (
K.Mannheim, in, Ideologia e Utopia, , 1976).
Confrontando as duas correntes, Mannheim deixa claro que o burocrata tende a dissimular a esfera política, enquanto o historicista a considera mais forte e operando exclusivamente no campo irracional, embora destaque os fatores tradicionais nos acontecimentos históricos e nos sujeitos atuantes. Ambas correntes têm a Utopia do Estado perfeito – que para elas significa um Estado bem administrado.
A ascensão da burguesia como classe hegemônica na sociedade contemporânea colocou em evidência o pensamento liberal-burguês. Esta classe, que travou uma importante luta contra o conservantismo-burocrático, após obter o poder político, passou a moldar a sociedade de acordo com a sua visão de mundo (weltanschauung) imprimindo nela a sua hegemonia, e, por conseguinte, a sua própria Utopia.
Para entendermos este movimento da burguesia liberal, seria importante o conhecimento da formulação teórica de hegemonia, desenvolvida por Antonio Gramsci na sua obra mais importante: “Os Escritos do Cárcere”. Gramsci, nestes escritos, dentre outras formulações, contrapõe, à idéia de dominação de classe, usualmente aceita pela esquerda, até então, pela idéia sofisticada do conceito de hegemonia. Para ele, somente numa fase tosca e primitiva é que se pode pensar numa nova formação econômica e social como dominação de uma parte da sociedade pela outra. Ele afirmava que a hegemonia estabelece um complexo sistema de relações e de mediações que permitiria o equilíbrio pela classe social que estabelecesse. De acordo com os padrões gramishiano, a hegemonia de uma determinada classe, dentro de um contexto social, num Estado determinado, se dá quando existe uma teia de crenças e relações institucionais, criadas por esta classe que são aceitas por todos. Para ele o Estado seria a relação entre força e consentimento. Isto é: a sociedade política organiza a força e a sociedade civil (as instituições) o consentimento, dando equilíbrio ao Estado. Segundo Gramsci, a supremacia de um grupo social se manifesta de dois modos: como domínio (coação) e como direção intelectual (consenso). Entendemos, então, que a burguesia-liberal manobra para que a sociedade adquira a sua forma de ver o mundo (weltanschauung), usando a razão e a ciência como instrumento de controle social.
Enquanto agentes transformadores da sociedade, libertando-a das amarras do pensamento conservantista-burocrata, a burguesia liberal lutou para transformar sua Utopia social em um consenso, sendo neste momento um agente progressista, mas, na medida em que assume o controle do Estado e a hegemonia social, impregna-a com sua ideologia, transfigurando-se, então, em agente conservador. Weber também se debruça sobre este assunto e afirma que
“quem faz política aspira ao poder: ao poder como meio para a consecução de outros fins (idealistas ou egoístas) ou ao poder pelo poder, para desfrutar o sentimento de prestígio que ele confere”.
O Político e o Cientista, M. Weber 1976”.).
Discursando sobre o Caudilho, personagem importante do Estado contemporâneo, ele nos diz:
“O Estado, como todas as associações políticas que o precederam historicamente, é uma relação de domínio de homens sobre homens, suportada por meio de violência legítima (quer dizer, da qual é encarada como tal). Necessita, pois, para subsistir, que os dominados acatem a autoridade que aqueles que dominam nesse momento pretendem ter. Sobre que motivações internas de justificação e sobre que meios externos se apóiam este domínio?”.
Em princípio”, continua Weber
,(para começarmos por eles) existem três tipos de justificações internas, de fundamentos de legitimidade de um domínio. Em primeiro lugar, a legitimidade do” ontem eterno “do costume consagrado pela sua imemorial validade e pela consuetudinária orientação dos homens para o respeitarem. É a legitimidade” tradicional”, como a que exercia os patriarcas e os príncipes patrimoniais do antigo regime. Em segundo lugar, a autoridade do encanto (carisma) pessoal e extraordinário, a entrega puramente pessoal e a confiança, igualmente pessoal, na capacidade para as revelações, o heroísmo ou outras qualidades de caudilho que o individuo possui. É esta autoridade (carismática) que tiveram os Profetas, ou no campo político, os chefes guerreiros eleitos, os governantes plebicitários, os grandes demagogos ou os chefes dos partidos políticos. Temos, por último, uma legitimidade baseada na” legalidade”, na crença na valida de preceitos legais e na” competência “objetiva, fundada sobre normas racionalmente criadas, ou seja, na orientação para uma obediência às obrigações legalmente estabelecidas: um domínio como o que exercem o moderno” servidor do Estado “e todos aqueles titulares do poder que a ele se assemelham”
. (Weber, in “O Político e o Cientista”, 1975).
Como afirmei no início, que a Utopia, anteriormente um elemento determinante na prática política, foi definitivamente afastada como matriz de comportamento e ação dos atores políticos, não será mais neste campo onde a sociedade vai escolher referências para o comportamento de seus atores sociais, para a obtenção do consenso, de que nos fala Gramsci, Weber e mesmo Mannheim.
Serra da Mantiqueira, agosto de 2023
Arlindenor Pedro
Referências
K.Mannheim, in, Ideologia e Utopia, , 1976).
.Weber, in “O Político e o Cientista”, 1975).