Mas, antes de continuarmos, gostaria, porém, de abordar as diferenças, que entendo, existem, sobre o que é Utopia e Ideologia. Novamente, recorro ao pensamento de Mannheim. O conceito de Utopia, tradicionalmente se associou à imagem de Tomas Morus na sua clássica obra no século XV-um desejo que não possa ser alcançado. Engels, inclusive, utilizou esta imagem em um livro célebre, quando quis contrapor à visão do socialismo criado por Marx, calçado no materialismo dialético, à visão idealista dos socialistas utópicos, como Prudon, Furrier, e outros. Na verdade, o conceito que utilizo aqui se aproxima mais da formulação desenvolvida por Mannheim, que observa na Utopia uma forma de pensamento, que de certa maneira se contrapõem a Ideologia. Estaríamos aqui mais próximos de uma forma de conduta que vem de uma visão de mundo (Weltanschauung), um estado de espírito. Para ele.
“Um estado de espírito é utópico quando está em incongruência com o estado de realidade dentro do qual ocorre”.
in, Ideologia e Utopia, K.Mannheim, 1976
Referiremos como utópicas aquelas orientações que, transcendendo a realidade, tendem a se transformarem em conduta, a abalar, seja parcial ou totalmente, a ordem de coisas que prevaleçam no momento. Mannheim, ao limitar o significado do termo “utopia” ao tipo de orientação que transcende a realidade e que, ao mesmo tempo, rompe as amarras da ordem existente, passa estabelecer uma distinção entre o estado de espírito utópico e os ideológicos. Para ele está implícita na palavra “ideologia” a noção de que, em certas situações, o inconsciente coletivo de certos grupos obscurece a condição real da sociedade, tanto para ele como para os demais, estabilizando-a, portanto. Mannheim nos diz que no geral existem dois significados distintos e inseparáveis do termo “ideologia” — o particular e o total.
“A concepção a particular de ideologia é aplicada quando o termo denota estarmos céticos das ideias e representações apresentadas por nosso opositor, encaradas como disfarces mais ou menos conscientes da real natureza de uma situação, cujo reconhecimento não concordaria com seus interesses. Estas distorções variam numa escala que vai desde as mentiras conscientes até os disfarces semiconscientes e dissimulados”
in, Ideologia e Utopia, K.Mannheim, 1976
Já o conceito total de ideologia se prende a visão de mundo expressada por um determinado grupo social, numa concepção mais inclusiva, da ideologia. Estamos nos referindo aqui à ideologia de uma época, a de uma classe social. É importante realçarmos aqui a ideia de Mannheim de que todo o pensamento, toda formulação, e mesmo ação derivada deste pensamento, está calçada em um interesse objetivo, que em última instância tem sua gênese no grupo social a que pertence.
“Pertencemos a um grupo não apenas porque nele nascemos; não porque professamos a ele pertencer, nem finalmente, porque a ele prestamos nossa lealdade e obediência, mas, principalmente, porque observamos o mundo e certas coisas do mundo do mesmo modo que o grupo vê.”
idem
Poderíamos então formular que, em última instância, os seres sociais se movimentam conforme os seus interesses. As Ideologias seriam, portanto, um complexo de ideias que dirigem as atividades com vista à manutenção da ordem existente, enquanto as Utopias os complexos de ideias que tendem a gerar atividades para mudanças na ordem vigente. Mannheim entende que.
“as ideologias são ideias situacionalmente transcendentes que jamais conseguem de fato a realização de seus conteúdos pretendidos. Embora se tornem com frequência motivos bem intencionados para a conduta subjetiva do indivíduo, seus significados, quando incorporados efetivamente a prática, é, na maior parte, deformada. A ideia do amor fraterno cristão, por exemplo, permanece em uma sociedade fundada na servidão, uma ideia irrealizável e, nesse sentido, uma ideia ideológica, mesmo quando o significado pretendido constitui, em boa-fé, um motivo de conduta do indivíduo. E impossível viver harmoniosamente, a luz do amor fraterna cristão, em uma sociedade que se acha organizada sob o mesmo princípio. O individuo se vê, em sua conduta pessoal, sempre forcado — à medida que não ocorre a ruptura da estrutura social existente — a renunciar a seus motivos nobres.”
idem
Dado ao seu papel de incongruência com a ordem estabelecida, as Utopias passam a ter um relevante papel como motor do processo histórico, isto é : a busca por mudanças. Estariam elas, entendo eu, no campo das pulsões, conceito presente nas obras de Ernst Bloch, principalmente em Principio Esperança.
Ali, ele nos propõe a visão da existência de um nexo entre as potencialidades ainda — não-manifestas e a atividade criadora da “consciência antecipadora”. Isto é, podemos equacionar problemas atuais em sintonia com as linhas que antecipam o futuro. O conceito blochiano de superação do que-ja-se-efetivou pela esperança do que ainda-não-veio-a-ser, torna-se um importante elemento para entendermos o papel das Utopias no desenvolvimento das sociedades.
O ainda-não-ser, categoria fundamental da filosofia blochiano da práxis — baseia-se na teoria das potencialidades imanentes do ser que ainda não foram exteriorizadas, mas que constituem uma força dinâmica que projeta o ente para futuro, imaginando, os sujeitos “astuciam o mundo”. O futuro deixa de ser insondável para vincular à realidade como expectativa de libertação e desalienação. Bloch nos diz, que ao contrário do que a psicanálise freudiana nos ensina, não está no passado o único elemento de entendimento do comportamento humano no presente-vivido. Na verdade, no presente, o individuo vive já o futuro, que está presente nas suas ações e comportamentos — isto é, suas Utopias. Quanto menos se tem Utopia, menos se vive no presente o futuro, vivendo-se apenas no campo das ideologias, formatadas pela realidade social que nos cerca.
Mas, devemos diferenciar o que é imaginação e o que é fantasia: na primeira tendemos a criar um imaginário alternativo; já na segunda nos alienamos num conjunto de imagens exóticas em que compensaremos uma insatisfação vaga e difusa da realidade por outra imagem irreal. A imaginação é um elemento decisivo na luta contra a opressão. O ato de imaginar aclara os rumos e acelera as Utopias. Devemos ter em conta que o mundo criado pela burguesia-liberal, o mundo da contemporaneidade, é um mundo onde a mercadoria passou a ser o elemento determinante — um mundo que não tem espaço para a imaginação — as Utopias. Esta visão de mundo derrotou, no século passado, as duas ultimas utopias do mundo moderno, a saber: o fascismo e a concepção socialista-comunista, dando lugar ao império total do racionalismo do mundo moderno-o mundo da mercadoria.
A racionalidade do mundo criado pela visão de mundo (weltanschauung) da burguesia liberal(um mundo desencantado, segundo Weber), empurrou a política, do campo do embate das ideias, para o mundo previsível dos negócios e dos assuntos rotineiros de estado. Tudo isto com um padrão previsível tanto no comportamento de seus atores principais-os políticos profissionais-quanto dos consumidores-eleitores. Desta forma, perdem-se as condições para o sonho, principal instrumento para as mudanças e para novos parâmetros de interação entre os homens, que passam a acentuar nos seus relacionamentos as interações reificadas que estão levando a nossa sociedade à barbárie.
Ora, se não está na política o principal instrumento para o exercício da atividade criadora do ser, para onde o cidadão irá exercer a força dos seus sentimentos perante a realidade que o cerca? Onde ele poderá exercitar os seus anseios como ser humano? A racionalidade estremada de um mundo desencantado levará cada vez mais o homem a não verificar no exercício político a forma representar seus verdadeiros sentimentos? E Isto sempre o colocará em oposição aos atores políticos, que os identificam como meras mercadorias?
Buenos Aires , setembro de 2023
Referências
Ideologia e Utopia, K.Mannheim, 1976
Princípio Esperança , Ernst Bloch