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Em Memória dos “SEM NOME”- Solange Jobim e Souza

arlindenor pedro
Por arlindenor pedro 16 leitura mínima

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Dedico este relato aos que cruzaram o meu caminho, escutaram
minhas histórias sem ir embora e voltaram sempre, para ouvir de novo e mais uma vez. Sem vocês não conseguiria continuar a narrar o inenarrável.


Em 1964 eu tinha 12 anos de idade e estudava no Colégio Pedro II. Morava na cidade do Rio de Janeiro, na Rua Almirante Tamandaré, número 20, no bairro do Flamengo. Família de classe média, meu pai era professor de português e inglês do ensino médio, em escolas públicas e particulares da zona sul do Rio de Janeiro.Dedicado à profissão, Francisco era homenageado por seus alunos convidado com frequência a paraninfo nas cerimônias de formatura. Em minhas lembranças dos anos sessenta se desenhava uma casa com muitos livros, onde desde muito cedo, aos cinco anos de idade, aprendi a ler e escrever com meu pai, ingressando na escola Escola Municipal Rodrigues Alves, no bairro do Catete, na segunda série do ensino fundamental, quando ao ser matriculada já dominava a leitura e a escrita. Meu pai foi meu mestre nas artes literárias, ensinando-me a compreender o mundo através dos clássicos da literatura. Nos fins de semana promovia saraus de leitura,momento em que líamos juntos e em voz alta poesias e trechos de obras clássicas.Foi assim que me apaixonei por autores como Machado de Assis, Oscar Wilde e posteriormente, encontrei-me com Clarice Lispector, a mais profunda interlocutora de temas existenciais na adolescência.

Retrato de Francisco Gomes Jobim


Em 1968, aos 16 anos de idade, precisamente no dia 18 de novembro, minha
história afetiva e intelectual com meu pai foi bruscamente interrompida. Por volta
das 21 horas fui surpreendida com a chegada em minha residência de um
mensageiro que trouxe a notícia de sua morte e partiu. Nunca soube quem seria
aquela pessoa, capaz de tão friamente anunciar a morte de meu pai e partir sem
deixar rastros. Essa estranha e inesperada visita transformou minha existência,
entregando-me um imenso embrulho de dúvidas e tristezas para ser
desembrulhado ao longo de uma vida. A notícia de sua morte foi divulgada de
forma sensacionalista no Jornal Gazeta de Notícias, na edição de 19 de
novembro de 1968.


Com o AI-5, sancionado em dezembro de 1968, a violência de Estado, impetrada
desde o Golpe de 64, institucionalizou-se, aumentando a arbitrariedade na ação
de agentes públicos. A prática generalizada de execuções sumárias, ocultação
de restos mortais, versões falsas de assassinatos e inúmeras violações de
direitos passam a ser sancionadas como uma autêntica prática da política
pública em tempos da ditadura. Nesse sentido, pode-se afirmar, com amparo em
evidências empíricas encontradas tanto em documentações produzidas pelos
próprios órgãos repressivos, como também nos registros deixados nas notícias
publicadas na imprensa, que houve políticas sexuais oficializadas e institucionalizadas na ditadura, cujo objetivo era gerenciar e coibir manifestações tidas como perversões ou desvios contra a moral conservadora da família patriarcal e heteronormativa2

A partir dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, com o objetivo de apurar
as graves violações de direitos humanos praticadas entre 1964 e 1985, abriu-se
caminho para uma análise das relações entre a ditadura brasileira e a homossexualidade. Durante um longo período as questões comportamentais e morais, como sexualidade e gênero, não eram consideradas prioritárias, especialmente quando colocadas lado a lado com a produção de memórias dos ex-presos políticos e militantes desaparecidos, que contavam com razoável quantidade
de provas produzidas por pesquisas acadêmicas e relatos das próprias vítimas
sobreviventes. Isso não ocorria com as homossexualidades uma vez que as militâncias das pautas de direitos humanos demonstravam uma certa indiferença
em relação ao tema. Contudo, as memórias de grupos dissidentes, até então
oficialmente invisibilizados, começaram a ganhar o espaço público. Investigações
sobre a perseguição que dificultou os modos de vida de gays, lésbicas, travestis e
transexuais durante a ditadura vieram à tona, conquistando no relatório final um
capítulo sobre o tema ditadura e homossexualidades, no volume II, “textos
temáticos”, algo absolutamente inédito até então.


A obra “Ditadura e homossexualidades: repressão, resistência e a busca da verdade”3,organizada por James Green e Renan Quinalha, destaca-se como uma
contribuição fundamental que permitirá reconfigurar dúvidas que sempre estiveram
presentes no que diz respeito ao silêncio sobre a violência contra os homossexuais
durante a ditadura militar. Todo regime político autoritário tem a pretensão de sanear
moralmente a sociedade, tornando questões comportamentais relativas à
sexualidade objeto da razão do Estado. No que se refere à perseguição nas ruas,
há registros de ações repressivas logo após 1964, 1968 e 1969, que foram
intensificadas com o AI-5, ampliando a margem de ação dos agentes públicos que
combatiam a presença de homossexuais, prostitutas e travestis em pontos de
sociabilidade LGBTQIA+. A maior fonte de registros das ações policiais investidas
contra essa população segue sendo os vestígios deixados nas notícias publicadas
na imprensa de cunho sensacionalista, representando as sexualidades dissidentes
como pecado, doença e desvio de caráter. Não foi diferente o que ocorreu com a
notícia da morte de Francisco Gomes Jobim no Gazeta de Notícias, documentada
em destaque na primeira página: UM PROFESSOR E UM ANORMAL NA
TRAGÉDIA. MATOU TRAVESTI E SE SUICIDOU. Uma leitura visual do conjunto
das imagens da primeira página, do dia 19 de novembro de 1968, no jornal Gazeta
de Notícias, sintetiza esse período infeliz de nossa história. A foto do rosto de
Francisco ao lado de seu corpo e a omissão da imagem do suposto travesti
assassinado deixam dúvidas sobre a veracidade da manchete em destaque.

Matéria no jornal Gazeta de Notícias; 19 de novembro de 1968.
Acervo da Fundação Biblioteca Nacional


As circunstâncias da morte de Francisco nunca foram esclarecidas, nem sequer
investigadas. O negacionismo é perverso porque proclama a irrealidade da
situação vivida, incentivando a política do memoricídio. No caso do presente
relato, a história oficial atribuiu a morte ao suicídio, como era costume em tempos
da ditadura. Uma existência silenciada e uma morte anônima até os dias de hoje.
Ao tornar anônima uma morte, o significado de uma vida concluída desaparece,
nem a morte pertence ao desaparecido, assim como o morto a ninguém
pertence. Reparar tal distorção significa assumir publicamente que Francisco
Gomes Jobim, filho de Luiz Augusto da Trindade Jobim e de Maria Gomes
Jobim, natural do Rio Grande do Sul, nascido em vinte e dois de maio de mil
novecentos e dezenove (1919), foi assassinado no dia 18 de novembro de 1968,
às 19 horas e 30 minutos, no Rio de Janeiro, na Rua Visconde do Rio Branco,
38.


Em 11 de maio de 2022, após dias de pesquisa na Internet, encontrei no 3º Registro
Civil das Pessoas Naturais, da cidade do Rio de Janeiro, a CERTIDÃO DE ÓBITO
de Francisco Gomes Jobim.

Certidão de óbito de Francisco Gomes Jobim



Causa mortis: ferimento penetrante do tórax por projétil de arma de fogo,
determinando lesão na artéria aorta e traqueia, hemorragia interna consecutiva.


A partir deste documento cheguei ao local de seus restos mortais, no Cemitério São
João Batista, e realizei o seu verdadeiro sepultamento, em 22 de maio de 2022.
Nesta data comemorei os 103 anos de seu nascimento, o reconhecimento de seu
assassinato, passados 54 anos, e o rompimento do silêncio e do anonimato de
centenas e milhares de “SEM NOMES” da história dos homossexuais assassinados
antes, durante e depois da ditadura militar no Brasil.


Lápide de Francisco Gomes Jobim


Precisei dar tempo ao tempo para admitir que a história de vida e morte de meu pai
era um reencontro comigo mesma, mas sobretudo com fatos relegados ao
esquecimento e silenciados pela família que proibira a citação de seu nome. O
sepultamento de Francisco havia sido um ato clandestino, sem que eu tivesse o
direito de enterrá-lo e viver o luto de sua perda. Ao se destruírem os espaços de
memória de nossos ancestrais, aniquila-se a possibilidade de uma sobrevivência
pacífica conosco mesmos. Assumi, desde então, o lugar de herdeira e testemunha,
indo ao encontro de sua morte, transformando sua ausência em caminho para a
vida. Impor um esquecimento significa impelir a uma única maneira de lembrar.
Uma memória impedida não se apaga, luta para poder voltar. Nessa espécie de
universo paralelo fui elaborando um acervo de experiências proibidas, experiências
não incluídas em práticas falantes, mas que deveriam sobreviver como memória
subterrânea para o juízo final. O potencial da imaginação se configurou para mim
como um caminho seguro para enfrentar os dilemas do testemunho,

“em que o elemento inverossímil da realidade narrada se confronta com a imperativa e vital necessidade de testemunhar, como meio de sobrevivência. A imaginação é chamada como arma que deve vir em auxílio do simbólico para enfrentar o buraco negro do real do trauma. O trauma encontra na imaginação um meio para sua
narração”.4


O trauma é o que está posto “fora do tempo”. Narrar o trauma configurou-se para
mim o sentido primário de (re)nascer. Sem entender o que tudo aquilo
significava, desde o primeiro momento tive a certeza de que eu deveria voltar o
resto de minha vida àquele mesmo tempo e lugar, na busca de vestígios de
memórias subterrâneas, conduzindo-me a desvendar os motivos do
desaparecimento súbito daquele que foi e continua sendo a minha maior
referência de amor incondicional.


Ao refletir sobre essas questões ao longo da vida, fui me dando conta de que o
silêncio tem razões bastante complexas, sejam elas razões políticas ou
pessoais, que se configuram como a ausência de uma escuta, a punição por
aquilo que se diz, ou mesmo o sofrimento trazido pela exposição a mal-
entendidos. Contudo, há uma certeza: para que possa relatar seus sofrimentos,
uma pessoa precisa, antes de mais nada, encontrar uma escuta. E, durante um
longo tempo, vivenciei o significado da conduta coletiva do apagamento da
memória dos que são condenados a não existir em vida, dos que nascem para
se tornar os Sem Nome da história. Aos poucos fui construindo a compreensão
da urgência de testemunhar uma memória individual, ao mesmo tempo em que
fui assumindo o compromisso de lutar por uma política de memória social,
tornando visível a opressão sofrida pelos homossexuais, ontem e hoje, por não
poderem exercer a liberdade de expressar publicamente sua forma de existir.


O desejo de memória e justiça se transfere para as gerações seguintes.
Aprendemos pacientemente a conviver com as memórias clandestinas. O longo
silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao esquecimento, é uma forma de
resistência. Lembranças proibidas são cuidadosamente guardadas em
comunicações informais entre pares, familiares, pessoas que se constituem
como pontos de referência da memória coletiva de um determinado grupo. Isto
significa que as memórias dissidentes sabem esperar, pacientemente, a hora da
verdade. Uma vez rompido o silêncio, as memórias dos grupos marginalizados conseguem invadir o espaço público, quando múltiplas reivindicações
identitárias e imprevisíveis entram em cena.


Michael Pollak5 sintetiza de forma exemplar o dilema da disputa histórica entre as memórias clandestinas e a memória oficial:

“O problema que se coloca a longo prazo para as memórias clandestinas e inaudíveis é o de sua transmissão intacta até o dia em que elas possam aproveitar uma ocasião para invadir o espaço público e passar do “não dito” à contestação e à reivindicação; o problema de toda memória oficial é o de sua credibilidade, de sua aceitação e também sua organização. Para que emerja nos
discursos políticos um fundo comum de referências que possam constituir uma memória nacional, um imenso trabalho e organização é indispensável para superar a simples “montagem” ideológica, por definição precária e frágil.”

O futuro é uma decorrência da própria natureza da política como atividade
coletiva e plural. Enquanto a homossexualidade estiver incorporada ao regime
dos “assuntos privados” não será possível consolidar movimentos coletivos de
resistência a violência homofóbica. Neste sentido, o presente relato se oferece
como uma oportunidade de ampliar o debate para a emergência de uma
sociedade civil mais vigorosa, sempre atenta para se engajar na construção
permanente de uma democracia aberta às diversidades e com respeito aos
direitos humanos, em especial às diferentes identidades e orientações sexuais.
A defesa dos direitos homossexuais e a defesa da democracia estão
intrinsicamente relacionadas e devem caminhar juntas na grande temporalidade.

Notas

1 Formada em Psicologia. Pós-doutorado, Université de Vincennes – Saint Denis, Paris 8 (2016). Professora
aposentada do Programa de Pós-graduação do Departamento de Psicologia da PUC-Rio. Professora
aposentada do Departamento de Educação da UERJ. Atualmente coordena o curso de especialização,
CCE/PUC-Rio, “Registros da memória: materialização da dimensão social das histórias de vida”.

2 Quinalha, Renan. Contra a moral e os bons costumes: A ditadura e a repressão à comunidade LGBT/São Paulo:
Companhia das Letras, 2021.

3 Green, J. N.: Quinalha, R. (Org.) Ditadura e homossexualidades: repressão, resistência e busca da verdade. São
Carlos, EdUFSCAR, 2021, 330 p. Esta obra consubstancia elementos fundamentais para um debate que visa conduzir
a sustentação de provas jurídicas sobre a perseguição de homossexuais durante a ditadura militar.

4 Seligmann-Silva, Márcio. Narrar o Trauma. IN: A virada testemunhal e decolonial do saber histórico.
Campinas, SP: Editora UNICAMP, 2022, p. 148-149.


5 Pollak, Michael. Memória, Esquecimento e Silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n3, 1989,
p. 9.

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Libertário - professor de história, filosofia e sociologia .
2 Comentários
  • Conheço Solange desde 1982 e sempre admirei sua maneira de enfrentar os desafios da vida.
    Em 2021, após pandemia, conversamos sobre sua necessidade de saber as circunstâncias da morte de seu pai, em novembro de 1968.
    Me contou do total silêncio que se abateu sobre a familia em relação ao ocorrido.
    Sabia de sua morte violenta, sabia que estava sepultado no cemitério S. João Batista, em Botafogo.
    Não possuía certidão de óbito.
    Apenas uma notícia de primeira página do jornal, no mínimo asquerosa, cheia de sensacionalismo, sobre a morte do pai.
    Solange estava determinada a desvendar esse mistério.
    Como todas as mulheres que passam por essas histórias traumáticas, tomou para ela essa missão.
    Queria fazer seu luto.
    Prantear seu pai amado e resgatar sua memória.
    Como advogada militante dos Direitos Humanos, acompanhei durante muito tempo, familiares de militantes políticos, resistentes à ditadura civil-militar em situação similar, que foram eliminados pelos órgãos de repressão.
    Não bastava torturar e matar. Montavam teatrinhos que iam desde atropelamentos, tentativa de fuga e troca de tiros e mesmo suicídios. Alguns desapareceram para sempre…
    Para as famílias sempre foi vital apurar as circunstâncias das suas mortes e desaparecimentos, poder fazer seu luto em cima das histórias reais e resgatar suas historias.
    Agora me deparo com a história do Professor Francisco: amado pela filha, por seus alunos que sempre o homenagearam.
    Solange, sua filha, foi à luta e conseguiu, finalmente, a certidão de óbito que comprova a morte de seu pai
    Através dela, localiza seu túmulo e faz uma lapide onde eterniza seu amor pelo pai.
    Foi além jogando luz na possibilidade de eliminação de militantes homossexuais pelo aparelho repressivo do estado ditatorial.
    Sinaliza parabuma estrada longa a ser percorrida mas essencial para que seja consolidada a verdadeira democracia neste país.
    Evoé para força dessa mulher.

    Finalmente, deixo registrado um poema do amigo Marcelo Mário de Mello:

    Quem o fará?
    QUEM O FARÁ?
    Marcelo Mário de Melo

    Purgar os erros,
    lembrar os mortos,
    fecundar os sonhos,
    festejar as vitórias.

    Se não fizermos isto
    pela nossa história,
    quem o fará?

    ANA MARIA MULLER

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