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Uma geração que viveu em vários mundos-Arlindenor Pedro

arlindenor pedro
Por arlindenor pedro 19 leitura mínima

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texto escrito originalmente para a edição do livro “60 anos do Golpe-Gerações em Luta”

Lançado meu olhar para o Brasil que vivi nos 60 anos, tendo como ponto de referência o Golpe Cívico-Militar de 1964 ê preciso em primeiro lugar deixar claro que este olhar será de um jovem que naquele momento se definiu como um ser humano de esquerda. Ora,mas o que seria então ser uma pessoa de esquerda?

Partindo dos parâmetros que certa vez vi o filósofo francês Gilles Deleuze traçar diria que para ser uma pessoa de esquerda é necessário perceber o mundo primeiramente a partir do universal (da humanidade, do mundo, do coletivo) para o particular (do individual, da família, do país). Creio, então, que me tornei de esquerda quando aos 17 anos fui com o então jornalista Muniz Bandeira e outros colegas do meu colégio secundarista ao Comício do dia 13 de março, na Central do Brasil, no Rio de Janeiro. Ali, diante do visível fato histórico que estava presenciando e dos atores que dele participavam senti uma grande emoção, e quase que automaticamente decidi: seria “gauche na vida”, parafraseando o poeta. Portanto, minha “visão de mundo”, a partir dali, passou a ser construída partindo dos conceitos criados pela minha geração de esquerda, na jornada que ela traçou dos anos de 1964 até agora.

E vamos combinar: foi uma jornada heróica! Sim,embora crítico,muitas vezes querendo desertar,achando que teriam outros caminhos mais fáceis de me realizar como ser humano, foi através deste arcabouço que pude compreender o mundo que me foi dado para existir, e ter a sensação de uma plena existência. Tornei-me de esquerda e tive até agora a sensação da vida através dos conceitos que colhi ali com esta geração.  Na verdade, nunca poderia ter vivido o que vivi se não tivesse uma concepção de mundo de esquerda. Fiz a escolha certa: foi com este olhar que vivi o mundo que me foi apresentado.

Combatendo em um mundo analógico

Já na juventude tive um inimigo a combater: o regime militar discricionário que se instaurou no país a partir do golpe militar, pois ele destruiu a perspectiva de mundo que eu almejava naquele momento.  E a este combate dediquei o todo de mim. Dei a ele os anos desta minha fase da vida. O pano de fundo desta luta foi o Brasil nos anos 60 e 70. Um país que hoje não existe mais.

Se existe uma forma de descrever este Brasil, nos anos que antecederam o golpe de 64, diria que era o espaço de um imenso caldeirão de ideias daqueles que astuciavam os caminhos para onde ele deveria ir, caminhos para suplantar o seu subdesenvolvimento e desigualdade social. É isto se materializava nos debates que existiam nas escolas, universidades, sindicatos, teatro, cinema, etc . Fui então um jovem que recebeu uma influência direta deste momento. O que fazer? Que caminhos trilhar? Estas eram as perguntas que fazíamos naqueles dias. Defino, então, o golpe que os militares e seus aliados civis deram em 1964 como o momento de ruptura com esta situação! A partir daí implantou- se uma visão única, autoritária de desenvolvimentismo, trazido pelos generais da Escola Superior de Guerra, que perdurou até a sua exaustão com a redemocratização dos anos 80.

Só quem perde a liberdade tem condições de avaliar a sua importância. E foi exatamente isto o que aconteceu. Gradativamente este mundo de descobertas, de conversas após as sessões do cinema no Paissandú, de delírio nos shows de música popular no MAM, de debates nas escolas, de passeatas por melhores condições de ensino nas universidades foi deixando de existir. Ele só poderia existir em um clima de liberdades democráticas, e isto já não existia mais. Primeiramente os sindicatos foram calados, perdendo suas forças, depois o mundo acadêmico e das escolas secundárias além do Parlamento foi atingido pelo arbítrio. Finalmente, com o AI-5, em 1968, o regime se fechou de vez. Muitos então mergulharam na clandestinidade abraçando a luta armada contra a ditadura. A escuridão desceu então para nossa geração!

Naquele momento, o capitalismo vivia o ápice do fordismo e os militares golpistas tinham como tarefa colocá-lo no radar do sistema mundial, dentro do campo de influência do imperialismo americano. E para estas mudanças precisavam de um país submisso, contido pela força. O país saltou então de um estado rural (mais da metade da população vivia e trabalhava no campo) para uma sociedade industrial, onde o número e importância dos operários aumentou de forma exponencial. As cidades cresceram rapidamente e o Brasil fez um espantoso movimento de migração interna, alterando sua economia, sua cultura, sua política, abrindo as portas pra o que se chamou ‘milagre brasileiro”. Uma poderosa classe média consumidora de mercadorias se consolidou nos grandes centros urbanos. De uma economia fechada nos tornamos um player mundial, chegando ao 8 PIB do mundo. A indústria era o centro da economia e o Brasil se ajustava a esta nova forma de viver. Os militares no poder através de um ambicioso programa de modernização transformaram o país em um enorme canteiro de obras, com abertura de estradas, portos e obras de infraestrutura, tudo isto num processo de endividamento e de crescimento da inflação, visando integrar o país ao grande mercado mundial. Tudo isto também em cima de uma crescente repressão popular, assassinatos, torturas daqueles que faziam oposição ao regime.

Chegando atrasado ao mundo digital

Mas, já era tarde para a economia do capitalismo brasileiro. Neste momento a economia mundial capitalista criada com a guerra fria já apresenta sinais de exaustão. E isto vai ficar mais visível com a crise do petróleo, a derrota americana no Vietnã e a 3 Revolução Industrial (a revolução da microeletrônica), que levará o mundo analógico para um outro mundo: o mundo digital, com a prevalência do setor financeiro sobre o setor industrial do capitalismo. O mundo neste momento está abrindo suas portas para o fenômeno que se chamou “globalização”. O capitalismo tenta sair desta crise de exaustão do fordismo da forma que sempre encontrou: dando um salto de fuga para frente, criando um outro mundo, diferente do mundo analógico que até então prevalecia. Caminhávamos para um mundo diferente. Um mundo criado pelo capital financeiro.

Tal característica do capitalismo dá contas então de um dos maiores problemas estruturais de seu modo de produção, que é a existência constante das crises de superprodução. Globalizando os mercados e transformando a humanidade como um todo num exército de consumidores, o capitalismo abriu mão do trabalho como o elemento determinante da sua existência, através do uso continuado e cada vez mais incessante da tecnologia, notadamente da tecnologia digital, sucessora da tecnologia analógica. A descaracterização do trabalho e a transformação de todos em meros consumidores, eis aí a base de entendimento desta nova sociedade.

Ao mesmo tempo este movimento do capital leva o mundo globalizado ao aprofundamento de uma crise com novas características. Crise esta que tem sua origem no fato de que o núcleo central do capitalismo contemporâneo passa a sofrer de insuficiência dinâmica. Isto porque a mais-valia gerada é crescentemente insuficiente para remunerar o volume de capital existente ao nível adequado, tornando-se por isso incapaz de sustentar o crescimento deste sistema totalmente integrado. Com o avanço generalizado do uso do trabalho morto para a materialização da mercadoria o capitalismo lança o mundo numa era de crise do mundo do trabalho e no descarte cada vez mais acentuado da mão de obra humana para gerar riquezas.

Observamos, então, que diante da fragilidade dinâmica deste sistema, ou seja, de sua perda de capacidade para gerar mais-valia suficiente para a acumulação de capital, passa a ocorrer então uma exacerbação da acumulação de capital na esfera financeira. Diante disto será sempre inexorável a existência de estouros. Ou seja, a apresentação de colapsos, em encilhamento do capital fictício, num processo de formação das bolhas financeiras que de fato estão se formando desde o começo dos anos 80 do século passado. 

Nestes tempos, um novo tipo de sociedade tomou forma no Brasil. Uma sociedade onde o consumo é a mola mestra da existência e da felicidade. Os antigos sinais de existência calçado numa cultura rural e pré capitalista são apagados. A ideia é a de uma sociedade em que tudo se torna descartável.A busca por objetos é incessante e parte de uma equação que traduz a compreensão de que ter esses objetos é sinônimo de felicidade. O consumo, então, acaba por reger nosso modelo de vida atual, definida pelo excesso de ofertas, demandas vorazes e liquidez destes mesmos objetos. A atualidade seria, então, marcada por uma “cultura das sensações”, na qual imperaria o culto ao corpo e a beleza e certo hedonismo: tendência a querer obter permanentemente o prazer e evitar o sofrimento.

Desta forma, vemos o capitalismo tornar a todos  que estão acima da linha de pobreza em consumidores, com objetos customizados para todos os gostos, com preços plenamente alcançáveis para aqueles que estão dentro do mercado de consumo, onde o conceito de “ter” que antes tinha substituído completamente o conceito de “ser”, dá lugar ao conceito do “parecer”, isto é: não é mais necessário se possuir um produto se uma cópia perfeita pode me dar a mesma sensação de satisfação, dentro do grupo social que frequento, pois o que importa é a sensação que aquela mercadoria me dá.

É claro então que a existência de um governo militar como o que foi criado no golpe de 1964 se torna anacrônico. E o capital precisa então que ele seja removido. Uma nova realidade se apresenta e novas formas de dominação são necessárias para a multiplicação do capital. Ao mesmo tempo o campo da esquerda vê diante de si apresentar-se um novo mundo:  o mundo que irá substituir o da luta operária contra o capital.Eu e minha geração, estamos diante então de novos desafios: entender, sobreviver e lutar nesta nova realidade.

Os desafios para esquerda em um novo mundo

Com o colapso da União Soviética e do chamado socialismo real, a esquerda perdeu um importante referencial teórico.Nossa geração tinha atravessado o período da ditadura e encontrava-se diante de novos desafios.Neste momento, é  necessário deixar claro aqui: uma das caraterísticas determinantes da esquerda brasileira sempre foi a sua diversidade de pensamento.E isto tinha resultado na variedade de partidos e organizações políticas que enfrentaram a a ditadura durante a vigência do regime de 1964. Mas, sem dúvidas, o principal eixo teórico que determinava sua ação advinha dos marxistas, em suas inúmeras variantes.E  esta nova fase do capitalismo lançou este campo numa profunda crise teórica.

Agora,os  conceitos cunhados pelo marxismo-leninismo e também do chamado maoísmo claramente não dão   conta desta nova realidade.Se no século XIX e no século XX eles  serviram como instrumentos para as lutas operárias, com  ganhos significativos para o proletariado junto a burguesia, que resultaram em diminuição das horas de trabalho e mesmo na construção de’ Estados de Bem Estar Social’, neste novo momento isto não mais ocorre .A acelerada automação e uso de tecnologia de ponta no  processo produtivo do capitalismo contemporâneo  diminuiu  consideravelmente a importância  da classe operária na produção de mercadorias. O seu contingente numérico decresceu assim como a força dos seus sindicatos.

 Esta nova sociedade que surgia tinha claramente um caráter pós-industrial, e gradativamente abria mão do trabalho humano forjando um mundo com altas taxas de desemprego e o crescimento de contingentes enormes de seres descartáveis (homo sacer modernos) que passaram a viver as margens da sociedade.Com características distópicas  o capitalismo abandonou cidades e regiões inteiras, concentrando-se em áreas onde podia acumular riquezas. O próprio conceito de Estado Nacional é abalado (estados falhados), com a prevalência de grandes conglomerados multinacionais e o crescimento da indústria bélica.As reservas naturais até então ainda preservadas foram avidamente consumidas, dando lugar a uma crise ambiental sem precedentes. Afogado nas guerras modernas cresceu exponencialmente o número de refugiados no mundo (hoje cerca de 100 milhões) e a decadência nos grandes centros urbanos.  Era necessário pois um novo olhar sobre o marxismo e a construção de uma nova visão de mundo que interpretasse esta crise do capitalismo-uma crise do mundo do liberalismo. Antes de mais nada, para nós, era preciso romper com os conceitos liberais que tinham atraído a esquerda desnorteada para o seu campo, tais como:  estado, dinheiro, mercadoria, trabalho. E, em seguida impunha-se a construção de um ideário, de um novo tipo de relação social, entre os seres humanos que nos afastasse da barbarie que surgia com a crise estrutural do capitalismo contemporâneo. E o instrumental teórico para isto estaria, sem dúvidas, no próprio Karl Marx, nos conceitos explicitados na sua obra madura, notadamente no Grundrisse e no O Capital, e na compreensão do papel da mercadoria e no seu fetiche como forma de dominação abstrata sobre a humanidade na modernidade. Creio então que está aí o maior desafio para a nossa geração: uma geração que viveu em vários mundos e tinha que destrinchar os contornos deste novo que agora se apresentava.

Agora, inimigo a ser combatido é antes de tudo um inimigo que opera através de instrumentos de dominação abstrata- uma dominação sem sujeito. E para combatê-lo é preciso conhecê-lo profundamente: sua lógica, seu processo reprodutivo e o caminho de destruição que está fazendo, colocando em risco a existência de nossa espécie e de milhares de seres vivos. Fica claro então que não vamos derrotá-lo usando as armas que usamos no século passado. Neste mundo globalizado a nossa luta tem um caráter transnacional. Tínhamos que sair do caráter imanente da luta cotidiana (melhores condições de vida, de saúde, de educação, de liberdades democráticas, de cidadania) para a caráter transcendente de uma nova sociedade (sem estado,sem trabalho, sem mercado e mercadoria, sem dinheiro, sem domínio patriarcal, em equilíbrio com a natureza, sem domínio religioso,sem classes sociais, sem propriedade, sem racismo, sem fronteiras nacionais, sem guerras) e isto só é possível fora do sistema capitalista. A luta anticapitalista tem então que atravessar toda a luta cotidiana da humanidade, desde a luta ecológica até a simples reivindicação salarial. Tem que estar presente nas manifestações artísticas,políticas, econômicas das lideranças políticas. E isto teria que ser refletido no pensamento e nas ações daqueles que percebem esta realidade.

Acredito que Brasil e a América Latina têm muito a contribuir neste novo momento, um momento decisivo para a sobrevivência da humanidade, pois o capitalismo transformou-se em um inimigo global que ameaça a nossa existência.Novos atores,aqueles que ficaram a margem do capitalismo nestes séculos, estão adentrando nesta luta global.As nações indígenas, os ribeirinhos, os quilombolas, os povos do altiplano, os zapatistas,os ciganos,etc, nos trazem novos conceitos, fora dos conceitos de progresso contínuo, que se somam a luta em todos os continentes daqueles que rejeitam a forma de viver capitalista. E é entendendo este quadro, entrando nesta luta, que a minha geração pode contribuir de forma positiva para o avanço de um futuro da humanidade fora das amarras da sociedade da mercadoria. Um futuro de uma humanidade efetivamente emancipada.

Serra da Mantiqueira, janeiro de 2024

Arlindenor Pedro

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Libertário - professor de história, filosofia e sociologia .
2 Comentários
  • Eu nem sei como buscar palavras para expressar a minha insatisfação que compactua com as suas palavras. A ascensão global de uma direita extremista, ombreada a tudo que o capital gosta, elite exploradora, tradicionalista, hipócrita…. e todo um elenco fétido que define essa gente. Enfim, só nos resta resistir e reagir, usando das armas que nos diferenciam dos que cultuam as sombras: denunciar, esclarecer, explicar a todos que pudermos, que ainda há uma pequena chama de salvação…

  • Primeiramente, minhas saudações! Considerando o texto, que bem representa o seu pensamento, gostaria de pontuar, como amante da polêmica e da discussão de ideias, que, para Marx, a contradição principal do sistema capitalista reside nas relações de trabalho e produção, e não na circulação de mercadorias, que, inclusive, constitui um elemento essencial do revisionismo, que tomou conta dessa mesma esquerda de que você fala com propriedade, contaminando o pensamento marxista, principalmente, na intelectualidade acadêmica, chafurdada no revisionismo, citando Marx, para negá-lo. Por outro lado, Lênin foi quem melhor definiu e fundamentou o momento econômico e político que vivemos, e que, conflui para a agudização e para a seguinte superação das contradições da sociedade capitalista, como previu Marx. Voltando à Lênin, estamos vivendo mundialmente a hegemonia quase absoluta do imperialismo e de suas guerras (de rapina e interimperialistas), cuja exceção são as guerras e revoluções de libertação nacionais. E, os pontos tocados pelo seu artigo e pelo que tento pontuar agora são o pano de fundo da crise que vive a esquerda mundial, e que se vê expressada no Movimento Comunista Internacional, em sua luta de duas linhas intensa que se dá, em face da reorganização do internacionalismo proletário, a partir da aplicação teórica e prática de princípios que dispensam qualquer revisão, mas, sim, a correta análise da realidade concreta e a disposição para fazer acontecer o que representa a única saída para a Humanidade, da encruzilhada a que está, que são as revoluções de nova democracia, nos Países dependentes do capitalismo central, e de revoluções socialistas, nos países adiantados, contribuindo, dessa forma para a revolução proletária mundial. Uma característica fundamental que aponto como comum ao revisionismo, é a completa ausência da apresentação da revolução, com todos os seus horrores, como caminho de libertação de toda a Humanidade do jugo desse sistema irracional e inumano imposto pelo capital monopolista mundial. Saudações de nova democracia! Abraço,

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