A teoria do Quinto Império
A crença e luta pela construção do Quinto Império não é um conceito exclusivo do povo português. Pelo contrário; esteve presente no imaginário da maioria dos povos na Idade Média. Em geral esteve associado às concepções que chamamos de milenaristas, próprias das religiões monoteístas, particularmente o cristianismo e suas diversas seitas, embora tenham aspectos próprios em que se diferenciam. Presume-se que o conceito do Quinto Império tenha surgido da interpretação dada às profecias do Profeta Daniel, exposta no Velho Testamento.
A Bíblia relata a historia de Daniel, um jovem judeu que por volta do ano 597 AC foi deportado para a Babilônia onde alcançou uma posição notável na corte do rei Nabucodonosor. Segundo a Bíblia ele teria encantado o rei pela sua inteligência e principalmente por saber interpretar os sonhos dele. A interpretação mais famosa, e que serviu de inspiração para a lenda do Quinto Império, é aquela que fala de um sonho que Nabucodonosor teve e que nenhum dos sábios da corte sabia interpretar. Guiado por Deus, Daniel se prontificou em interpretá-lo caindo assim nas graças do soberano da Babilônia.
O sonho da estátua.
No segundo ano de seu reinado, Nabucodonosor teve um sonho, que o perturbou tão profundamente que não conseguia dormir.Então o rei ordenou que chamassem os magos,os astrólogos, os feiticeiros e os caldeus para explicar-lhes seus sonhos. Eles vieram e compareceram diante do rei.Ele disse-lhes: “ Tive um sonho e meu ânimo se perturbou pelo desejo de encontrar sua interpretação. Os caldeus responderam ao rei:”Ó rei, vive para sempre! Conta o sonho a teus servos, e nós te daremos a interpretação!Respondeu o rei aos caldeus: Esta é a minha decisão: se vós não me revelardes o sonho e sua interpretação, sereis esquartejados, e vossas casas serão transformadas em monturo.Se porém me declarardes o sonho e sua interpretação,recebereis de mim dádivas, presentes e grandes honrarias.Declarai-me, pois o sonho e sua interpretação. Eles replicaram: “Que o rei conte o sonho a seus servos e nós daremos a interpretação”. Respondeu o rei: “Vejo bem que quereis ganhar tempo porque sabeis que tomei uma decisão. Se não me disserdes qual foi o meu sonho uma só será a vossa sorte; pois preparastes respostas falsas e astutas, na espera que os tempos mudem. “Dizei-me, então, o sonho e eu saberei que sois capazes de dar-me também a interpretação”. Os caldeus responderam ao rei: “Não há ninguém no mundo que possa satisfazer a exigência do rei; com efeito, nenhum rei, por mais poderoso e grande que seja, pediu semelhante coisa a algum mago, adivinho ou caldeu. A coisa que o rei pede é difícil, e não há quem possa revelá-la ao rei, a não ser os deuses, mas eles não moram com os homens”. Então o rei, irritado e muito furioso, ordenou que fossem mortos todos os sábios da Babilônia. E decreto foi publicado, e os sábios estavam para ser mortos. Daniel e seus companheiros foram procurados para ser mortos. Daniel explica o sonho- Mas Daniel dirigiu-se com palavras sábias a Arioc, chefe da guarda do rei, que tinha saído para matar os sábios da Babilônia. Disse ele a Arioc, oficial do rei: ”Por que esse decreto tão severo da parte do rei?” Então Arioc explicou o caso a Daniel. Esse foi pedir ao rei que desse um prazo para que pudesse dar ao rei a interpretação. Depois Daniel e informou a seus companheiros Ananias, Misael e Azarias, exortando-os a implorar a misericórdia do Deus do céu a respeito desse mistério, para que Daniel e seus companheiros não fossem mortos junto com o resto dos sábios de Babilônia. Então o mistério foi revelado a Daniel numa visão noturna; por isso Daniel bendisse o Deus do céu. Daniel tomou a palavra e disse: “Que o nome de Deus seja louvado por todo o sempre, porque a ele pertence a sabedoria e o poder. É ele que alterna tempos estações, depõe os reis e os eleva, concede a sabedoria aos sábios, aos inteligentes o saber coisas profundas e ocultas, e sabe o que está nas trevas, e a luz mora com ele. Eu vos agradeço e vos louvo, Deus de meus pais, que me destes sabedoria a força, me manifestastes o que vos pedimos e nos revelastes o sonho do rei.” Então Daniel foi ter com Arioca quem o rei tinha encarregado de matar os sábios da Babilônia, apresentou-se e disse: “Não mates os sábios da Babilônia, mas conduze-me ao rei, que eu lhe revelarei a interpretação do sonho”. Arioc conduziu depressa Daniel a presença do rei e lhe disse: “Encontrei um homem entre os judeus deportados, o qual dará a conhecer ao rei a interpretação. O rei disse então a Daniel, chamado Baltazar; “És realmente capaz de revelar-me o sonho que tive e a sua interpretação?”Daniel diante do rei respondeu: “O mistério que o rei quer saber não pode ser revelado, nem por sábios, nem por astrólogos, nem por magos, nem por adivinhos; mas há um Deus no céu que revela os mistérios e ele revelou ao rei Nabucodonosor o que acontecerá no decurso dos tempos. Teu sonho e visões de tua mente, quando estavas em teu leito,são estes: Ó rei, os pensamentos que te vieram a mente enquanto estavas em teu leito refere-se ao futuro; e aquele que revela os mistérios te manifestou o que vai acontecer. A mim foi revelado este mistério, não porque eu possuo uma sabedoria superior a todos os outros viventes, mas para que seja dada ao rei sua interpretação e tu possas conhecer os pensamentos de teu coração. Tu estavas olhando, ó rei, e viste uma grande estátua; uma estátua enorme, de extraordinário esplendor, estava de pé diante de ti com um aspecto terrível. Tinha a cabeça de ouro puro, o peito e os braços de prata, o ventre e as coxas de bronze, as pernas de ferro e os pés, em parte de ferro e em parte de argila. Enquanto estavas olhando, uma pedra se desprendeu da montanha, mas não por mão humana, e foi bater nos pés da estátua, que eram de ferro e argila, e os despedaçou.Então se despedaçaram também o ferro; a argila, o bronze,a prata e o ouro e tornaram-se como palha das eiras do verão; o vento levou-os embora sem deixar vestígios,; mas a pedra a pedra que tinha batido na estatua tornou-se uma grande montanha que encheu toda a terra. Este foi o teu sonho; agora daremos ao réu sua interpretação. Tu, ó rei, és o rei dos reis, ao qual Deus do céu concedeu o reino, o poder, a força e glória. Ele entregou em tuas mãos os filhos dos homens, onde quer que habitem,os animais dos campos,as aves do céu,;te concedeu o domínio sobre todos eles; tu és a cabeça de ouro, Depois de ti surgira um outro reino, inferior ao teu, depois um terceiro, de bronze que dominará sobre toda a .terra Haverá depois um quarto reino, duro como o ferro. Como o ferro quebra e despedaça tudo, assim este reino quebrará e triturará tudo. Como vistes, os pés, os dedos, eram em parte de argila de oleiro, e em parte de ferro: isto significa que será um reino divido mas terá algo de solidez, de ferro, porque viste o ferro misturado com a argila mole. E como os dedos dos pés eram em parte de argila e em parte de ferro, assim uma parte de reino será forte e outra parte frágil. Viste o ferro misturado com a argila: significa que as duas partes se unirão por meio de matrimônios, mas não se tornarão uma só coisa, pois o ferro não se funde com a argila. No tempo desses reis, Deus do céu, fará surgir um reino que jamais será destruído e não será transmitido a outro povo, triturará e aniquilara todos esses reinos, mas ele durará para sempre, exatamente como vistes a pedra desprender-se do monte, não por mão humana, e triturará o ferro, o bronze, a argila, a prata e o ouro. O grande Deus revelou ao rei o que sucederá daqui em diante. O sonho é verdadeiro e digno de fé a sua interpretação.
(in, Daniel-2-3).
Esta passagem da Bíblia, do sonho de Nabucodonosor, tornou-se uma das mais conhecidas durante a Idade Média, sendo cultuado tanto nos reinos cristãos da Europa, quanto pelos judeus, que aquela altura tinham se disseminado por todo o continente europeu. . Ele mostrava ao povo a fragilidade dos reinos terrestres, que, por mais que mostrassem que eram fortes e indestrutíveis se esfacelariam como a argila e demais materiais da estátua do sonho do rei, pela força do Deus do céu. Por outro lado, este sonho apontava para um novo reino, um Quinto Império, este sim indestrutível, pois se basearia na força divina, na fé em Deus do Céu, e seria então o último reino sobre a terra.
Cabe aqui uma reflexão sobre o papel da cultura judaica na formação da civilização lusitana, na sua expansão e também um dos elementos que considero causador do seu declínio, através do que se convencionou chamar a “questão judaica”.
A Questão Judaica
Os judeus viviam na Península Ibérica desde os tempos românicos. Com momentos de tolerância e outros de perseguições, eles se firmaram durante séculos, atravessando as diversas civilizações que foram erigidas na Penisula. Em geral suas comunidades eram numerosas e detinham o conhecimento das ciências, notadamente no campo da medicina e o comercio- formava uma elite cultural, uma camada superior da sociedade, privilegiada do ponto de vista do dinheiro e do saber. A própria característica religiosa do judaísmo impelia-os para uma situação em que seus descendentes cursassem a escola e obtivessem o conhecimento indispensável para a sobrevivência de um povo que não tinha pátria. Mas, embora tivessem grandes prestígios nas sociedades em que viviam eram segregados, não se integrando de forma plena. Viviam em comunidades, que na Península Ibérica tinham o nome de judiaria, ali professando seus cultos e cultuando suas tradições. No período das invasões mouras, já no século XII, procuraram os reinos cristãos da Península, para fugir as perseguições do Islã, e ai obtiveram relativa liberdade.
Quando da formação de Portugal as habilidades deste povo foram aproveitadas na construção do novo reino, mas os cristãos, a exemplo dos mouros, desenvolveram uma política preconceituosa, isolando-os cada vez mais do conjunto da população. Isto teve o seu ápice quando do famoso Decreto de 1492 dos reis cristãos de Castela e Aragão que expulsou todos os judeus daquele reino, sob pena de prisão ou morte. Este fato teve uma imensa repercussão na Península, levando a uma imensa emigração do povo judaico para o reino de Portugal, que naquela época era governado pelo rei D.Manoel.
Esta imensa leva de judeus, cerca de 100 mil, que se deslocou para Portugal, veio a se somar às comunidades judaicas portuguesas, que naquela época já eram bastante expressivas. Obtendo a promessa do rei português de que não seriam perseguidos, instalaram-se em Portugal, pagando para isso um imposto especial impingido pelo poder real. Mas, isto durou pouco: como foi grande a oposição da população cristã a chegada desses novos judeus, o rei, em 1496, resolveu expulsar também os judeus do reino português, e em um decreto, deu um prazo para que eles, tantos os judeus castelhanos como os portugueses, saíssem do país.
Novamente volta a comoção a essas comunidades, onde famílias desesperadas juntam seus pertences sem saber para onde ir. Mas, eis que se dá um fato inusitado: o rei aconselhado por alguns de seus conselheiros que vêem neste ato uma perspectiva de prejuízo para a economia portuguesa, dado a que grande parte das riquezas das famílias judaicas irá com elas, além da falta de um grande numero de profissionais liberais, notadamente, médicos, engenheiros, comerciantes, entre outros, resolve, para surpresa geral, anular o seu ato e permitir a permanência dos judeus, desde que eles abjurem a religião que professavam até então, e tornem-se cristãos. Como muitos dos judeus não concordavam com isto, o rei, num ato de força, batizou coletivamente os seus filhos, transformando-os compulsoriamente em cristãos. Além do mais fechou para eles a saída pelo mar, impedido, na prática, que deixassem o país, pois eles não podiam sair pela Espanha.
Daquele momento em diante, estas comunidades foram proibidas de professarem suas religiões, suas sinagogas foram demolidas ou transformadas em igrejas e também derrubados os muros das judiarias, guetos onde viviam os judeus. Para distinguir uns dos outros, passou-se a falar de cristãos novos e cristãos velhos. Vã tentativa do poder real! Estes novos cristãos, na verdade não abandonaram seus ritos religiosos, pois passaram a desenvolvê-los clandestinamente, na intimidade de suas casas. Eram cristãos publicamente, para as autoridades e os vizinhos, e na calada da noite judeus fervorosos, pois ninguém será capaz de eliminar uma fé milenar através de um decreto.
Vejamos aqui como o escritor Oliveira Martins descreve aqueles dias:
“Um dia, o rei D. Manoel tomou a si o papel de Herodes, e como um sátrapa mandou arrancar aos pais e batizar todos os filhos menores de catorze anos, ä qual obra não tão somente foi o grão terror misturado com muitas lágrimas, dor e tristeza dos judeus, mas ainda de muito espanto e admiração dos cristãos”. Ao mesmo tempo, num prazo breve, os judeus haviam de receber o batismo, ou embarcar em navios que se lhes não davam. Era um choro, uma aflição desoladora, e Lisboa parecia uma Babilônia com turbas dos cativos eleitos de Jeová. Os malsins furavam pelas ruas, farejavam pelas casas à busca das crianças: as mães escondiam os filhos nos seios, fugiam clamorosas, caiam desgrenhadas soluçando. Muitas preferiam afogar os inocentes, arremessando-os do seio ao fundo dos poços ou às águas do rio. E a desolação era tanta que os próprios cristãos davam guarida aos infelizes perseguidos. Por outro lado, em Lisboa, onde, para embarcar, os tinham vindo de todo o reino, os Estáos da Ribeira apresentavam o aspecto de um acampamento antigo. Albergadas em barracas as famílias, vinte mil judeus esperavam as naus de embarque, contando hora a hora o prazo da redenção. Esse prazo correu, sem virem as naus; por isso forma todos convertidos à força, porque teimosos ficavam cativos.Este batismo forçado, causa de tantas desgraças posteriores, revela a política dúbia e falsa de um governo que não tinha a coragem purista do castelhano, depois de ter perdido o bom-senso e a humanidade dos tempos anteriores.Desumano, os atos eram ao mesmo tempo covarde,pois o cronista diz com franqueza que se procedia assim com os judeus por serem párias,sem rei nem terras,não se podendo já fazer outro tanto aos mouros,com medo das represálias dos soberanos maometanos.
(in, Historia de Portugal, Oliveira Martins)
A perseguição aos judeus para mim, e muitos autores, foi um dos fatores determinantes que moldaram a característica do povo português e por extensão o povo brasileiro.
A princípio duas mentalidades foram formadas, viciosas e inimigas. Assim eram segundo José Hermano Saraiva:
“… a do cristão-velho, detentor da verdade, inimigo da inovação, farejador de erros alheios, dogmático e repressivo, e a do cristão-novo, dissimulado, messianista, acosado, intimamente revoltado, não solidário com o conjunto da comunidade nacional que o repele e a que ele no fundo não reconhece como sua…
(in, Historia Essencial de Portugal, Jose Hermano Saraiva ).
A Inquisição em Portugal,
A chegada da Inquisição a Portugal só fez acirrar tal situação. Ela não tem em Portugal, como inimigo principal, a heresia luterana que avançava em toda a Europa. Nesse caso especifico o seu alvo principal só poderia ser um: os judeus, que viviam em Portugal, e a forma como ali apareciam – os cristãos-novos. Ela apoiou-se em setores conservadores da comunidade cristã e teve a nobreza como seu maior aliado interno, subjugando desta forma seus opositores dentro da própria Igreja,notadamente os Jesuítas.
A Inquisição começa oficialmente suas atividades em Portugal no ano de 1534, embora a Bula Papal só tenha sido assinada no ano de 1536, sendo Gil Vicente um dos primeiros a ser atingido pela sua força. Ela despeja sua ira contra os cristãos-novos, e o argumento tornado público é o de que os judeus professavam secretamente seus ritos ( criptojudaismo) . Mas, fica claro que por trás deste argumento está a tentativa de se apropriar das fortunas dos homens de negócios das comunidades de cristãos-novos, excelente fonte de receitas. De uma forma ou de outra a Inquisição vem reforçar o sentimento de intolerância existente em relação às comunidades judias. As minorias religiosas, notadamente os judeus, passam a viver momentos muito piores do que viviam antes. A sociedade portuguesa, até então mais tolerante, impõem um modo de viver quase que único, não aceitando a diversidade. Sendo o país muito religioso facilmente se torna policial, o que vai ter reflexos na própria cultura e nas artes como um todo. A censura policial do Santo Oficio impedia livros e publicações que não estivessem de acordo com os princípios religiosos em vigor. Os livros estrangeiros eram proibidos e a sua posse podia levar à morte; a produção intelectual devia passar pelo crivo dos censores. Desta forma, Portugal viu-se isolado do movimento intelectual e literário que impulsionava a Europa nos séculos XVI a XVII.
Jose Hermano Saraiva nos diz que:
“… Nos cento e quarenta e três anos que vão até 1684 foram queimadas mil trezentas e setenta e nove pessoas. Depois o ritmo desceu, mas as execuções continuaram até ao tempo do Marques de Pombal. O maior número dos condenados à morte é formado por acusados por judaísmo, mas há muitas condenações por feitiçaria e por depravação de costumes. As fogueiras são, entre várias formas assumidas pela atividade inquisitorial, o que, pela sua publicidade espetacular, se tornou mais celebre e que ainda hoje causa maior horror. Mas houve outros aspectos menos visíveis, mas de conseqüências não menos grave: a dimensão da denuncia e a censura intelectual.” ( in, Historia Concisa de Portugal, Jose Hermano Saraiva ).
( in, História Concisa de Portugal ,Jose Hermano Saraiva )
É mais adiante …
Os regulamentos inquisitoriais foram aplicados com todo o rigor. Num país onde os serviços públicos se caracterizaram sempre pela má organização e pela ineficiência o Santo Ofício constitui uma surpreendente exceção. Durante uma parte do século XVI e ao longo de todo o século XVII, a Inquisição conseguiu manter a atividade cultural portuguesa isolada do movimento das idéias européias, movimento que precisamente nesta época foi extremamente intenso e inovador. À ampla e aberta importação cultural da época do humanismo sucedeu um perigoso e muito restrito fio de contrabando de idéias e livros. Mas à ação isolada associou-se a ação intimidadora: o escritor sabia que, entre ele e o prelo, estava a Inquisição; o primeiro leitor seria o censor. Não valia apenas arriscar, e de fato foram muito poucos os que se arriscaram. A produção literária afastou-se então de tudo o que pudesse apresentar problemas. A cultura passa das idéias para as palavras. O estilo reflete essa mudança: evolui para um crochê estilístico engenhoso em que o pensamento se esconde em ambigüidades e em que resta sempre a possibilidade de dizer que não era aquilo o que se queria dizer. Mas nos temas dominantes serão os de futuro, os que não implicam em risco: seráficos, hagiológicos, edificantes, congratulatórios”.
( in, História Concisa de Portugal ,Jose Hermano Saraiva )
Claro que isto trouxe prejuízos inestimáveis ao povo português e sua proposta de uma nova civilização, que se propunha a ser o Quinto Império. Paradoxalmente a mesma fé cristã que tinha impulsionado a expansão, assimilando naquele momento a utopia que existia de se criar uma nova civilização, foi a mesma, que com a sua intolerância, através do instrumento da Inquisição, que freou o desenvolvimento de Portugal. Os judeus eram parte integrante da economia portuguesa, isto era um fato inquestionável. Se não o fosse, por que o rei D.Manoel vacilou na sua expulsão?
A ação inquisitória, a perseguição a sua cultura, o seqüestro de seus bens iria agravar o processo de decadência econômica, política e cultural do país,
Ao tentar cercear os judeus, na verdade a Inquisição cerceou a todo o povo português, privando-o do desenvolvimento cultural vivido pela Europa no Renascimento. Aprofundou a discórdia e dividiu o povo, até então unido pela utopia do Quinto Império.
As ideias do Padre Antônio Vieira
Na época da Restauração, quando a Casa de Bragança chega ao poder, através do Duque de Bragança, que se tornou o rei D.João IV, o Padre Antonio Vieira, seu amigo, e conselheiro, tornou-se um importante arauto do fim da política de discriminação dos judeus em Portugal. Ele entendia que era preciso trazer de volta os judeus, que naquele momento tinham, na sua grande maioria abandonado Portugal e se estabelecido em países da Europa ou mesmo nas colônias, onde a mão da Inquisição tinha mais dificuldades de alcançá-los. Ele percebeu que as economias de países como a Inglaterra e Holanda,ao contrário de Portugal e Espanha, souberam coexistir com a presença dos judeus, sabendo deles tirar vantagem para o desenvolvimento de suas nascentes economia capitalista, superando a fase meramente mercantilista.
Vieira, como muitos pensadores do século XVII, tinha predileção por alguns profetas. Em sua obra destacam-se o pensamento dos profetas Isaias e Daniel, e isto dava consistência as suas idéias que viam Portugal como a nação que iria construir o “Império dos mil anos”. Ele também sabia que esses judeus expatriados, embora fora de Portugal, mantinha a cultura portuguesa e, na sua maior parte, eram pessoas de recursos que seriam muito úteis se retornassem. Desta forma, Portugal poderia ter os recursos necessários para empreender o seu destino, a construção de um novo processo civilizatório, que englobaria os povos recém descobertos, os judeus e os cristãos portugueses.
O professor Clovis Bulcão, em sua obra biográfica sobre Vieira, descreve os principais pontos em que se assentava a sua estratégia para que Portugal erigisse o Quinto Império.
“A percepção econômica de Vieira é fruto única e exclusivamente de suas observações do mundo. A proposta de construção do Quinto Império nos mostra que tinha um olhar muito atento. O plano que levaria os lusitanos ao comando do mundo seria construído da seguinte maneira: 1. A criação de uma companhia de comércio, nos mesmos moldes das companhias holandesas; 2. Os investidores dessa companhia não poderiam ter seus bens confiscados pelo Santo Ofício, com a conseqüente diminuição drástica dos poderes inquisitoriais; 3. Caminhos seriam abertos para que os capitais de judeus-portugueses e de cristãos-novos fossem repatriados; 4. Como a comunidade de judeus-portugueses já estava espalhada pelo mundo, o comercio internacional seria automaticamente dominado por Portugal- o uso do português, que já era a língua do comercio internacional, só facilitaria esses planos de conquista; 5. O país atrairia comerciantes de países neutros e inimigos da Espanha, como França, Genova, Suécia, Dinamarca e Veneza; 6. Quando a engrenagem estivesse em funcionamento, o rei seguiria para o Brasil.”
( in, Padre Antonio Vieira- Um Esboço Biográfico, Clovis Bulcão)
Padre Antonio Vieira, como muitos naquela época, foi vivamente influenciado pelas trovas de um sapateiro da região de Trancoso de nome Gonçalo Anes, mais conhecido como Bandarra.
As trovas de Bandarra e o Desejado
Segundo o professor Clovis Bulcão, esse personagem viveu em Portugal no período que antecedeu a morte do jovem rei D.Sebastião,por volta1530/1546, teria criado trovas que se tornaram bastantes populares em Portugal, principalmente entre a araia-miuda.Trovas ritmadas que anunciavam a vinda de um salvador, um rei que destruiria o império turco e uniria os cristãos e judeus na construção de um novo império, que duraria mil anos. Esse rei tinha a alcunha de “o Encoberto”.
Eram trovas em estilo medieval, segundo o autor baseado nas Sagradas Escrituras, que embora fossem proibidas pela Inquisição tornou-se muito popular, sendo decorada e recitada de cor, nas suas 159 quadras, pela população, principalmente os cristãos-novos.
Quando na Batalha de Alcácer-Quibir houve o desaparecimento do rei D.Sebastião e a morte e aprisionamento de todo o exército português, atribui-se ao rei D.Sebastião cujo corpo não fora encontrado, o papel do Encoberto das trovas de Bandarra), sendo que grande parte do povo passou a creditar que ele voltaria para liderar um novo exercito e construir o Quinto Império. A crença nesta volta e no papel de salvador de D.Sebastião ficou conhecido nos séculos que a precederam com o nome de sebastianismo, e até hoje subsiste no imaginário popular das populações colonizadas pelos portugueses.
Mesmo no interior do Brasil, ainda hoje podemos colher fragmentos de historias calcadas nas concepções sebastianistas. É conhecido por todos que Antonio Conselheiro, o mentor de Canudos ,personagem popular de um dos mais importantes acontecimentos da nossa historia, acreditava piamente na volta de D.Sebastião para erigir um novo Império. D.João III, segundo a história, teria tido ao todo dez filhos legítimos e um filho bastardo. Mas, por força do destino, todos eles iam morrendo durante a vida de seu pai. Desses filhos somente um, o príncipe D.João Manoel conseguiu chegar à adolescência, e temeroso quanto ao futuro, o rei, quando ele completou 15 anos, o casou com D.Joana, filha do imperador da Espanha, Carlos V. Mas, mesmo assim este filho não fugiu ao seu destino: no dia 2 de janeiro de 1554 o jovem príncipe faleceu, mas não sem antes deixar grávida, prestes a dar à luz, sua jovem mulher, D.Joana. Todos esperavam ansiosos, o nascimento dessa criança- neta do rei D.João III, tendo em vista que a coroa achava-se ameaçada de ficar sem sucessão, pois uma clausula fatal, existente no contrato de casamento havido entre a infanta D.Maria Manoela de Portugal com o príncipe D. Filipe de Castela, previa que os filhos deste casamento, herdariam o trono português, caso não houvesse herdeiros diretos do trono . Era a temida União Ibérica, que atemorizava o povo e a elite portuguesa.
Vem daí, então, o termo “O Desejado”, quando se referiam ao nascimento desta criança, que acreditavam ser homem. E foi justamente isto o que aconteceu: no dia 20 de janeiro de 1554, dia de São Sebastião, nasceu a desejada criança, e, para felicidade geral: um homem. Estava então salvo o trono português para a Dinastia de Avis, pois embora D.João III tenha morrido três anos depois, o trono pode ser ocupado pelo jovem monarca, que se fez rei aos três anos.
Conhecido pelo nome de D.Sebastião, este rei da Casa de Avis, embora tenha vivido tão pouco, pois morreu aos 4 de agosto de 1578, com apenas 24 anos, tornando-se uma figura presente, como herói mítico, no imaginário popular, tanto de Portugal quanto do imaginário mítico brasileiro, moldando, sem duvidas, a nossa forma de ser. Seria ele o Encoberto, tal como previra o poeta-sapateiro, que voltaria para construir o novo Império, que traria a felicidade eterna para os povos da terra. A morte deste jovem rei criou as condições para que Portugal perdesse a independência e passasse a ser uma província da Espanha no que se convencionou chamar União Ibérica.
É claro que o episódio da chegada ao trono do rei D.Sebastião e sua postura messiânica em relação a expansão do império português se dá tendo como pano de fundo a decadência econômica do projeto ultramarino, notadamente nas colônias do oriente.
Portugal, naquele momento já não era a única nação européia a comercializar com os impérios orientais, sofrendo a forte concorrência de nações como a Holanda, Inglaterra, França e Espanha. Tornara-se muito caro manter os seus pontos comerciais de ultramar e sustentar uma cara burocracia estatal e uma nobreza parasitária. Todos os bens de consumo da corte portuguesa viam de outros países e o campo estava desabitado, sem produção agrícola suficiente. Criara-se, então, um sentimento de que os velhos tempos, do esplendor lusitano, deveriam voltar. E o sebastianismo, sem duvidas, cumpria o papel de catalisador dos sonhos, da Utopia do Quinto Império.
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