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Estranhamentos,lamentos e outras rimas-Alaor Junior

arlindenor pedro
Por arlindenor pedro 7 leitura mínima

A pergunta base é: você já se sentiu um estrangeiro dentro do seu meio? Sim?! Trocando em miúdos, tem enfrentado sensações justificadas por uma agonia que se podenomear por estranhamento? Então, essa condição desconfortável e inusitada vem acometendo muitos sujeitos, em especial os que se permitem enxergar o mundo sob as lentes da realidade. A questão é que tais lentes retiram dos que se colocam como vanguardistas, intelectuais, artistas, sensíveis, enfim, verdadeiramente humanos, os álibisnecessários à perpetuação ideológica de fantasias que deslisam da ingenuidade ao comodismo, e que sustentam o funcionamento de sistemas como o capitalismo. A necessária reavaliação dos meandros de tal sistema é mergulho complexo, mas, possível, afinal a percepção corajosa e ousada deve focar uma realidade nua, despida de falácias, sem o verniz tendencioso das elites.

estrangeiros em um mundo que nos é hostil

A mídia televisiva trouxe a público uma reportagemsobre a 60ª Bienal de Arte de Veneza, nominada de ‘StranieriOvunque’, e que me chamou a atenção, pois veio repleta de surpresas suscitando reflexões; o chamado do evento, traduzido para ‘estrangeiros em todo lugar’ faz referência ao nome de um coletivo de Turim que nos anos 2000 lutou contra a xenofobia e o racismo na Itália. Outra peculiaridade é a curadoria, dada ao brasileiro Adriano Pedrosa, diretor artístico do Museu de Arte de São Paulo (MASP). Sobre o nome e a postura da exposição, são interessantes os comentários do curador: “… Aonde quer que você vá e onde quer que esteja, você sempre encontrará estrangeiros – eles / nós estamos em toda parte… Não importa onde você esteja, você é sempre verdadeiramente, e no fundo, um estrangeiro”.

Com referência às reflexões, estas servem aos questionamentos das tais relações líquidas, baseadas nos conceitos de Zygmunt Bauman, que banham o mundo atual e, não diferente, a sociedade brasileira: fragilidades, inconstâncias afetivas, vaziez, futilidade, insegurança, deturpação conceitual entre outras, se mostram como condições que alimentam um senso de estranhamento, associado à angústia, que nos abalroa, e tal fragilidade é utilizada sistemática e maliciosamente pelas elites dominantespara perpetuar o domínio sobre os que tocam as engrenagens dos meios de produção, estendendo relações de dependência. Exatamente assim, no atropelo provocado por massas alienadas, manipuladas por minorias. Mas o que isso tem a ver com a arte?

A arte é importante plataforma de conscientização, afinal traz o ‘efeito desalienante’, libertário, uma vez que serve como viés reflexivo, induzindo ao refino cultural, questionamento de visão de mundo, autoafirmação de identidades, pauta de denúncias, condições e posturas, enfim, propostas evolutivas. Mais do que nunca, em um mundo de informações extremamente velozes e plurais, as palavras que formam conceitos são veiculadas com peso, sim, ferramentas fundamentais aos artistas do fraseado (recorro ao exemplo da arte literária), como disse Olavo Bilac, os ourives das palavras, elas trazem a importante componente afetiva que transita desde a irônica ojeriza até a exultante aceitação, e no meio desse intervalo, se debate um elenco de possibilidades que convidam o leitor/telespectador a desenvolver e exercitar o senso crítico. Mas apenas a assunção deste senso basta para posicionamento contra o capitalismo que estratifica a sociedade? Não, a ação deve, necessariamente, ultrapassar areflexão, as práticas devem se estabelecer como parâmetrosexequíveis.

No caso da Bienal, fica explícito que o projeto foi além do papel, a exposição traz diferenciais concretos,realizados, que nem sei se posso associar a um refino evolutivo de consciências, mas, a abertura de oportunidades a artistas  antes não contemplados é fato, tudo norteado pela concepção de estran[geirismo]hamento, como por exemplo, osautodidatas e populares, colocados à margem do mundo da arte, os queers, por vezes rejeitados, por se inscreverem em uma condição de sexualidade diferenciada de padrões estabelecidos pelas classes dominantes, os indígenas que enfrentam alienação social, sentindo-se estrangeiros pela sua condição originária.

Representantes da aldeia Huni Kuin, situada no Acre, produziram um painel monumental com símbolos da sua terra e cultura, além dessa há outras obras de vulto. Também foi alvo de inclusão o negro Julian Creuzet, agora personalidade, da Martinica, colônia francesa no Caribe,se apresentando como contador de histórias que transcendem os limites geográficos. Esperamos que os limites conceituais e culturais sejam transpostos da mesma forma. Muitos desses artistas nunca foram evidenciados em cenário internacional. Mas qual o espanto nisso?

Talvez as reflexões sobre as condições de ‘estranhamento’ tenham reforçado o pensamento crítico, e assim as propostas do evento venham sob o mote de umdesafio, afrontando conceitos engessados e concepções contemporâneas em temas como moralidade, etnia, religião, liberdade, política, estrutura familiar, relações etc. Falando um pouco de literatura, a obra de Clarice Lispector expressa oestranhamento, e aqui não há qualquer lamento, mas, a produção de um estado de espanto no leitor que com ela se relaciona, sua narrativa debruçada sobre fluxos de consciência e epifanias traduzem a noção filosófica de Platão quanto àorigem do espanto, aos questionamentos que emergem sobre a própria vida: as questões sobre a origem do mundo, o evento da morte e suas consequências, entre outros.

Há um formalista russo chamado Viktor Chklovskique elaborou o artigo “A arte como processo” (1917) e que trata desse ‘estranhamento – ostranenie’, efeito produzido pela arte literária para nos distanciar da forma como apreendemos o mundo e a própria arte, gerando pelo desconforto ou espanto frente ao inusitado nas narrativas, percepções sob outras instâncias, desconstruindo conceitos pré-concebidos e oportunizando visões em novas dimensões. Clarice faz exatamente isso com o seu texto, nos causa um certo espanto, por uma ótica diferenciada, paradoxal, olhar estrangeiro. Sem entrar em maiores aprofundamentos, Freud também abordou o conceito de estranhamento, construído nas suas argumentações a partir de 1919, mas, de forma mais densa, atrelado às situações que nos causam angústia e inquietação, pelo processo do que é ‘infamiliar’, repetitivo, porém quecertamente merece ser pauta de outros textos deste que vos escreve. 

Enfim, recorro às palavras de Ana Maria Maiolino, artista brasileira de 81 anos, premiada com o Leão de Ouro, em reconhecimento à sua carreira de escultora em argila crua. Sobre a Bienal de Veneza, ela disse tratar-se de “evento singular, um ato político… Trouxe pessoas que nunca estiveram presentes na hegemonia da arte europeia e norte-americana”. Bem isso, que haja esse estranhamento mobilizador contra a colonização cultural, abrindo brechas nas redomas exclusivistas criadas pelas elites. Se já entendemos que não basta, tão somente, o pensamento crítico para fazer frente a um sistema estabelecido, mofado mais ainda presente pela insistência burguesa, que ações sejam multiplicadas, privilegiando o inicial, o olhar novo, diferenciado, e que a arte continue a ser o fermento do estranhamento, cumprindo a sua função libertária. Que possamos fomentar propostas e degustar a evolução, mas não nos privemos de rechaçar as estagnações e o retrocesso. Sim, que o livre pensar promova o saudável espanto. Aqui tem valia o dito popular: “pedra que não rola, cria limo”.

Alaor Junior 21/04/24

 

 

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Libertário - professor de história, filosofia e sociologia .
10 Comentários
  • Ao me deparar com o texto sobre a 60ª Bienal de Arte de Veneza, intitulada ‘Stranieri Ovunque’, fui envolvido por uma tapeçaria complexa de reflexões que a obra propõe. A menção ao coletivo ‘Stranieri Ovunque’, originário de Turim, e sua resistência contra a xenofobia e o racismo na Itália nos anos 2000, ressoa profundamente com os desafios contemporâneos de nossa sociedade.

    O curador brasileiro Adriano Pedrosa, ao assumir a direção artística.

    Você trouxe à tona o conceito de ‘relações líquidas’ de Zygmunt Bauman, que descrevem as fragilidades e inconstâncias de nossa sociedade contemporânea. Essas reflexões ressoam de maneira poderosa ao examinarmos o papel da arte como uma ferramenta de conscientização e transformação social.

    A arte, como bem apontou, tem o poder de desalienar, libertar e induzir ao questionamento. Ela atua como um espelho que reflete as complexidades e contradições de nossa realidade, incentivando o refinamento cultural e o desenvolvimento do senso crítico.

    A Bienal de Veneza, ao destacar artistas marginalizados e suas experiências, oferece uma plataforma para a expressão de vozes que muitas vezes são silenciadas. A inclusão de artistas como os representantes da aldeia Huni Kuin e Julian Creuzet é um testemunho poderoso da diversidade e riqueza da arte global.

    Suas reflexões sobre ‘estranhamento’, inspiradas na obra de Clarice Lispector e Viktor Shklovsky, acrescentam camadas adicionais de profundidade ao diálogo. A arte, com sua capacidade de provocar espanto e desconforto, desafia nossas percepções convencionais e nos convida a ver o mundo através de novas lentes.

    Concordo plenamente com sua conclusão de que a arte deve continuar sendo um fermento de estranhamento e transformação. Ela tem o potencial de desafiar as normas estabelecidas, promover o diálogo intercultural e inspirar a mudança social.

    Em suma, a Bienal de Veneza serve como um lembrete poderoso da importância da arte como uma força motriz para a mudança, um catalisador para o pensamento crítico e uma celebração da diversidade humana. Que continuemos a valorizar e apoiar iniciativas que promovam o entendimento mútuo, a inclusão e o respeito pela nossa rica tapeçaria cultural.

  • Esse texto me tocou profundamente, principalmente pq estou passando por isso neste exato momento, bela reflexão e meus profundos e sinceros parabens.

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