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Não adianta colocar uma peneira sobre o sol: o Brasil está rachado e existe um sentimento profundo e coletivo de que temos que trilhar novos caminhos. Os últimos resultados eleitorais apontam para isto: não existe até agora um caminho a seguir que seja hegemônico, e que permita uma maioria que nos lídere para a superação desta crise, crise que cada vez mais se aprofunda. Os analistas de plantão, refletindo sobre os últimos resultados eleitorais, se esforçam para acentuar o predomínio de um segmento, que seriam no caso os partidos de centro-direita. Para eles, haveria, então, o predomínio da centro-direita, etc.Mas isto é inútil! Fica claro que tais análises não dão conta da real situação. Elas não levam, por exemplo, o acentuado número de eleitores que partiram para abstenção, isto em um país onde o voto é obrigatório. Na verdade, o pacto social que se configurou com a Constituição de 1988, a chamada“ Constituição Cidadã”, implodiu. E queiramos ou não, ele deve ser rediscutido. Esta é a causa real da nossa profunda divisão. Não adianta apelar para boa vontade. Existem diferentes “visões de mundo”, quais caminhos seguir. E isto deve ser discutido às claras, sem subterfúgios.
A constatação mais clara de que isto é necessário está neste fato que ocorreu durante o auge da crise criada com as manifestações de ruas oriundas do movimento pelo não pagamento das passagens de transportes em São Paulo convocas pelo MPL (Movimento Passe Livre). A presidente Dilma Rousseff encaminhou ao Congresso uma mensagem dizendo ser necessária a convocação de plebiscito para autorizar uma ampla reforma política, o que sem dúvidas resultaria em uma nova Constituição. Desta forma, naquele momento das inúmeras manifestações de insatisfação popular no movimento que entrou para a história como“ Jornadas de Junho de 2013”, ela própria reconhecia que era necessário a construção de um novo“ Pacto Social”, pois aquele construído com a Constituição de 1988 implodiu.
Em sua mensagem, ela dizia: ‘

“É nessa perspectiva que julgamos imprescindível um amplo e imediato esforço conjunto para a renovação do sistema político brasileiro. (…) Por isso, considerando a necessidade de fortalecer o nosso sistema político, sugerimos a vossa Excelência que submeta ao Congresso Nacional a realização de uma consulta popular, na forma de Plebiscito, para que o povo se pronuncie sobre as linhas mestras que devem balizar a Reforma Política que o país tanto necessita”.
Caberia então a pergunta: por que houve então a implosão deste pacto?
Acontece que ele foi construído em cima dos escombros de um mundo que já não existia mais. Foi construído com perspectiva de um mundo capitalista onde ainda era possível a redistribuição de alguma renda para o conjunto da população, buscando se alcançar o chamado “bem-estar social”: uma sociedade, pensavam, sem a crise do trabalho-típica do período fordista que prevaleceu pós-Segunda Guerra Mundial, notadamente na Europa. O fato é que, saindo da ditadura militar, o Brasil chegou atrasado a um mundo que se globalizou com a terceira revolução tecnológica, e que foi também engolido pela crise mundial que ali já estava instalada. Foi necessária então a ascensão dos governos petistas. Eles, com suas políticas populistas, tiveram naquele momento a função de acalmar e conter os setores excluídos da população com a promessa de que todos participariam como cidadãos da produção econômica, tendo direito a se tornarem consumidores. Mas, tal política teve o seu prazo de validade vencido. E isto se deu com o estouro das bolhas das commodities, que até então asseguravam o crescimento do PIB. Como agravamento da crise fez-se, então, água na paz social: a violência explodiu com o povo indo às ruas manifestar sua insatisfação, como nas jornadas de julho de 2013, e com a ascensão da direita que seduziu a classe média ameaçada, com um discurso anti-sistema e a proposta de uma nova sociedade com um perfil conservador. Uma nova direita, que colocou seus fatos expostos, aqui no Brasil e em todo o mundo, e partiu para o confronto com os valores liberais que até então deram o contorno aos Estados Nacionais. O fascismo, o conceito de um Estado forte, entrou então na ordem do dia. Uma forma de administração do Estado Concentrado, em um momento de crise do capitalismo.
Desde a constituição dos Estados Nacionais, com o declínio das sociedades medievais, as sociedades ocidentais seguiram os caminhos dos pactos sociais configurados nas suas constituições, para o ordenamento social e econômico no mundo capitalista que emergiu na Europa. O Leviatã de Thomas Robson e o debate com os contratualistas deu forma aos estados modernos pós-revolução francesa e guerras napoleônicas. Partindo-se dos pressupostos da sociedade de mercado e da “visão de mundo” criada pelo Iluminismo, criou-se um mundo apto a acolher os pressupostos da produção e distribuição da mercadoria. O cerne dessa servidão consentida seria o impulso de autoconservação que dirige toda a ação e conduz à “guerra de todos contra todos”. Para pôr fim a esse estado insustentável e autodestrutivo, é necessário então renunciar ao próprio direito à liberdade de ação e delegá-lo na instância agregadora da soberania estatal. O conflito existente pelo predomínio de uma “visão de mundo” se amalgamou na fórmula onde o Estado não estaria para além da concorrência universal, pelo contrário: ele criaria o monstro da instância agregadora e internamente domesticadora, enquanto simultaneamente prosseguiria na concorrência nas relações externas com outros por meios assassinos. Acontece que a crise interna do capitalismo, crise esta que abalou os seus elementos categoriais, tais como trabalho e geração de mais valor, enfraqueceu ou mesmo implodiu os pactos sociais até então existentes. As levas de imigrantes saídas dos países periféricos, a pressão sob os postos de trabalhos cada vez mais escassos, associados aos conflitos entre nações de uma“ guerra de ordenamento mundial” pós-guerra fria, trouxe um estado de incerteza sobre o futuro e da própria sobrevivência da humanidade. O avanço das mudanças climáticas e o prenúncio do fim das reservas de combustíveis fósseis só vieram acentuar o sentimento de que estávamos entrando em uma nova era, e que mudanças precisam ser feitas na nossa forma de organização social. Na verdade, o declínio do chamado Estado Liberal ficou evidente. E com ele o pacto social da chamada democracia burguesa. O Leviatã precisa então ser revisitado e modernizado, nos diriam os arautos da nova direita.
Em um quadro como este, urge a entrada em cena de novas vozes que tragam ideias de uma sociedade que se organize além da mercadoria e do próprio Estado. Estas vozes se estruturariam com pensamentos que não foram capturados pela forma de ser do estado liberal e não procurassem retroagir no tempo para conceitos medievais de relações sociais: conceitos patriarcais e de supremacia racial e religiosa. O entendimento de unidade global da espécie humana e da formação de íntima integração com a natureza estariam presentes na formação de outra “visão de mundo”, um mundo sem o capitalismo. É necessário que entendamos que tudo o que foi erigido nestes cerca de 500 anos de modo de produção capitalista foi com um único propósito: criar as condições para a produção e circulação da mercadoria e o seu elemento representativo, o dinheiro. Todos os elementos constitutivos do nosso pensamento, tendo o Iluminismo como base, foram criados através do entendimento do fetiche da mercadoria e na necessidade de um progresso que se materializa através da reprodução ampliada do capital. Reprodução esta que não reconhece limites e se choca com a realidade objetiva do planeta em que vivemos. A organização mundial em que estamos imersos, na sua totalidade, existe para a reprodução incessante do capital e nada mais.
O leito natural para o debate sobre o pacto que dá forma à sociedade existente é a construção de uma nova constituição, ao ser ela que dá o ordenamento jurídico de um determinado povo que resolveu viver em sociedade. Em um momento de crise onde a anomia parece o futuro imediato, trazer a discussão para os contornos de uma nova sociedade nos parece ser a forma mais coerente de comportamento. É uma falácia contestar a necessidade de debatermos uma nova constituição com o argumento oportunista de que isto iria fortalecer o pensamento de direita, tendo em vista que no momento o Brasil tem claramente um pensamento conservador e religioso como aparente maioria social.
Um pensamento, uma “visão de mundo’ que opere no nível da transcendência nunca se objetivará se não disputar com os conceitos que operam no nível da imanência e que estão claramente em crise. Uma ideia só se torna aceitável pela sua constância e ações que chegam a corações e mentes. Ocorre que há muito tempo as esquerdas abdicaram de um mundo sem o capitalismo e perderam o espírito libertário que existia nas lutas operárias do início da revolução industrial. Foram abduzidas pelas ideias liberais e hoje são sustentáculos de um mundo que claramente está ruindo. O conceito de mercado tomou a alma dos políticos, dos artistas, dos professores, dos ativistas dos partidos de esquerda que pululam pelo mundo e no nosso Brasil. A luta parlamentar é a única forma de luta que conhecem e o seu dia a dia é de sempre enfrentar uma nova eleição. Após 16 anos onde o poder central no Brasil foi ocupado por partidos de esquerda, o que temos de saldo onde possamos afirmar que foram construídos caminhos para uma nova sociedade que nos levasse à emancipação? A ruína da sociedade liberal, de seus conceitos e estrutura social, é a ruína deste pensamento de esquerda que se tornou conservador. A construção de um novo pensamento se dará na ação da construção de um novo pacto social que se materializará por uma nova constituição. E isto não se dará no Congresso.
Pelo contrário! Os deputados, na sua maioria, não têm interesse em buscar modificar esta situação esdrúxula que está levando à ingovernabilidade e aproxima o país da anomia. Na verdade, a Constituição de 1988, após tantas emendas, circunstâncias, PEC de interesses momentâneos das Frentes Parlamentares, está irreconhecível. Vivemos sob a égide de um estranho Presidencialismo de Coalização, que mais se aproxima de um parlamentarismo caboclo, que não foi autorizado pelo povo brasileiro. Pelo contrário: foi rejeitado por plebiscito. E esta anormalidade se torna mais clara quando verificamos que, na atualidade, mais de 70% do orçamento dos ministérios é consumido pelas emendas parlamentares. Ou seja: mais de 3/4 das verbas ministeriais. O que impede claramente a governabilidade. Os deputados só estão interessados em atender os seus redutos eleitorais e a Federação sofre então com a falta de um planejamento que atenda as áreas mais carentes.
Além de nos opormos e contestarmos a sociedade capitalista, desenvolvemos uma ação crítica aos partidos de esquerda que operam no campo do gerenciamento deste estado brasileiro ingovernável e em crise. É necessário construirmos redes de relacionamentos cuja função principal seja a elaboração de um programa mínimo de ação de caráter anticapitalista.
Sabemos que longo e doloroso será o colapso do capitalismo! E este é um sentimento que temos que considerar. Estamos em uma guerra cultural, uma guerra de ideias para onde ir e temos que agir considerando que ela não é nacional e sim transnacional, pois o capital não reconhece fronteiras de países. Trata-se da construção aqui e agora de um novo mundo e de uma nova forma de comportamento. Trata-se de uma luta política constante de estruturação de uma nova sociedade horizontal e descentralizada. Acreditamos, então, que a construção de comitês populares pró-constituintes pode ser um desses passos: passos que nos levem à compreensão de como será esta nova sociedade. Em espaços como favelas, comunidades rurais, igrejas, escolas, universidades, repartições públicas, redes sociais, grupos de WhatsApp, etc., a existências de comitês que discutam os contornos desta nova sociedade pode representar um papel importante no crescimento de uma consciência crítica de caráter anticapitalista.
Serra da Mantiqueira , 28 outubro 2024
Arlindenor Pedro

Arlindenor Pedro é Anistiado ex preso político, professor e Editor do Blogue Utopias Pós Capitalistas-Ensaios e Textos Libertários
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O novo pacto social é urgente. Não há resposta no modelo vigente. O status quo colapsou. Precisamos construir um novo modo de vida integrado e integrador que não seja explorador do homem e da natureza.
Reflexáo e proposta benvindas nesse dia cinzento. O primeiro desafio é superar o fosso que separou em duas partes o povo brasileiro.