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Memento Mori constitui uma profunda reflexão sobre a violência estrutural e existencial, articulando luto, crítica social e metalinguagem literária. Através de uma narrativa que transita entre o real e o onírico, o autor morto dialoga com grandes pensadores (Clarice Lispector, Freud, Bauman) em um espaço liminar, onde a literatura se revela instrumento de resistência contra as opressões sociais. A obra problematiza o patriarcado, o narcisismo contemporâneo e a liquidez das relações, utilizando-se do conceito de Memento Mori para enfatizar a finitude como motivação ética. A cena final, com a morte do amigo e a citação kafkiana, sintetiza o paradoxo entre desesperança e urgência vital. Estilisticamente, o texto mescla prosa poética e ensaio filosófico, criando uma densa tessitura intertextual que aproxima literatura e autoconhecimento como formas de emancipação.
Leia aqui o texto
Do rio que tudo arrasta se diz que é violento.
Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem.”
(Bertolt Brecht – Trecho do poema Sobre a violência)
Pois é, meu amigo das letras, fiel companheiro, sinto lhe informar que desencarnei há quatro meses, um dia antes da comemoração do meu aniversário, em função da violência, não a literal, que vem pelo uso da força, mas a subliminar, que se acomoda sordidamente, talvez até pior de aturar, visto ser sorrateira qual gume afiado, eficiente para cortar, presente desde o infante despertar, atravessando a cultura, camuflada no lugar de muita dinâmica familiar, toxidade sem par. Veja, que pesar! Tenho ciência que está se tratando de depressão profunda, concomitante a uma neoplasia pulmonar, que lhe afirmo, por orientação superior, foi causada por anos de amargura e intensas decepções, a começar pelos horrores transcorridos em família.Por favor, lhe peço, doutrine suas emoções!
Falo através desta, pois só agora fui autorizado a me comunicar. Acreditando na sua recuperação, torcida de irmão, reforçada por sublimes energias pelos daqui emanadas, espero que isto lhe sirva de alerta e ciência, pois dentro do nosso trato segui primeiro, nem sabia o paradeiro, agora torno para lhe contar o derradeiro. Espero que ao ler este relato em momento vindouro, encontre-se em plenitude de saúde, e se atente amiúde a cada novo amanhecer, que o sentido da existência não pode fenecer, evoluir é o cerne da questão, e a vida nos cobra cautela, ainda que na contramão. Vai lendo que o segredo eu não esqueço não, vem diluído na palavr[ação].
Confesso que, apesar de sujeito comportado, me deixei levar pelo estresse continuado, este foi o malfadado, trabalho em excesso, as métricas e cronogramas nunca davam recesso, junte a isso uma boa dose de solidão, e, como você, tanta desilusão com essa sociedade de turbilhão, descaso expresso, então, me perdoe se às vezes silenciei o coração. Aqui neste plano, junto a outros como eu, tenho aprendido a me preservar, a violência social não vem nos afetar, percebemos, imantamos e entendemos que somos responsáveis pela nossa existência e impotentes perante o outro, não há álibi de carência, as regras têm eficiência, tudo n maior decência, daí não se justifica o louco, nem vale diploma de douto. Aqui a letra ainda tem peso de ouro. Palavra-tesouro. Seja amarelo, preto ou louro.
Mas lhe afirmo, cheguei rápido, lugar bonito, ares frescos, tudo orvalhado, nada corrompido. Defronte a um prédio de refino, logo no jardim viçoso, me deparei com Clarice Lispector, acredite! Ela mesma, com seu amigo Ulisses que, abanando o rabo, se divertia comas guimbas. Entre uma tragada e outra ela lançava ao tempo seus fluxos de [in]consciência, na liberdade palavrada, esgarçada, dividindo seus discursos com a querida Hannah Arendt. Como não valorizar as mulheres em igualdade? Não seria maldade cultuar a seletividade? Minhacuriosidade aguçou a atenção, as conhecia de fotos e narrativas, parei de supetão, falavam sobre a insensibilidade das pessoas e a cultura da violência. Tomando tenência, me desculpei por deselegante displicência. Vendo a minha estranheza, mesmo sem me conhecer, Clarice ouviu minhas dúvidas e respondeu com delicadeza: entre no prédio caro palavra[dor], desça a escada espiralada até a sala de porta branca trabalhada, leia o aviso no pórtico e decida se pretende entrar. Quem sabe em breve não tornamos a nos encontrar?
Saí dali caraminholado, mas feliz pelo sonho realizado. Seria meu legado? Logo as duas! Quem não vai se sentir agraciado? Cheguei à borda da escada direcionada ao profundo, espiral de granito rústico, remontava a aspereza da vida, contrastando com o corrimão de ferro lavrado, que passava um ar jucundo. Pensei, nada é sem risco no mundo, me lancei com propósito fecundo. À medida que mergulhava, refletia sobre as falas delas, as questões da violência que ainda assolam a modernidade, mundo de querelas, e isso me pegou de verdade.
Também fui pensando na sociedade alienada, no narcisismo dissimulado, na falta de empatia, futilidade desenfreada, e na presença de tantos com caráter deturpado, vida de alegorias, nada por tudo, tudo por nada! Era um filme que me passava aos convexos ainda meio nublados pela viagem, pior que visagem.
Não posso precisar por quanto tempo desci, parei de contar os degraus nos setenta vezes sete e tiveram alguns outros que foram tomando ares rubros. Logo nos últimos degraus avistei a porta branca, larga, de madeira pesada, aroma de sândalo, nela, encimados no pórtico, estavam entalhados os dizeres:
“com as nossas palavras, violamos as certezas, só entre se acreditar em tais destrezas”
. Fiquei ali parado, uns minutos a pensar. Violar? O que estaria a me esperar. Entrei e logo me assombrei. Assim como você, amigo [sobre]vivente, sempre fui apaixonado pela literatura, tive a oportunidade de me debruçar em muitas laudas, e busquei extravasar minhas dores nas pautas, postura que me ensinou. Agora, recomendo como conselho póstumo, que nunca perca esta disposição. Me arrisco na palavra salvação. Hoje afirmo que a capacidade reflexiva oferecida pelas artes me fez rio mais potente, mesmo com todas as dores de aluvião, dominando as correntes e corredeiras frente às pressões que as margens sociais nos impõem.
Então, falava que me assombrei, pois em grande sala mobiliada com sofás, mesas, cadeiras, luminárias e telões, estavam renomados conhecidos que, assistindo filmes de vidas pelas imagens projetadas, discutiam e inspiravam possíveis ajudas por intuição aos mortais reféns de uma sociedade de avessos, e estavam ali pela natureza dos apreços, tanto ao serhumano, quanto às artes que por anos se dedicaram. No primeiro jogo de sofás, zona de fumantes, estavam Freud com seu cachimbo, Nelson Rodrigues e uma bolsa que imaginei ser de Clarice ou Hannah. Bem próximo, em uma mesa, estavam Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, João Antônio, Foucault e o pensador tão comentado na atualidade, o experiente Bauman.
Havia outros na confraria dos letra[dores], a sala era ampla, vozes, idiomas e sotaques que, por mais estranho que pareça, eu compreendia. Ao fundo, até a fala característica de Ariano Suassuna, debatendo com Guimarães Rosa e Marcelino Freire, me capturou. Pense na situação! Fiquei paralisado, completamente sem ação, frente a tantos que muito me ajudaram com suas produções. E o melhor de tudo, estavam ali confinados e irmanados, celebrando a decisão dos literatos vivos sobre o ano de comemoração do centenário de nascimento de Dalton Trevisan, o calouro da confraria, egresso há praticamente cinco meses aqui nesse paradeiro.
Sei que por aí, no plano das discrepâncias, vai ser festa e evento o ano inteiro, homenagem ao recluso escritor lá de Curitiba. Seria mesmo vampiro? Ainda assim o admiro.
Interessante é que as produções deixadas pelos que aqui estão, em nobre trabalho neste salão, de uma forma ou outra, versaram sobre as incômodas condições que abalroam a sociedade, esta é a oferta da irmandade: situações angustiantes, abusos psicológicos, falhas morais, complexidade da condição humana, personagens avessados e inusitados, violência, preconceitos, fragilidade afetiva, narcisismo, entre outros, além de toda a filosofia que sustenta a dramaticidade e a realidade dos temas.
Estava extasiado, quando Clarice e Hannah adentraram, fui logo apresentado pela dama das epifanias: acredito que ele é um dos nossos, também é palavra[dor]. Pois aqueles que acima citei pausaram a me olhar, nem sabia o que comentar. Foi aí que Freud quebrou o gelo, dirigindo-se a mim perguntou: o senhor gosta de mitos? Me sentindo agraciado respondi que sim. Já temos um meio caminho afim. E ele retomou: leu a inscrição no pórtico de entrada? Novamente afirmei que sim. Se gosta de mitos, não lhe lembra Delfos? Ainda estático, proferi o terceiro sim. É imperativo se autoconhecer. Então Dalton Trevisan, arredando a cadeira, se pronunciou: meu caro, este aqui é um espaço sagrado, felizmente hoje sou celebrado por tantos que me inspiraram, se passou pelo portal e é um literato deve comungar da ideia que usamos da arte para suavizar a violência do mundo. Meus personagens, e de tantos outros aqui são forjados sob os conceitos que também foram pensados pelos daqui, carregamos a enorme responsabilidade social de [ res]significar a realidade para os vitimados pela violência, pela ignorância e insana dependência. Nossos escritos servem de espelhamento do caos, objetivam reflexões que são a base das mudanças. É necessário que enfrentemos o câncer do patriarcado. Basta de tantos males e maus.
E aí o diálogo franco se abriu, Rubem Fonseca falou: lançamos mão das armas com que fomos dotados, a primazia da palavra, a usamos para violar a norma conservadora estabelecida pelas elites que vertem hipocrisia nos palpites. Os seres humanos se deterioram em meio à toda violência que nos cerca,
“uns fogem do amor e outros procuram com sofreguidão, mas no fim o que fica, em todos, é a mesma coisa, uma insuportável sensação de vazio”.
Pegando o gancho do confrade, Nelson Rodrigues se posicionou: mais do que nunca vemos uma sociedade cruel, repleta de egoístas, aliás, arrisco afirmar um narcisismo desvairado e coletivo, cada qual caçando o seu espaço, muitas vezes sem qualquer ética, eis aí a violência, apesar de seres gregários,
“a verdade é que todos estamos sozinhos no mundo.”
É o vale tudo institucionalizado, não há puritanismo, bicho que se faz de rogado.
João Antônio ratificando a postura dos amigos logo argumentou que explicitava a violência em seus personagens, na sua maioria proletários e marginais de periferias dos grandes centros, criaturas esquecidas pelo sistema, aviltadas pela incoerência, essa verdade merecia ser apresentada ao mundo.
Ainda dentro da postura ácida, citou uma de suas frases:
“os religiosos olham o céu por uma fresta. Os não religiosos veem o céu por uma estreita janela. Já os despertos sãos aqueles que abandonando a casa que os limitam, contemplam o céu ao ar livre.”
É isso, precisamos tocar ao fundo o caldo social. E olha que lá tem muito limo, tudo decantado,sem igual.
É por isso que insisto nessa liquidez das relações e do mundo, tudo está plástico, fragilizado, os indivíduos são criaturas expostas, presas fáceis do consumismo e da necessidade extrema da aceitação alheia, vulneráveis às ilusões, fantoches do sistema. Valoriza-se o ter ao troco do ser, reféns da violência ideológica patriarcal, afirmou Zygmunt Bauman. Com discurso categórico e apimentado, sem perder a deixa, Jacques Lacan postulou: líquidos são nossos discursos, não no sentido frágil, mas sujeitos à plasticidade da subjetividade, cada qual representa a sua verdade. Teia de significantes. Violência é calar, ceder do seu desejo mais íntimo.
A saudável discussão continuou por longo tempo, me sentia pleno e ambientado, quanto aprendizado! Peguei autógrafos, dei opiniões sinceras, e fui agraciado com colocações de grandes mestres da escrita e da psique. Olhávamos e discutíamos as vidas que se apresentavam nos telões, como um grande centro de monitoramento, não como mera fofoca ou apreciação vulgar, muito mais como um projeto psicoliterário, um propósito de combate à violência através da escrita, que inspirasse e intuísse reflexões oportunizando abertura de horizontes e reposicionamento de identidades. Foi aí, que vi em cena, num quadrado, bem à esquerda do gigantesco mural de vídeos, a figura do amigo para quem eu escrevia a carta, e foi neste momento de angústia, presenciando o espelhamento daquele sofredor que amparava acabeça com as mãos, meu companheiro de alma e letras, vítima contumaz de tanta violência social, que num lapso de consciência fui arrebatado à realidade, apneico, taquicardíaco, sudoreico, agoniado, em minha cama, com olhos vidrados no teto do quarto. Cena encerrada.
Pois é, ainda com dificuldade de compreensão, levei um tempo para entender que fora um pesadelo. Será mesmo? Já quase amanhecia, era véspera do meu aniversário, vinte e sete de janeiro de dois mil e vinte e cinco. Tomei decisão drástica e decidi por visitar o meu companheiro. Apressado, arrumei as malas e parti. Infelizmente nem tive tempo de comentar sobre o ocorrido. Ao adentrar em sua casa, fui recebido por um olhar doce, um breve sorriso e a pausa asfixiante que o acometeu foi a última violência que presenciei na sua vida de sonhos. A grande espera frente ao destino também foi violenta e funesta.
Realmente a vida é sopro. No sepultamento, atestado somente por mim e uma amiga, depositei entre as suas mãos uma frase de Franz Kafka:
“o sentido da vida é que ela termina”.
Esse ideal estoico faz jus ao título desta carta que agora, oficialmente compartilho com todos vocês Memento Mori,
“lembre-se de que vai morrer’.
Ainda que triste, a vida é breve, devemos vivê-la com intensidade, justiça e ética, porém, aproveitando verdadeiramente o tempo, libertos dos grilhões das violências que assombram a sociedade. Hoje me dedico ainda mais à escrita, residindo na promessa de tentar extirpar, no que me for possível, um séquito de ilusões que, antolhando os seres, são farto território para a proliferação de tantas agruras e torpes fantasias. Que as margens sejam dilatadas, o rio merece o [ser] oceano.
Ah! Antes de me despedir, quero me desculpar, pois esqueci de avisar, o Marcelino Freire, nobre escritor, diferente dos pares que vivem nas obras deixadas, continua vivinho da silva, e a literar, aliás, o faz com louvor. Fiquei sabendo que ele também divaga por outras paragens, depois juntando as viagens pensei: que sujeito arretado, entrar assim no meu sonho, sem sequer ter me comunicado! Mas, nem me cabem muitas exigências, estava defunto marcado, conforme texto pautado. Enfim, me restou alegria, afinal, apesar de toda ousadia, foi time de categoria…
Saquarema – RJ, 27 de abril de 2025
AlaorJr
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parabéns!!!!!
Memento Mori é um grito de alerta, um apelo para que vejamos a violência onde ela realmente está: nas estruturas sociais, nas relações tóxicas, na alienação, no abandono emocional. Mas é também uma ode à literatura como refúgio e ferramenta de transformação.
É um texto para ser lido com calma, anotado, discutido, sentido. E sobretudo: para ser partilhado. Porque, como diz o próprio narrador, “a palavra ainda tem peso de ouro”.