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Este texto busca analisar as ideias do economista Leonardo Burlamaqui, professor do Instituto de Economia da Universidade de Campinas expostas em encontro naquela instituição sob o título de Xi Jinping e o fim do capitalismo liberal: o socialismo schumpeteriano . Nesta apresentação , Burlamaqui propõe uma nova leitura do capitalismo contemporâneo onde o Estado recupera sua centralidade como sujeito da modernização, reinterpretando as teorias de Schumpeter, Keynes e Minsky. A partir dessa base conceitual, ele observa na experiência chinesa sob Xi Jinping uma tentativa singular de reorganizar o capitalismo a partir do comando político e da planificação estratégica.

O Socialismo Schumpeteriano e o Pensamento de Xi Jinping
Em apresentação realizada no Instituto de Economia da Unicamp ( ver vídeo no final deste post) o professor Leonardo Burlamaqui argumenta que a história do capitalismo é também a história da intervenção do Estado como agente de inovação, coordenação e desenvolvimento. Ali ele sustenta que, em momentos de crise, o Estado deixa de ser regulador e se converte em ator produtivo, capaz de coordenar a destruição criadora e garantir o dinamismo econômico. Para ele, a China representa neste momento a expressão mais avançada desse processo: um sistema em que a inovação e o investimento são socializados e submetidos ao cálculo político.
Burlamaqui chama essa configuração de “socialismo schumpeteriano”, uma forma de capitalismo dirigido em que a planificação estatal substitui a lógica espontânea do mercado. Nesse modelo, o Estado torna-se o gestor supremo das forças produtivas, controlando tanto o crédito quanto as tecnologias emergentes. O objetivo seria evitar a anarquia financeira, conter as desigualdades e garantir a estabilidade social, transformando a economia de mercado em uma economia de Estado. A China seria, portanto, para o professor um laboratório da modernidade pós-liberal, um sistema no qual a sobrevivência do capitalismo depende do controle político absoluto.
Burlamaqui parte do diagnóstico de que o crescimento chinês das últimas quatro décadas constitui um evento sem precedentes na história econômica mundial: transformação estrutural, inclusão social e avanço tecnológico em escala inédita. E o Ocidente, diz ele, reage a isto com ambivalência esquizofrênica — ora prevendo o colapso da China, ora temendo sua dominação global.
Essa ambiguidade decorre de uma dificuldade teórica: o modelo chinês não cabe nas categorias ocidentais tradicionais (“socialismo de mercado”, “capitalismo de Estado”). E por isto , para compreendê-lo, é que Burlamaqui propõe então uma nova moldura:a de um “socialismo com características schumpeterianas”.
Joseph Alois Schumpeter (1883–1950), economista e cientista político austríaco via o capitalismo como um sistema movido pela destruição criadora, impulsionado por inovação tecnológica e reorganização produtiva.
Mas, em Capitalismo, Socialismo e Democracia ( 1942) ele sugeriu que uma sociedade socialista poderia ser ainda mais eficiente, ao submeter o processo inovador à coordenação pública e institucional — uma “socialização do investimento” (em diálogo com Keynes).
Burlamaqui interpreta então o projeto de Xi Jinping como a realização prática dessa hipótese schumpeteriana:
um sistema em que o Estado e o Partido Comunista orquestram a destruição criadora, dirigindo o capital e a inovação para fins públicos e estratégicos.
Assim, o “socialismo chinês” não é a extinção do capitalismo, mas sua reorganização política e funcional sob controle estatal e partidário.
Para efetivar isto Burlamaqui nos diz que o governo de Xi Jinping organiza-se em torno de uma “dupla guerra”. A primeira, de caráter interno, é travada contra a corrupção, a desordem e a fragmentação política e econômica. Trata-se de um esforço para restaurar a autoridade moral do Partido Comunista, eliminar facções rivais e recentralizar o poder. A campanha anticorrupção e a reestruturação das grandes empresas privadas são vistas como mecanismos de purificação institucional e de reengenharia do poder. A segunda guerra, de natureza externa, busca redefinir o equilíbrio mundial, enfraquecer a hegemonia norte-americana e consolidar a China como centro de uma nova ordem eurasiana, entendido aqui de forma diferente do eurasianismo proposto pelo russo Alexandr Dugin.
A guerra interna e a guerra externa se complementam. A primeira assegura a coesão política e moral necessária à estabilidade nacional; a segunda projeta a China como protagonista global de um sistema multipolar. Burlamaqui interpreta esse duplo movimento como uma racionalidade estratégica: um Estado que, consciente de sua vulnerabilidade, adota a mobilização permanente como forma de governo. Xi Jinping aparece, assim, como o líder de uma guerra total e contínua, cuja finalidade é garantir a sobrevivência de um império em meio ao colapso da globalização liberal.
Embora o texto de Burlamaqui tenha foco econômico e institucional, sua própria lógica aponta para a necessidade de um fundamento ideológico capaz de sustentar a engenharia política e moral do Estado empreendedor.E, é nesse ponto que ele nos trás a figura de Wang Huning, o teórico que traduz a racionalidade schumpeteriana do desenvolvimento em linguagem civilizacional. Wang é então o responsável por oferecer ao projeto econômico de Xi Jinping sua alma simbólica, garantindo que a planificação material seja acompanhada de coesão espiritual.
Formado em ciência política pela Universidade Fudan, em Xangai, Wang foi professor e pesquisador antes de integrar o núcleo estratégico do Partido Comunista. Desde os anos 1990, serviu sob três lideranças: Jiang Zemin, Hu Jintao e Xi Jinping e tornou-se o arquiteto do discurso político que hoje permeia todas as instituições chinesas. Seu livro America Against America, escrito após uma viagem de estudos aos Estados Unidos, denuncia o esvaziamento moral do Ocidente e a corrosão do vínculo social pelo individualismo. A partir dessa crítica, Wang constrói uma filosofia política que combina confucionismo, marxismo pragmático e soberania estatal, defendendo que a estabilidade e a harmonia são as condições essenciais da civilização.
Se Burlamaqui analisa a reengenharia institucional do Estado, Wang aparece aqui como mentor da engenharia cultural da nação. É ele quem formula o conceito de “Sonho Chinês”, transformando o desenvolvimento econômico em mito de rejuvenescimento nacional. Sua influência ultrapassa a esfera do pensamento e alcança a formação do imaginário popular: o sistema educacional, os meios de comunicação, as políticas culturais e as campanhas de propaganda são permeados por sua visão. Wang concebe o Estado como pedagogo e o povo como discípulo, instaurando uma pedagogia civilizacional em que o progresso é simultaneamente técnico, moral e espiritual. Wang Huning é assim o arquiteto de uma hegemonia que conserva pela consciência disciplinada o que o marxismo ocidental sonhou libertar pela consciência crítica. Uma peça sem dúvidas essencial para o conceito chinês de “uma cama e dois sonhos diferentes”.
Burlamaqui propõe uma leitura provocativa do chamado socialismo com características chinesas , mas é necessário enfatizar que há tensões conceituais no que ele nos trás.
Ao adotar Schumpeter, ele transforma a crítica do capitalismo em uma justificação funcional do Estado chinês; A centralização política e o controle do partido são vistos como instrumentos de eficiência, não como autoritarismo:uma posição que desafia os valores liberais, mas também silencia as dimensões de poder e repressão social.Sua noção de “socialismo” é pós-marxista e tecnocrática: não emancipa o trabalho, mas o reorganiza sob comando estatal.
Em um olhar sob a ótica da crítica do valor (Kurz, Postone), o modelo chinês não supera a forma-valor — apenas a administra por via política. A inovação estatal continua subordinada à lógica da produtividade e da acumulação, ainda que sob outro regime simbólico.
Senão vejamos :
Para Schumpeter, o capitalismo é essencialmente inovação — um motor perpétuo de progresso, cujo impulso está no empreendedor e na “destruição criadora”. Ele enxerga no dinamismo inovador um princípio quase ontológico do sistema: o capitalismo vive reinventando-se, e é nessa reinvenção que ele se legitima.
Mas é justamente aí que Kurz enxerga o núcleo fetichista do capital.
Em “O colapso da modernização” e em “ Dinheiro sem valor” , obras recentes, ele mostra que o capitalismo não é movido por um impulso humano de criar, mas por uma lógica abstrata de valorização do valor. Ou seja: a compulsão de transformar trabalho vivo em valor mercantil quantificável.Assim, a inovação não é um “motor civilizatório”, mas uma forma de acelerar a autodestruição do sistema.
O capitalismo é um processo de automovimento cego, que só pode se realizar destruindo suas próprias condições de existência.” — Robert Kurz
Schumpeter celebra o ciclo de destruição criadora como vitalidade; Kurz o lê como sintoma de colapso: cada onda de inovação aumenta a produtividade, mas reduz a quantidade de trabalho vivo — justamente o que cria valor.O resultado é uma contradição explosiva: quanto mais eficiente o sistema, menos ele produz valor real.
Segundo Marx, o valor é produzido apenas pelo trabalho humano abstrato.
Kurz radicaliza essa leitura: nas condições do capitalismo tardio — dominado por tecnologia, automação e finanças, diz ele: o trabalho humano torna-se cada vez mais supérfluo.Logo, o próprio fundamento do valor se dissolve.
Schumpeter via na inovação uma forma de crescimento qualitativo; Kurz vê uma erosão estrutural do valor:a máquina substitui o trabalhador, o capital se autonomiza, e o sistema passa a depender de simulacros de valorização, como o crédito e o capital fictício.
Assim, o que Schumpeter chamou de “progresso” é, para Kurz, uma expansão do vazio:a economia gira então em torno de signos de valor (ações, dívidas, bolhas financeiras) cada vez mais desconectados da produção real.
“A crise não é a exceção; é o estado natural de um sistema que precisa crescer mesmo quando o trabalho — sua substância — desaparece.” — R. Kurz
Para Schumpeter, o empreendedor é o herói moderno: um criador, um inovador que movimenta a história.
Para Kurz, esse sujeito é a personificação da forma-valor: um agente que só existe porque o sistema precisa reproduzir a lógica da acumulação.
O empreendedor não é livre; ele é o sacerdote do fetiche.
Sob a crítica do valor, o empreendedor deixa de ser um “gênio inovador” e passa a ser a figura antropológica do capital, cuja função é perpetuar a dominação impessoal da economia sobre a vida. Ele não cria “novas possibilidades humanas” — cria novos circuitos de valorização.
Quando o valor entra em colapso, o próprio empreendedor se torna um espectro, uma caricatura ideológica (o startup hero, o visionário da era digital).
Kurz afirma que a modernização é um processo autodestrutivo: o capital não apenas destrói o “velho” para criar o “novo”. Ele destrói as condições sociais e ecológicas da própria vida.
A “criação” schumpeteriana é, na verdade, destruição pura, porque já não produz valor substancial nem sentido histórico.A teoria da destruição criadora é, portanto, o discurso ideológico da crise permanente:um modo de estetizar o colapso, transformando ruínas sociais em narrativa de progresso.
A devastação ambiental, o desemprego estrutural, a financeirização e o esgotamento da política são as faces concretas desse processo.A modernidade capitalista não só explora o trabalho, mas também dissocia dele tudo o que não pode ser quantificado:o cuidado, o afeto, o corpo, o feminino, a natureza.
Schumpeter glorifica a racionalidade do progresso técnico; Kurz mostra que essa racionalidade é a forma histórica da irracionalidade social: um sistema que reduz o mundo a abstrações mensuráveis e empurra para o invisível (as mulheres, os não-europeus, a natureza) tudo o que sustenta a vida.
A ilusão central que sustenta o projeto chinês é a de que a vontade política e a planificação estatal poderiam imunizar o país contra a crise estrutural do capitalismo. O socialismo schumpeteriano, modelo que é enxergado pelo professor Leonardo Burlamaqui na política contemporânea chinesa, que combina disciplina moral, racionalidade técnica e nacionalismo civilizacional, tenta converter a crise em método e o colapso em estratégia. No entanto, fica cada vez mais claro que nenhum Estado — por mais poderoso, coeso ou tecnologicamente avançado — pode escapar à lógica de um sistema cuja base material se dissolve e que tem um caráter global.A China acredita poder controlar o capital pela política, mas o que de fato administra é o seu esgotamento. A guerra interna pela moralidade e a guerra externa pela soberania são apenas formas distintas de reagir à mesma entropia global. A modernização planificada, longe de suprimir a crise, apenas a desloca no tempo, transformando-a em rotina de governo. O sonho de uma civilização imune à decadência é, portanto, o último reflexo da própria crise que ela pretende negar — a convicção de que o poder pode deter o fim de um mundo que já começou a ruir por dentro.
Serra da Mantiqueira, outubro de 2025
Arlindenor Pedro

Arlindenor Pedro é ex-preso político e anistiado. Professor de filosofia,história e sociologia é editor do blogue Utopias Pós Capitalistas-Ensaios e Textos Libertários.
Assistam aqui a apresentação do prof.Leonardo Burlamaqui no Instituto de Economia da UNICAMPI
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Uma reflexão muito bem contextualizada sobre o texto de Burlamaqui.
👏👏