Fundado em novembro de 2011

Rio de Janeiro:Ninguém te ama como eu-Etevaldo Nascimento

arlindenor pedro
Por arlindenor pedro 12 leitura mínima

Ouça aqui o áudio deste post 

Receba regularmente nossas publicações e assista nossos vídeos assinando com seu e-mail em utopiasposcapitalistas.Não esqueça de confirmar a assinatura na sua caixa de mensagens

O post de Etevaldo Nascimento analisa uma cerimônia religiosa realizada no Dia de Finados de 2025 na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, onde o governador Cláudio Castro participou como vocalista. O evento, marcado por devoção, ocorreu logo após uma operação policial altamente letal nas favelas da Penha e do Alemão, amplamente aprovada depois pela população. A sobreposição entre fé cristã e aparato repressivo do Estado levanta questões éticas e simbólicas sobre a naturalização da violência em nome da ordem e a busca da validação de Deus ao massacre.Claramente, a canção “Ninguém Te Ama Como Eu”, interpretada no culto, adquire um tom ambíguo diante das mortes recentes. O texto propõe uma reflexão sobre como religião, política e medo se entrelaçam no imaginário coletivo brasileiro.

os corpos estendidos no chão

O Rio de Janeiro, cidade de contrastes e símbolos profundos, foi palco de uma celebração religiosa que, transmitida ao vivo pela internet, acabou por espelhar as complexidades da sociedade brasileira.

No último domingo, Dia de Finados (02/11/2025), famílias de todo o país homenagearam seus entes queridos, enquanto na Barra da Tijuca, bairro reconhecido pela alta qualidade de vida e predominância de moradores de classe média alta, um templo religioso reunia fiéis e autoridades em uma cerimônia marcada por devoção e reflexão.

Durante o ato litúrgico, o governador do estado, Cláudio Castro (PL/RJ), participou como vocalista da banda religiosa, portanto, sem exercer sua função institucional.

É importante ressaltar que tanto o governador quanto o celebrante e a assembleia de fiéis participaram motivados pelos mistérios da fé, sem qualquer intenção de promover manifestações políticas ou ideológicas.

A análise dos acontecimentos a que se propõe este ensaio limita-se à observação dos efeitos simbólicos e sociais do evento.

Em determinado momento, a banda de cantos litúrgicos emocionou os presentes ao interpretar a canção “Ninguém Te Ama Como Eu”, composta pelo padre Antônio Maria. O governador, ao cantar com esplendor, tornou-se a síntese entre o poder político e o contexto social do Rio de Janeiro, marcado pela violência e desigualdade. A coincidência se intensificou ao se considerar que, no dia anterior, uma pesquisa da Genial/Quaest indicou que 64% dos fluminenses aprovaram uma megaoperação policial nos complexos do Alemão e da Penha, a mais letal da história, mobilizando 2,5 mil agentes.A justaposição entre o canto de fé e a celebração do sucesso de uma operação policial violenta suscita uma reflexão filosófica e sociológica sobre a relação entre poder, fé e justiça. O evento religioso, realizado em um momento de comoção popular, revela a intersecção entre o sagrado e o profano, entre a esperança e a ordem,entre o amor e a força.

Desde a antiguidade, a religião tem servido como pilar simbólico para legitimação do poder político. De Constantino, o Grande, a Dom Pedro II, governantes buscaram na fé uma forma de aproximação moral com o povo. No Brasil contemporâneo, essa simbiose persiste: políticos marcam presença em eventos religiosos, e líderes religiosos sobem a palanques, disputando o imaginário coletivo e reforçando valores compartilhados.

Quando o governador canta uma canção de amor divino, não é apenas a expressão da sua espiritualidade, mas também uma comunicação política que dialoga com um eleitorado que, diante do medo e da insegurança, busca na religião uma promessa de redenção e ordem. Assim, a música torna-se instrumento de mediação entre fé e poder, entre esperança e realidade.

A letra de “Ninguém Te Ama Como Eu” exalta o sacrifício e o amor incondicional, temas centrais do cristianismo. Entretanto, ao ser entoada em um momento de celebração de uma operação policial marcada por mortes, a canção adquire um sentido paradoxal. O amor que salva se contrapõe à força que mata, evidenciando o dilema ético de uma sociedade que busca segurança, mas convive com a naturalização da violência.

O aplauso dos fiéis ao final da missa, muitos deles eleitores, demonstra como o discurso religioso de esperança se mistura ao discurso político de ordem, formando uma só melodia que reverbera no imaginário coletivo.

Thomas Hobbes, em “O Leviatã”, defendia o poder absoluto do Estado para garantir paz e segurança. Jesus, por outro lado, pregava a mansidão e o perdão como caminhos para a verdadeira justiça. O Brasil contemporâneo parece oscilar entre esses dois paradigmas: o Estado armado que promete proteção e o Cristo compassivo que oferece redenção. O povo, por sua vez, vive dividido entre o medo e a fé.

A aprovação popular de operações violentas em um país de tradição cristã revela uma fé reinterpretada pelas circunstâncias de insegurança. O Deus de amor coexiste, paradoxalmente, com a aceitação da força como instrumento de purificação social. O inimigo deixa de ser apenas uma entidade espiritual e passa a ser o “bandido”, o “traficante”, o “outro” desumanizado.

Nesse contexto, a defesa dos direitos humanos passa a ser vista, por alguns, como obstáculo à “salvação” da sociedade, um desafio ético que revela a inversão de valores. O discurso religioso, associado ao poder, pode tanto reforçar a compaixão quanto justificar a exclusão, dependendo da interpretação dada. A fé, assim, é instrumento de libertação e de controle.

A cerimônia religiosa do Dia de Finados foi mais do que um rito religioso: tornou-se espelho da alma coletiva do Estado, onde fé e medo, amor e força, oração e aplauso se entrelaçam em um mesmo ato simbólico. O agradecimento do religioso às autoridades e o aplauso dos fiéis celebraram não só a memória dos policiais mortos na operação policial, mas também uma esperança, ainda que confusa, pois não houve palavras de conforto para os demais familiares enlutados, que continuam a esperar por um mundo mais seguro e justo.

O canto de fé ecoou sobre uma cidade onde as sirenes nunca silenciam. O grande desafio é conciliar a mensagem do Evangelho, o amor que salva, com a prática do Estado, a justiça que protege. Como diz a canção: “Eu sei o que é te ver sofrer, eu sei o que é te ver chorar”. E o Rio de Janeiro ainda chora, entre a cruz e o fuzil.

Quando o canto religioso se mistura ao som das sirenes, o Estado revela sua face mais humana e, ao mesmo tempo, mais contraditória

Etevaldo Nascimento

Etevaldo Nascimento é especialista em docência do Ensino Superior

Após sujar as mãos de sangue,limpa-las nas águas do Rio Jordão

A análise do texto de Etevaldo Nascimento revela uma poderosa crítica simbólica ao entrelaçamento entre religiosidade popular, violência estatal e legitimidade política na sociedade brasileira contemporânea. O autor constrói sua narrativa em torno de uma celebração religiosa aparentemente trivial, mas carregada de significados históricos e sociopolíticos: a participação do governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, como cantor litúrgico em um templo da Barra da Tijuca, no dia seguinte à operação policial mais letal da história do estado. Uma operação que deixou mais de 120 vítimas mas que ao mesmo tempo, segundo as pesquisas,teve a aprovação de mais 60 % de aprovação das população do Rio de Janeiro. O episódio, queiramos ou não, toma então um caráter de alta densidade política .

Do nosso ponto de vista a força do ensaio está na articulação entre o gesto religioso — o canto de “Ninguém Te Ama Como Eu” — e o cenário de morte nos territórios periféricos, bem explicitado na imagem dos corpos inertes dos jovens negros e pardos abatidos. O texto não acusa diretamente, mas sugere, com fina ironia e densidade simbólica, que a expressão de fé torna-se veículo para a legitimação de uma política de segurança baseada na eliminação física do “inimigo interno”. Nesse sentido, nos faz refletir que a religião aparece aqui como forma ideológica de tamponamento das contradições estruturais do capitalismo em crise, funcionando como linguagem de reconciliação simbólica diante de um real social que se mostra irredimível pela via democrática ou econômica.Com a falência da política o templo religioso se torna o fórum de convencimento e legitimação. E isto fica evidente quando o ensaio nos leva ao momento de emoção quando a música do padre Antonio Maria é entoada com fé.

O contraste entre a fé cristã, centrada no amor, sacrifício e perdão, e a celebração implícita da força policial letal, aponta para uma cisão fundamental na constituição do imaginário brasileiro: a coexistência, quase esquizofrênica, de um Cristo compassivo e um Estado hobbesiano armado. Tal estrutura simbólica reflete a dissociação social entre um polo que representa o “sagrado redentor” e outro que executa a “ordem pela força”, ambos legitimados pelo mesmo corpo social. O artigo sugere que, num Brasil atravessado pela insegurança crônica e pela falência das mediações sociais modernas (como o trabalho,direito, segurança, por exemplo ) a religião se converte em palco de espetáculo político-afetivo, onde o poder se humaniza e a violência se espiritualiza.

Trata-se, portanto, de um ensaio que não apenas descreve um fato, mas nos convida a refletir sobre os mecanismos pelos quais a barbárie contemporânea se disfarça de fé, e como o Estado neoliberal periférico encontra na teologia midiática um novo tipo de contrato social — baseado não mais na promessa de bem-estar, mas na purificação sacrificial do “outro”. Certamente, um presente e um futuro aterrador!

Loading

Compartilhe este artigo
Seguir:
Libertário - professor de história, filosofia e sociologia .
3 Comentários

Deixe uma resposta para Etevaldo NascimentoCancelar resposta

Descubra mais sobre Ensaios e Textos Libertários

Assine agora mesmo para continuar lendo e ter acesso ao arquivo completo.

Continue reading

Ensaios e Textos Libertários