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Este texto é uma carta de admiração, afeto e crítica dirigida à professora Jacqueline Muniz, uma das vozes mais importantes do debate sobre segurança pública no Brasil. Paulo Baía reconhece sua coragem intelectual, sua experiência concreta nos territórios marcados pela violência e sua enorme contribuição para compreender o impacto dos fuzis como força reorganizadora da vida social. Ao mesmo tempo, expressa o desconforto provocado pela metáfora das “pedras”, que, retirada de contexto, gerou polêmica e ataques. A carta convida ao gesto de reconhecer o equívoco sem diminuir a grandeza da autora, defendendo o valor do diálogo, da humildade intelectual e da responsabilidade da palavra em tempos de linchamento simbólico. É um chamado ao cuidado mútuo entre aqueles que pensam a vida pública.

Escrevo com o coração apertado e a mente em ebulição. Escrevo por admiração, por respeito, por solidariedade e também por inquietação. Escrevo porque acredito que a palavra, quando sincera, é uma forma de cuidado.
A professora Jacqueline Muniz é uma das vozes mais lúcidas, potentes e corajosas da Segurança Pública no Brasil e na América Latina.Uma mulher que pensa com a coragem dos que enfrentam as sombras da ignorância e a brutalidade das armas. Assinei manifestos em sua defesa, sugeri notas de apoio na UFRJ, na ADURFRJ, e seguirei a defendê-la contra qualquer tentativa de silenciamento ou intimidação. Mas o amor intelectual, quando é verdadeiro, também inclui o desconforto.
A fala de Jacqueline Muniz sobre o uso de pedras contra fuzis foi, talvez, um tropeço do pensamento em movimento. Quinze segundos de metáfora, arrancados de um discurso mais amplo, se transformaram em munição para o linchamento simbólico. Ela, que tanto nos ensinou a decifrar as violências da linguagem e das armas, viu-se aprisionada por uma frase, como se toda a sua trajetória pudesse ser reduzida a um fragmento de 15 segundos. E, no entanto, como velho professor, que passou a vida debatendo em programas de rádio com Aroldo de Andrade e Roberto Canazio, aprendi que a palavra tem consequências. A metáfora, quando mal interpretada, pode se converter em mal-entendido social, e o mal-entendido pode ser o início da violência.
Falar que o uso de pedras para desarmar criminosos é uma ação tática previsível é, sem dúvida, um equívoco trágico de linguagem. Porque o que está em jogo não é a pedra, mas a vida. E nenhuma vida deve ser oferecida como sacrifício poético em nome da resistência simbólica. A fala de Jacqueline Muniz é de boa qualidade, densa, tecnicamente embasada, socialmente sensível, mas foi ferida pela fatia de segundos que a mídia recortou e repassou até a exaustão. No entanto, não há escudo que proteja a complexidade do pensamento da brutalidade da edição.
Eu mesmo aprendi com ela que o fuzil é o ponto de inflexão da tragédia brasileira. Que sua proliferação nos territórios sob domínio armado — CV, TCP e Milícias — transforma o cotidiano em campo minado. Que cada fuzil é uma ameaça à escola, à creche, à UPA, ao posto de saúde, ao transporte público, ao policial, ao morador, ao transeunte, à ideia mesma de comunidade. Que o aumento de fuzis é o aumento da insegurança, a dilatação do medo, a erosão da vida social. Jacqueline Muniz ensinou isso com método, com empiria, com ética. Ela viu com os próprios olhos, no calor da ação, o que significa viver cercada por armas de guerra.
Sua metodologia de “observação participante” não foi mero procedimento acadêmico, mas um ato de coragem. Viveu entre policiais, acompanhou operações, viu a vida escapar, viu lágrimas e sorrisos, medo e honra, viu a humanidade que persiste onde a barbárie parece total. Ninguém contou para ela, ela viu. Ela sentiu. E essa experiência dá à sua voz uma autoridade rara, uma densidade que não pode ser desfeita por quinze segundos.
Mas ainda assim, creio que a grandeza da professora Jacqueline Muniz inclui também o gesto de reconhecer o excesso. Dizer que foi um equívoco, que a metáfora das pedras foi um deslize emocional, seria um gesto de humildade e de inteligência política. Porque o equívoco não diminui, engrandece. Seria um ato de amor à própria palavra, um gesto de cuidado com aqueles que a escutam. E ninguém deixaria de apoiá-la por isso. Ao contrário, todos compreenderiam que até os mestres tropeçam quando falam em nome da vida.
Jacqueline Muniz é respeitada pelos agentes da segurança pública, e com razão. Ela soube construir pontes onde outros apenas ergueram muros. Falou com quem vive o risco, sem paternalismo nem arrogância. E foi por isso que tantos policiais a ouviram, porque ela os tratou como sujeitos de saber, não como inimigos. A fala das pedras não apaga essa história, não apaga a contribuição gigantesca de uma intelectual que desvendou as engrenagens da violência e mostrou que segurança pública é um direito, não um privilégio.
O problema é que vivemos num país onde a palavra, muitas vezes, vale mais que a intenção. E há um exército de mal-intencionados à espreita de qualquer deslize para transformar a inteligência em escândalo. Não se trata de culpá-la, mas de reconhecer que toda metáfora é uma faca de dois gumes. Que a poesia da resistência precisa conviver com o rigor da técnica. Que a emoção que dá vida à fala também pode feri-la.
Por isso escrevo esta crônica com afeto, mas também com um certo cansaço. Porque ver Jacqueline Muniz, uma mulher que dedicou a vida à defesa da vida, ser arrastada ao tribunal das redes sociais é uma brutalidade inaceitável. Porque vivemos tempos em que a fúria substitui o pensamento, e a palavra, ao invés de iluminar, é usada como pedra.
Não, Jacqueline Muniz não deve ser ridicularizada, nem ameaçada, nem exposta ao escárnio público. Nenhuma voz democrática deve ser destruída por um recorte maldoso. Mas talvez ela mesma, com sua lucidez e generosidade, possa reconhecer que a metáfora das pedras não foi feliz. Que a emoção do momento a levou a um terreno perigoso. E que um simples pedido de desculpas, longe de ser sinal de fraqueza, seria um gesto pedagógico, um exemplo de grandeza intelectual.
Eu continuarei a admirá-la, a citá-la, a ensiná-la. Continuarei a defender seu direito de dizer, de errar, de corrigir, de continuar dizendo. Porque a universidade é esse espaço onde a verdade não é dogma, mas caminho. Onde a palavra não é sentença, mas busca. E porque aprendi com ela que o diálogo é o contrário da bala.
Talvez Jacqueline me odeie por escrever isso. Talvez leia estas linhas e sinta uma ponta de mágoa. Não me importarei. Porque o amor verdadeiro entre intelectuais é aquele que suporta o dissenso. A amizade entre pensadores é feita de cumplicidades e incômodos. E eu, como velho professor, como alguém que aprendeu ouvindo e debatendo, prefiro o incômodo que ensina à omissão que destrói.
As pedras de que ela falou não são as do gesto físico, mas as do símbolo. São as pedras da resistência humana diante da opressão, as pedras da história que nos ensinaram a lutar quando a força nos é negada. Mas até as metáforas precisam de contexto. E, neste caso, a metáfora virou literalidade nas mãos de quem não quer compreender.
Por isso escrevo, por amor e desconforto. Porque não quero ver Jacqueline Muniz reduzida a um meme, a um fragmento, a uma caricatura. Porque sei o quanto ela pensa, o quanto ela sente, o quanto ela defende a vida. Porque sei que ela é uma das maiores intelectuais que este país produziu sobre segurança pública. E porque, talvez, o maior ato de solidariedade que posso oferecer agora é este: o de dizer que, mesmo quando a palavra se perde, o pensamento permanece.
Jacqueline Muniz é uma professora que honra o ofício de pensar. Sua trajetória é um patrimônio da universidade pública brasileira. Sua voz é necessária, urgente, insubstituível. E talvez, ao reconhecer a falha, ela própria mostre ao país que pensar é também errar, corrigir, seguir. Que o pensamento crítico não teme o erro, porque sabe que o erro é a pedra fundamental da aprendizagem.
E que as verdadeiras pedras que devemos atirar são as da lucidez contra o obscurantismo, as da ciência contra a ignorância, as da empatia contra o ódio. Essas, sim, são as pedras que transformam o mundo.

Paulo Baía ė Sociólogo, cientista político, ensaísta e professor da UFRJ
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