Após o texto assista ao premiado curta El Empleo
Há saídas em disputa?
O filósofo alemão Theodor Adorno deu uma entrevista ao jornal Der Spiegel no ano de sua morte, em1969. A entrevista foi concedida poucos dias depois que uma das aulas de Adorno foi interrompida por estudantes que desejavam protestar contra o sistema educacional europeu e as reformas
que eram feitas àquele sistema. O entrevistador pergunta “Senhor professor, há duas semanas o mundo ainda parecia em ordem”, o filósofo então interrompe a pergunta do entrevistador, incomodado com esta antes mesma dela ser finalizada: “Não para mim”.
Neste nano-fragmento filosófico vemos toda a contundência de Adorno. Mais do que na resposta a uma indagação, algumas vezes a tarefa mais candente do filósofo é espetar, provoca e sangrar a própria pergunta.
Diversos observadores, e dentre estes muitos intelectuais relevantes, mostram-se cheios de supostas perguntas para o conjunto simultâneo de levantes populares que acontecem nos últimos meses na Ucrânia, Tailândia, Venezuela e alguns também inserem o Brasil nessa lista. Mas é preciso rever os pressupostos destas perguntas, que viciam qualquer resposta possível que se possa dar a elas.
Apenas estudos aprofundados podem alimentar conclusões e assertivas sobre a situação de cada um destes países, não há dúvidas quanto a isso. Contudo já podemos refletir um pouco sobre o modo como estes eventos têm sido lidos no Brasil. Tudo o que se afirma até então é preliminar.
Tanto a esquerda quanto a direita têm caricaturado grosseiramente os acontecimentos. Para a maioria da esquerda se trata de um plano maléfico e diabólico tramado pela Casa Branca, o centro do poder norte-americano, que têm manobrado toda a situação, contra seus inimigos declarados, o chavismo e seu controle nacional do petróleo, no caso da Venezuela e o raio de influência da Rússia, no caso da Ucrânia, como se a Guerra Fria estivesse totalmente rediviva. A direita tem louvado estes levantes como revoluções populares contra regimes opressores, com ideologias ultrapassadas e autoritárias, como se este fosse um prolongamento da “Primavera Árabe” deflagrada em 2010.
Neste caso, como em muitos outros, vale a máxima de March Bloch sempre usada por historiadores: “Robespierristas, antirobespierristas, pedimos piamente: diga-nos, por misericórdia, quem foi de fato Robespierre”. Quanto mais alto é o grito para que se pule logo para um dos lados, mais se distorcem os fatos para encaixá-los nos slogans de cada um deles. Tem-se uma perversão da máxima uma vez dita por Hegel, “aqui está Hodes, salta aqui!”, que, ao invés de um chamado para a ação, se torna muito mais um chamado para o adormecimento do pensamento.
Comecemos com a esquerda. Ela tem dito com ênfase cada vez maior que se trata de uma plano arquitetado por Washington. Muitas atos de conspiração tem sido denunciados, sempre prometendo para mais tarde as provas cabais. Entretanto, não é preciso chafurdar no secreto para encontrar o apoio e a simpatia de Washington para os levantes da Venezuela: Obama pronunciou-se oficialmente no dia 20 de fevereiro em Toluca, no México, afirmando que a violência é “inaceitável” e pedindo para que os manifestantes presos sejam libertados. Mas será que um movimento tão impactante como o que vemos na Venezuela pode ser causado inteiramente pela intervenção dos Estados Unidos, com recursos, espiões e canais de televisão parciais? E os seríssimos problemas econômicos e urbanísticos vividos lá? E a incapacidade da administração Maduro de contornar esses problemas no interior dos marcos do chavismo: qual seria o papel que isso representaria no levante? Ainda não sabemos ao certo, mas a ideia de que o Estados Unidos teriam toda a culpa dos levantes, suas causas e consequências é, no mínimo, implausível.
Sobre a Ucrânia, a esquerda brasileira tem sido mais tímida, embora ali ela tivesse mais motivos para se manifestar contra. Os conflitos em Kiev e em outras cidades já fizeram mais de cem mortes segundo os relatos preliminares. Uma crise econômica estava empurrando o país para um dependência política maior com a Rússia de Putin, dependência que no plano econômico já era grande desde há tempos. Outra fração da população, contrária a Yanukovich e favorável a uma integração com a União Européia, quer fazer retroceder os diversos poderes constitucionais acumulados por Yanukovich nos últimos anos. Forçado a se retirar de Kiev para um destino ainda não sabido, o presidente foi substituído pelo interino Turchinov, que desde já colocou como prioridade de seu governo provisório uma alinhamento com a União Européia. Muitos governistas daqui têm se sentido solidarizados com o governo de lá, pedindo para que os movimentos de oposição extra-parlamentar daqui parassem de ser “joguetes” nas mãos da “direita”. Quase sempre se ignoram as especificidades e as composições do governo de lá e o de cá.
A direita comemora os levantes na Venezuela de Maduro, mas eles devem pensar nas reais consequências de seus desejos. O que seria de uma Venezuela mais liberalizada, em alinhamento com os interesses das grandes petroleira norte-americanas? Quanto tempo duraria até que novos e talvez maiores problemas sociais emergissem neste contexto? Talvez o desabastecimento, um problema sério do chavismo, não fossem tão grandes assim diante da exclusão e dilacerações sociais que o alinhamento com os Estados Unidos poderia causar, em um momento em que estes se encontram tão fragilizados economicamente e com poucas expectativas no horizonte, ainda mais com a desaceleração da economia chinesa.
As palmas da direita também são bastante inconsequentes no caso da Ucrânia. Sim, há sectos de direita e de extrema direita entre os “grupos de auto-defesa” que depuseram Yanukovich, mas haveria por acaso um caminho de paz e tranquilidade social na União Européia, que estaria apenas aguardando a luta dos cidadãos de bem contra o “pós-comunismo” pró-russo? Pelo contrário, a União Européia ainda não está em condições de ver um futuro fulgurante no seu horizonte.
Há lutas, confrontos e, por consequência, mortes “políticas” nos jornais hoje. Mas há saídas efetivas e consistentes em disputa?
A tarefa da crítica emancipatória é apenas pular logo para o lado certo das disputas em curso?
Parafraseando Adorno: não para mim.
Joelton Nascimento
El Empleo é um curta produzido em 2008, dirigido por Santiago Grasso e escrito por Patricio Gabriel Plaza. A animação ganhou de nada menos que 102 prêmios, é um ótimo material para discutir as relações humanas e de trabalho em nossa sociedade, pois conta a história do protagonista apático, assim como todos que o rodeiam, num universo em que todos são vistos como objetos- o mundo em que vivemos