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A Guerra como modelo da dissociação catastrófica do capitalismo – Marildo Mengat

arlindenor pedro
Por arlindenor pedro 54 leitura mínima
Flagrante da Guerra na Ucrânia- autor desconhecido

TREMOR E CATACLISMA DA SEGUNDA NATUREZA – A GUERRA COMO MODELO DA DISSOCIAÇÃO CATASTRÓFICA DO CAPITALISMO- Um Ensaio

  1. Introdução

Qual o lugar da guerra na sociedade moderna? Esta tem servido frequentemente de metáfora e tentativa de representação de inúmeros fenômenos sociais em curso atualmente no mundo. Tal imagem vai desde o esforço de alguém dar materialidade para uma cena de destruição urbana produzida por grandes tempestades na era do aquecimento global, como para entender o sentido de uma incursão da polícia em favelas. A recorrência ao imago da guerra não é gratuita nem arbitrária, nela está adormecida uma forma abstrata originária, um a priori desta sociedade. Desvendar a matéria histórica inconsciente que o relâmpago da imagem entrega, sem que o indivíduo (e a sociedade) que a utilizam se deem conta é um desafio ainda pouco explorado pela crítica do valor-dissociação. Esta matéria permitiria uma leitura crítica da forma social e seu caráter destrutivo imanente que as categorias que a fundamentam guardam.

A tese kurziana da revolução militar dos séculos XIV-XV como origem do processo concreto de constituição do capital (Kurz; 1997: 239-245; e 2014: 101 e ss), é uma das muitas originalidades da sua contribuição à crítica do valor-dissociação. Esta tese tem por base as formulações da revolução militar de autores como Geoffrey Parker (1984), entre outros, que produziram um corte sobre os estudos da guerra moderna. A introdução das armas de fogo, dizem eles, foi um fenômeno de longo alcance que alterou completamente as formas da sociedade medieval, levando-a ao colapso. Diferentemente desses autores, porém, Kurz concebe uma relação entre a guerra com armas de fogo e o processo de constituição da economia empresarial moderna – como esfera apartada da vida social -, que a coloca em outra dimensão: a de não ser apenas um fenômeno social isolado em desenvolvimento dentro de uma determinada forma social, mas de ter sido a forma externa que impulsionou a constituição do moderno fetichismo da mercadoria e do dinheiro. Portanto, a revolução militar é vista por ele como um acontecimento que desencadeia a constituição do capital como forma social, isto é, um fator de destruição das velhas relações de coesão e obrigação que se abrigavam no feudalismo e a imposição de novas relações sustentadas numa ‘fome de dinheiro’ até então desconhecida. É aceito como um marco comum por todos esses historiadores, entre eles Parker, que as armas de fogo mudaram a guerra. Menos comum é a aceitação de que, com elas, o grau de destrutividade das relações sociais tornou-se exponencial. A guerra já não é, nesta perspectiva, o que Pierre Clastres (2004) descreveu e analisou nas sociedades primitivas, e pouco guarda do que foi nas sociedades não-modernas da Antiguidade e da Idade Média europeia (cf. Creveld, 2004). A questão não é apenas que na formação do estado Moderno a capacidade de resistência armada de indivíduos e povos tenha sofrido uma ampla expropriação. Segundo Kurz (2014: 102), para além desse aspecto, a materialidade da parafernália de guerra com armas de fogo possui uma “nova qualidade de máquina destrutiva”, que produz fortes impressões de algo que transcende o humano e, ao se transformar numa força multiplicada de um mecanismo impessoal, assume um lugar aparentemente intangível. Ela se tornou a forma demiúrgica da ‘desvinculação’ da economia das demais esferas da vida social e é fundamental na determinação do caráter de monstruosidade representado desde sempre pelo Leviatã. Por isso, a relação entre a guerra, a formação do Estado e o dinheiro – e este não mais como uma objetualidade sacrificial, mas como objetualidade de valor (Kurz, 2014: 113) -, é uma daquelas determinações de longo alcance que merecem ser escrutinadas em profundidade.

  1. De ato sacrificial originário à internalização social (fetichista) da guerra

É possível, neste quadro de crítica categorial, divisar uma relação sacra entre a guerra e o dinheiro que aparece na relação com o sacrifício que ambos carregam, apesar de em dimensões distintas. A guerra é o sacrifício que deve se esquecer de si e abandonar o corpo (tal ideia fica muito clara, por exemplo, no imperativo de ‘morrer pela pátria’), aceitando tornar a vida uma mera coisa (res), parte de um mecanismo que a governa independente do desejo e da vontade. Enquanto o dinheiro é a forma abstrata que resulta de uma objetualidade que mudou de conteúdo, guardando agora não mais o sentido abertamente sacro, mas a objetualidade consagrada do espirito em si (da forma valor) que se realizou através de um ritual de sacrifício. Na medida em que o “fetiche moderno do capital foi, […] um produto da revolução militar dos primórdios da Modernidade” (Kurz; 2014: 102), podemos, então, pensar que a forma valor é o resultado de um ritual social sacrificial que constituiu e permanece atuante nas novas relações de produção. Esta afirmação pode ser amparada e aprofundada a partir dos estudos de Marcel Mauss e Henri Hubert (1999: 147) sobre a natureza e função do sacrifício, onde os autores observam que o “termo sacrifício sugere imediatamente a ideia de consagração”, num amálgama em que “as duas noções se confundem”. Dizem eles, “o sacrifício implica sempre uma consagração; em todo sacrifício, um objeto passa do domínio comum ao domínio religioso”. O sacrifício aponta, portanto, para uma separação entre corpo (sacrificado) e alma, entre matéria e forma (como objetivo a ser atingido). Assim, dado que o soldado mercenário foi a proto-forma (o molde) do trabalhador assalariado da indústria moderna , no seu ser já havia algo pré-existente do que formou posteriormente seu companheiro de jornada. A imposição da categoria trabalho, abstratamente universal, se sustentou – na lógica imanente da valorização do valor, que se constituiu como dinâmica estrutural da sociedade – num sacrifício (o esquecimento de si) socialmente necessário para a afirmação de tal processo, cujo resultado é a produção de valor. No mesmo processo, também pode ser vista a moeda passar pela transformação de objetualidade sacra – caráter este dominante das moedas em sociedades não-modernas – à objetualidade do valor, isto é, a expressão de um equivalente universal internamente ligado à medida de tempo resultante desta atividade sacrificial que a imposição do trabalho estabeleceu. Além disso, a moderna classe trabalhadora, que tem sua origem nesta mesma época da Revolução Militar, obedece a critérios de hierarquia, de disciplina e de atividade segundo fins semelhantes às dos exércitos, apesar de estar num lugar social (internalizado), referente ao automovimento do dinheiro e a produção da sua medida, distinto daquele dos soldados mercenários (cujo lugar é externo a esta produção). Isso posto, na constituição concreta da moderna sociedade produtora de mercadorias, a guerra foi este ritual que impulsionou a transformação da socialização num processo de produção social de ‘abstrações reais’, ao realizar a submissão destas relações às obrigações impostas pelo dinheiro, e foi o modelo da sua forma de existência, isto é, do sujeito monetário em que estas relações, uma vez constituídas e estabilizadas, deveriam ser vividas. Este mesmo ponto zero foi estabelecido mais tarde, pelas ciências modernas (filosofia incluída, ao menos desde Descartes), como uma ontologização dessas condições de existência, que são na verdade, historicamente determinadas.

Há neste fenômeno originário, portanto, o caráter de uma grande transformação que carrega estas duas dimensões (externa e interna) de uma mesma estrutura que se funda e se impõe. Todo o período que se estende do séc. XIV ao XVIII é marcado amplamente por este processo violento e destrutivo da constituição das categorias de base desta sociedade, e a guerra foi uma espécie de mandato de um deus ex-machina da forma que este tempo adquiriu. Isto implica afirmar que nas categorias de base constitutivas da sociedade capitalista se amolda, como um objetivo – ‘um fim exterior’ (Kurz, 2014: 116) -, a força destrutiva da guerra. Se ela de fato impulsionou externamente o processo de ‘desvinculação’ da economia das outras esferas da vida social e seu fim em si, então, pode-se pensar que a guerra também se tornou um momento funcional, um meio (imanente), e não mais um objetivo externo, do automovimento do dinheiro. Em outras palavras, a certa altura da história ela mudou de lugar, passando a compor uma necessidade interna da dinâmica do sistema. Dessa maneira, a existência organizada deste arsenal destrutivo deixa de ser extemporâneo – e tampouco é o resultado de imposições do progresso intrínseco a uma instituição do Estado (no caso, o exército, igualmente concebido como trans-histórico pela teoria social ilustrada) – aos desígnios e à dinâmica inconsciente do capital.

Esta mudança lógica – ou de função – da guerra, permite agora se fazer o movimento analítico inverso. Ou seja, é possível tentar desvendar na guerra a violência contida nas categorias de base constitutivas do capital como forma imanente legitimada da sociedade moderna. Com isso, pode-se entender melhor o sentido deste grande cataclisma (catástrofe) da segunda natureza que são as guerras (assim como as crises) e a proliferação do uso de sua imagem – de fato, se está diante de algo que põe tudo a tremer, mas está longe de ser a sua causa.

Face a pergunta de se seria possível evitar a guerra no capitalismo, atua, como pano de fundo que opera e revela-se numa outra indagação, da mesma natureza, a seguinte questão: seria possível um controle democrático (autogestionário) e consciente do processo de produção de mercadorias? Controlar a guerra e sua eclosão talvez seja tão absurdo, no capitalismo, como impor um controle social à transformação de valor em mais valor, do dinheiro em mais dinheiro. O cerne da guerra é esta “finalidade exterior” (no sentido de uma intenção inconsciente) que impulsionou a constituição do processo social de abstração e que se internalizou como meio – numa funcionalidade que se apresenta como mecanismo de compensação do automovimento do dinheiro em suas crises de valorização. A destruição da guerra seria então inerente ao movimento da abstração real e suas necessidades de intensificação e expansão. Como observou Kurz, a Primeira Guerra Mundial – e depois a Segunda – “se revelaria um gigantesco acelerador do desenvolvimento do capitalismo” (2019: 73). Assim, a guerra não é apenas um fenômeno de dominação política e de sujeição dos povos para a expansão da economia empresarial. Ela pode ser articulada numa dialética entre o ‘fim externo’ – atualizado e modificado em diversas escalas de tempo histórico da imposição do sistema no planeta (e que não pode ser reduzido apenas à dominação ou concorrência entre potências) – com as necessidades da guerra na acumulação de capital – como foi o caso da ‘grande crise de desenvolvimento do capitalismo’ (Kurz, 2020) nos anos 1914-45. O paradoxo neste caso é compreender a função de uma produção improdutiva (que é a produção de armas) em termos da acumulação de capital, isto é, de como a produção improdutiva se vincula com a ‘ascensão do dinheiro aos céus’ e o desespero do capital com a sua perda de valor. Da mesma forma em que ela esteve na origem da desincrustação do dinheiro das formas sacras de objetualidade, e impulsionou seu automovimento como objetualidade do valor, ela foi, nos anos 1914-45, o meio que permitiu pôr em ação as bases do fordismo em escala mundial, quando então a dominação fetichista do capital tornou-se uma forma social total absoluta. A economia de guerra criou as condições, com as dívidas dos Estados beligerantes, para tornar viável a mobilização – ainda produtiva – do capital ocioso que forçava as portas da acumulação com uma grande desvalorização. Foi ela que permitiu a ‘destruição criadora’ do capital (nos termos de Schumpeter), ao derrubar barreiras e criar as bases do ordenamento para a fase tardia do capitalismo.

Como a regulação política e econômica do fordismo foi um período que se fez possível graças aos investimentos em pesquisas tecnocientíficas germinadas nas duas grandes guerras, estas tornaram-se um caso paradigmático, em que as aplicações militares de inovação tecnológica estiveram voltadas e induziram as possibilidades de expansão da produção de mercadorias para consumo de massa. A Primeira Guerra Mundial, por exemplo, começou usando grandes quantidades de animais como tração para transporte de mantimentos e de tropas e, ao fim, já estava amplamente motorizada. Da mesma forma que a indústria de tanques de guerra na França foi em grande medida operacionalizada nas fábricas da Citroen, que logo depois do conflito figurou-se como uma das gigantes da produção de automóveis. A tênue linha que separa a economia civil da economia de guerra, e vice-versa, se aplica também, obviamente, às técnicas de produção e as semelhanças da destrutividade dos seus métodos e produtos. De tal modo que a economia de guerra não mais refluiu depois de 1945, e a destrutividade da guerra manteve-se atuante nas mercadorias produzidas nos principais ramos de produção do fordismo.

A guerra, por tudo isso, deve ser pensada como um modelo de dessocialização catastrófica do capitalismo e de produção destrutiva da natureza.

  1. O lugar da guerra no capitalismo tardio

A relação entre filosofia e crítica da economia política sempre foi uma zona cinzenta – ou ela é entendida como um suposto que, portanto, não precisa ser explicado, ou ela é vista como um mal-entendido que não vale a pena explicar. Neste ensaio partimos de uma análise já desenvolvida anteriormente (Menegat, 2019: 11-57), em que a desde sempre insuficiente forma da crítica, desenvolvida pela filosofia iluminista, com a entrada do capitalismo em sua fase liberal, no século XIX, perdeu completamente sua força negativa. A crítica social foi, por isso – caso quisesse se manter ativa -, levada a contrapor-se ao Iluminismo ampliando, com isso, as fronteiras da filosofia, como forma teórica, na chave de uma metateoria que pudesse suprassumir, como momentos da crítica da sociedade capitalista, elaborações conceituais desenvolvidas por disciplinas particulares (como a economia, a história etc.), produzindo, ao fim, uma percepção sobre a realidade e a verdade distintas daquelas que são próprias ao domínio destas disciplinas positivas não totalizantes. Os conceitos de base ontologizados precisaram ser transtornados criticamente, para que o moderno patriarcado produtor de mercadorias não fosse naturalizado. Marx, neste sentido, realizou um importante esforço de elaboração, mesmo que tenha permanecido no meio do caminho em diversos momentos. O ponto alto desse esforço, contudo, foi o entendimento de que o moderno processo social é constituído por uma espécie de sujeito automático (Marx, 1985: 139), formado a partir de objetivações reais, que são as categorias abstratas que fundamentam o modo de ser desta sociabilidade. Tal concepção de uma dominação impessoal determinada por formas fetichistas de objetivação social, constituídas a partir de abstrações reais, como o valor-mercadoria, o dinheiro, etc., permite um lugar de análise crítica, relativo a totalidade deste processo social, absolutamente novo. Apesar de em diversos momentos da obra de Marx este esforço ter ficado restrito, devido a aceitação de posições comuns ao tempo histórico em que foi escrita, mais próximas ao liberalismo do que à crítica da economia política, como é o caso da atenção desmedida a luta de classes e do progresso – que demonstraram ser aspectos limitados (e determinados) historicamente ao processo de modernização -, há em Marx formulações teóricas que vão além desses marcos.

Assim, pensar a guerra na chave aqui proposta, é pensar criticamente o lugar deste fenômeno dentro do desenvolvimento das categorias básicas constitutivas do capitalismo. Na medida em que a posição da guerra na sociedade moderna se alterou e se tornou subordinado ao fetichismo do capital – em outros termos, em que a guerra passa de um fator fundante do fetichismo a um elemento determinado por ele, sem que, com isso, a destrutividade desapareça ou seja controlada por decisões racionais (o que ocorre é justamente o inverso) -, a sua destrutividade foi naturalizada e, o que é essencial para o desenvolvimento da crítica do capitalismo, tornou-se um elemento que realiza o sentido histórico desta sociedade (o de ter como finalismo a autodestruição). Neste processo, a guerra sofreu uma metamorfose, na qual parece ter sido submetida paulatinamente a uma ‘purificação’, ao se transformar em instrumento, ou melhor, em meio técnico para os fins do capital. A profissionalização dos exércitos procura cumprir este papel de uma destruição desprovida de valores subjetivos ‘impuros’, como seriam o fanatismo religioso ou nacionalista ou mesmo o simples desejo da dominação pelas armas. O soldado profissional – que pouco difere do mercenário do passado – concebe o conflito bélico como algo alheio ao campo de escolhas da ação humana. Em outras palavras, o conflito é uma “circunstância inevitável” (Keegan, 2006: 19), uma imposição das leis da (segunda) natureza, ao mesmo tempo estranhas e (cognitivamente) familiares às necessidades da dinâmica social. Na medida em que a guerra é um acontecimento incontornável, assim como são os tsunamis, os critérios racionais para a sua compreensão estão subordinados aos padrões técnicos da produção, em que a forma mais eficiente do seu enfrentamento é aquela que realiza o maior aniquilamento em massa possível com a menor dor por indivíduo . Como no apriorismo que constituiu a sociedade – em que a guerra foi um fator determinante -, o capital se apresenta agora desenvolvido em suas formas básicas, por meio de um poder constituinte fetichista, isto é, uma força social transcendente que deve efetivar aquela obra. A guerra atual, por conseguinte, como expressão desse poder, possui uma congruência lógica com este seu imago. Mais precisamente, ela é o rastilho do governo imanente deste modo de ser do metabolismo com a natureza, organizado pela produção incessante de valor.

Este reposicionamento da guerra, dentro da crítica das categorias fundamentais, obriga, portanto, analisá-la a partir do movimento da reprodução ampliada (cf. Marx, 2017: 877 e ss), em que o fetichismo do capital, como forma totalizada, está posto e atua plenamente no processo histórico. Nesse sentido, a guerra, como economia de guerra (sendo esta a completa substituição da outrora economia teológica cristã, que perdurou da Antiguidade até os séculos XV e XVI – cf. Agamben: 2016), é o produto desta dimensão amadurecida da forma social, que encontrou nela um modelo adequado para o seu desenvolvimento. A corrida armamentista do final do século XIX e início do XX foi, consequentemente, um mecanismo de compensação da acumulação. A relação da produção armamentista com a grande disponibilidade de capital fictício desta época, em que se apresentaram as primeiras manifestações, que mais tarde se tornaram incontornáveis, de superacumulação, como expressão do que era por aquele tempo um tipo ainda novo de crise, realiza esta mudança de lugar, com seu mandato destrutivo atualizado.

Este aspecto pode ser aprofundado – aqui, porém, será apenas indicado – na relação da ciência e da técnica como ramos de produção do capital, e seu vínculo estreito com a corrida armamentista. A fixação da ciência como força produtiva se desenvolveu desde a segunda metade do século XIX, e precisou da guerra como laboratório de experimentação. A relação explosiva entre estas modernas forças produtivas – principalmente a partir da Segunda Revolução Tecnológica – e as mercadorias, tem na guerra mais do que um encontro ocasional, ela é, ao que parece, uma das estruturas básicas modelares do desenvolvimento da forma valor. Esta relação que estrutura parte de toda a dinâmica de desenvolvimento do capitalismo tardio, fundou a economia de guerra – e foi por ela impulsionada ao seu limite. Desse modo, a economia de guerra tampouco é um acaso e capricho de escolhas nacionais. O seu primeiro experimento mais acabado, que se iniciou na Primeira Guerra Mundial (PGM), é uma boa demonstração desse lugar privilegiado da guerra como estrutura modelar. Esta foi um método bárbaro – a assim chamada ‘destruição criativa’ – utilizado para a adequação de diversas economias nacionais ao plano da competição que o fordismo estava inaugurando. Neste modo destrutivo, em diversos aspectos semelhante – se tomados abstratamente -, ao que ocorreu também na acumulação primitiva de capital, residem elementos importantes para a análise da permanência e metamorfoses da guerra, mesmo que deslocada de seu lugar de origem e re-funcionalizada, posteriormente, pelo capitalismo. Ela foi na grande guerra de 1914 uma mistura curiosa do processo de modernização retardatário em diferentes níveis – da França à Alemanha, passando pela Rússia – com destruição tout court. Em Da Revolução, Hannah Arendt (1988: 12) comentou que depois de 1870 as guerras passaram a ser mensageiras de revoluções. Esta ideia, quando pensada na perspectiva da guerra na fase clássica do imperialismo, indica uma dinâmica que pode ser historicamente verificada, como mostra a Comuna de Paris em 1871, a Revolução Russa de 1905 e, finalmente, as revoluções alemã e russa do pós-PGM. Todas elas foram acontecimentos associados às guerras – que as havia antecedido. Elas, portanto, não foram apenas a ‘política por outros meios’, como pensava Clausewitz, mas foram também formas estruturantes da dinâmica de desenvolvimento retardatário da produção de mercadorias e da financeirização da era fordista. Um salto para dentro da noite de horror que o progresso produz.

Entendendo a Primeira e a Segunda Guerra Mundial (SGM) como um grande e único acontecimento, o do parto da mundialização do capitalismo que, para Kurz, engendrou o processo de passagem à forma madura do sistema, a guerra, como gigantesco acelerador do desenvolvimento (destrutivo) do capital, ao ter sido assimilada nesta relação imanente, pelo conteúdo, ou seja, ao ter criado as condições para os investimentos e a realização ampliada de uma massa de capital ocioso, criou as circunstâncias para o capitalismo se desenvolver como um modo generalizado de produção industrial e de consumo. Se o século XX foi o século das guerras, e estas tiveram sua infraestrutura nas economias de guerra, é razoável pensar que o tempo histórico – e a lógica estruturante deste tempo – foi uma organização destrutiva da produção que seguiu e se realizou neste modelo. Pouco importa se este estado se realizava em guerras quentes convencionais, ou em produção de guerras congeladas. A questão é que ambas foram essenciais para sustentar a democracia e a massificação do consumo. A verdade que reside na guerra parece ser a própria falsidade da afirmação do desenvolvimento das forças produtivas como ‘avanço civilizatório do capitalismo’ necessário à emancipação humana.

  1. A decida ao inferno da guerra

No marxismo tradicional o debate sobre a guerra e suas relações com a sociedade moderna – a economia, particularmente – foi pensado por diversos autores, embora de forma limitada. Rosa Luxemburg, por exemplo, sempre foi muito sensível e esteve bastante atenta a este acontecimento definidor do moderno patriarcado produtor de mercadorias. Na sua obra A acumulação de capital (1985), e em outros textos menores, ela analisa o lugar importante do armamentismo para a economia capitalista. Neste tempo, as epidemias saturnais já se impunham como um destino inescapável da sociedade moderna. Desde a acumulação primitiva, diz ela, o militarismo já desempenhara um “papel decisivo na conquista do Novo Mundo (…) na conquista das colônias modernas (…) e na instituição do trabalho assalariado nas colônias (…)” (1985: 311). Este papel percebido por Rosa Luxemburg, obviamente, está distante de ser o de “fim exterior” relativo a constituição do “fetiche moderno do capital”, pensado por Kurz. Na verdade, ele não tem ligação com a definição, vista anteriormente, de um poderoso mecanismo de internalização dos pressupostos de uma sociabilidade produtora de mercadorias. A posição da Autora é, neste sentido, um lugar comum ao marxismo tradicional sobre este processo originário, que entende a guerra meramente como instrumento de violência extra econômica da dominação colonial, que foi necessária à imposição do sistema, decorrente da diferença do desenvolvimento das forças produtivas entre as metrópoles e suas periferias. Sobre a relação entre as armas de fogo e as origens do capitalismo, talvez (e muito timidamente), apenas Engels tenha vislumbrado um vínculo, sem dar-lhe, no entanto, maiores consequências teóricas .

Porém, acerca de outro contexto histórico, situado principalmente no início do XX, Rosa Luxemburg torna sua leitura desse fenômeno mais aguda ao perceber que o militarismo virou “um bom campo de acumulação” (1985: 311). Ele teria, nesse sentido, uma função importante no processo de acumulação na fase imperialista do capitalismo. Aqui Rosa Luxemburg traz novidades teóricas, apesar de, a exemplo do primeiro papel, neste caso, o caráter político também se sobressair, mas de forma bem mais complexa do que na formulação anterior sobre a acumulação primitiva. Na sua fase terminal, pensa ela, devido à escassez de novas e rentáveis oportunidades de expansão externa do capital, o sistema faria escolhas políticas e de investimentos compensatórios, gerando situações regressivas que “põem em questão toda a cultura humana” (1985: 398). Este seria o caso da guerra e do armamentismo. Como o financiamento desses gastos deve ser feito com o aumento da tributação indireta, esses casos indicariam, na chave do colapso do capitalismo, o fim da tendência de melhora das condições de subsistência das massas. Tal tendência havia sido pensada, entre outros, por Marx (1985: 141 e ss), quando ele afirmou que as ‘necessidades básicas dependentes do nível cultural de um país’ poderiam avançar a partir das lutas de direito contra direito e, em caso de vitória, a consequente imposição de limites à voracidade do capital. Essa tributação indica a inversão do potencial desse processo histórico, pois ela “significa a transferência de parte do poder de compra da classe operária para o Estado”, produzindo uma restrição do seu poder aquisitivo, o que cria “uma diminuição do consumo de gêneros de subsistência” (1985: 313). O subconsumo, que é o resultado desta inversão de expectativas, se explicaria por este deslocamento dos investimentos, em que o capital total, uma vez reduzidos seus gastos com o consumo da força de trabalho, ver-se-ia livre para comprar capital constante e trabalho vivo. É justamente esta ‘sobra’ de capital que seria investida na corrida armamentista – “como se fora um mercado recém conquistado” (1985: 315). Os gastos de guerra eram, para Rosa, o pior desfecho da luta de direito contra direito. Neste caso, a derrota do operariado passa a ser vivida como epidemias de fome e catástrofes destrutivas. Contudo, fica ainda a pergunta: de que modo o armamentismo e a guerra funcionam como um mecanismo de compensação? Com os impostos “nas mãos do Estado”, diz Rosa Luxemburg, se criaria um “novo ciclo, no qual assumirá a forma de um poder de compra totalmente estranho e alheio ao capital e ao operariado (…), oferecendo assim, ao capital, novas oportunidades de criação e realização de mais-valia” (1985: 318). A impressionante queima de valor representada pelos aumentos dos impostos seria usada para gerar novos valores, impulsionando uma “nova possibilidade de acumulação” (1985: 319). Com isso, ao tributar camponeses e classes médias, o Estado transforma essas poupanças e recursos de gastos em consumo individual, dispersos, como é o caso dos gêneros de subsistência, “em demandas e investimento potencial do capital”. E então, acrescenta ela: “tem-se agora uma demanda potencial homogênea concentrada no Estado. Para sua satisfação essa demanda pressupõe, no entanto, a existência prévia da grande indústria, da produção em grande escala (…). Sob a forma de encomendas (…) esse poder de compra concentrado das grandes massas de consumidores escapa (…) do arbítrio e das flutuações subjetivas do consumo pessoal, para adquirir regularidade quase automática, um crescimento rítmico”. E conclui: “esse campo específico da acumulação de capital parece ser dotado, em princípio, de uma capacidade de ampliação indeterminada. (…) a produção bélica representa um domínio cuja ampliação sucessiva e regular parece depender antes de mais nada das próprias intenções do capital” (1985: 319). Como o imperialismo é a fase final do capitalismo, para Rosa, a guerra e o militarismo são já sintomas firmes de colapso .

Curiosamente ocorreu o inverso. As duas grandes guerras foram um poderoso instrumento de crescimento do sistema. Mesmo assim, a observação de que o sistema enfrenta um limite absoluto – com a diferença de que este limite lógico é interno e não externo –, que se manifesta na guerra, é certeira. Nem Rosa Luxemburg, nem qualquer outro autor do marxismo tradicional, contudo, admitiram a possibilidade do dinheiro e do trabalho se separarem em situações de crise e não mais coincidirem (Kurz, 2019: 55), como ocorreu nas duas Grandes Guerras do século XX – e mais recentemente, após o fim do acordo de Bretton Woods. Nesta perspectiva, a consagração do objeto – aqui a objetualidade de valor do dinheiro – já não tem qualquer relação com o sacrifício do trabalho, sem que, no entanto, este deixe de acontecer. A guerra, desse modo, torna-se uma nova versão de modelo de sacrifício: um sacrifício ‘puro’, sem a consagração de um objeto além do holocausto voluntário da humanidade que o fetiche do capital necessita para manter a dinâmica do processo social e elevá-lo a um nível superior. Como “a multiplicação do dinheiro ocorre mais rapidamente que a acumulação do trabalho morto” (Kurz, 2019: 55), o autoengano de que o dinheiro possa existir sem sua substância abstrata constituída pelo trabalho é tentadora. A transformação de dinheiro em mais dinheiro, sem o gasto direto com a valorização do trabalho abstrato, acaba por separar o capital produtivo real do capital portador de juros, ou seja, do capital destinado, a princípio, para crédito. Esta situação acaba também por criar as condições para a tautologia D-D’ produzir sua representação social imediata. Esta última figura do capital, diz Kurz, “se torna uma mercadoria”, em que o distanciamento com o capital real produtivo pode crescer mais ainda “quando o dinheiro emprestado não é realmente empregado para o efetivo consumo empresarial de trabalho abstrato” (Kurz, 2019: 58). Isso faz com que a distância com o processo real de valorização se aprofunde e o capital portador de juros se torne capital fictício.

Rosa Luxemburg não percebeu este processo em curso no seu tempo, que assinalava uma “crescente desproporção estrutural entre o capital fixo e a massa de trabalho que [ainda] era possível usar rentavelmente” (Kurz, 2019: 60). Com o crescimento da composição orgânica do capital, o capital portador de juros passou a ocupar um papel de importância crescente, ao ponto de se inverterem as relações entre este capital e o capital produtivo real: “Isso significa que o real capital empresarial, para poder continuar a produzir (…), tem simplesmente de hipotecar antecipadamente quantidades cada vez maiores de trabalho a utilizar no futuro (…)” (Kurz, 2019: 60). Portanto, ao contrário do que pensava Rosa Luxemburg, a separação entre dinheiro e trabalho vai criando uma preponderância das instituições financeiras na gestão geral da dinâmica da acumulação que as leva a guardar o Estado como instrumento de sustentação do todo. Estas “instituições financeiras cresceram então em escala secular” naquele tempo, sendo que a PGM assinalou a entrada desse processo num “novo estágio” (Kurz, 2019: 73). A guerra industrializada criou uma situação nova, mas, diga-se de passagem, nada estranha às necessidades do capital, de obrigar “o Estado a assumir o papel (…) de responsabilidade logística e pelas ‘despesas gerais’ desse processo” (ibidem). Antes da PGM, o capitalismo era apenas um segmento da reprodução social, e o Estado não era ainda o capitalista coletivo ideal. A expansão das finanças estatais, na forma de dívidas imensas, que surgiu a partir desse grande acontecimento, criou “uma situação completamente nova: o problema das finanças estatais e portanto do ‘capital fictício’ na forma de crédito estatal” e, deles, logo em seguida, passou a depender “a própria vida social organizada segundo a forma mercadoria” (Kurz, 2019: 75).

Rosa Luxemburg foi quem, talvez, melhor anunciou o colapso do capitalismo como um limite da sua expansão. Contudo, o limite mesmo, que apenas era enunciado naquela conjuntura, em que a guerra e o militarismo se tornaram ‘um bom campo de acumulação’, se apresentou mais tarde com o desenvolvimento da microeletrônica no fim do séc. XX, na forma de um limite interno absoluto à acumulação de capital. Neste tempo, entre uma ponta e a outra do século de guerras, em que o limite interno se apresentou como um tempo de crise estrutural, a guerra como modelo de dissociação catastrófica consolidou esta função interna ao sistema e pôde realizar com mais esmero seu desígnio da autodestruição.

Ora, se a guerra é o modelo presente no planejamento estatal – que nada mais é, nas palavras de Lênin, do que um ‘mecanismo de direção social da economia’ -; se é o motivo forte do complexo industrial militar, como base da industrialização fordista e; se é a arquitetura econômica das dívidas, com o uso intensivo do capital fictício e do financiamento da infraestrutura que o desenvolvimento do fordismo exigiu, foi, contudo, no conceito de guerra total que ela realiza com toda intensidade o tremor e cataclisma da segunda natureza. Na guerra total a guerra está por todos os lados. Ela realiza uma unificação total das forças da sociedade e as mobiliza para o fim em si de produzir a destruição – até o último homem. É uma decisão de vida ou morte cujo ritual, como foi visto, não foi apenas uma característica do nazi-fascismo e do stalinismo, mas também foi vivido intensamente na formação dos exércitos das democracias ocidentais (EUA, Inglaterra e França) – na transformação do trabalhador disciplinado em soldado engajado na defesa da pátria (cf. Mosse, 2019). E foi a experiência destas guerras (a PGM e a SGM), que estiveram diretamente ligadas à transição às formas maduras das categorias fundamentais do sistema, que iniciou a corrida nuclear e, ao fim, se realizou seu intento absoluto de horror.

As bombas nucleares já não são meras bombas, mas artefatos tão poderosos de extermínio em massa para os quais nos falta qualquer força e capacidade de representação. Este tipo de morte e destruição tem pouco a ver com o da guerra – no sentido clássico clausewitziano -, assim como, o Estado que adentra nesta modalidade de poder já não pode ser pensado – mesmo que isso tenha sido desde sempre uma ilusão – a partir de relações contratuais, em que o cidadão e a sociedade se apresentam como fontes da soberania. Ele é um fenômeno de mudança muito profunda tanto na química da terra, com o uso industrial da radioatividade, como pelo poder soberano que os artefatos nucleares representam. A sociedade que deu este passo já não pode assegurar a existência humana em formas sociais, porque o mundo, equilibrado por tensões nucleares, já não está habitado. Que ele não tenha sido ainda precipitado não garante nada. A diplomacia funcionou nos modelos de guerras regulares, mas para a guerra de extermínio total já não existe sequer o espaço para o diálogo. O fracasso contemporâneo da diplomacia indica neste caso que os Estados que têm a bomba são totalitários (cf. Anders, 2006), pois este tema jamais poderá ser tratado e decidido num pleito eleitoral. Esta situação, possivelmente, indica que, após as duas grandes guerras do séc. XX, a guerra total manteve-se como modelo de mobilização total de produção civil (a produção em massa do capitalismo tardio) e que, uma vez iniciada a sua crise estrutural, ainda nos anos 1970, o tempo desta crise se apresenta como um precipitar de guerras suspensas pelo tempo do fim do sistema. Elas são um dos modos fenomênicos dessa dissociação catastrófica do sistema. Nestas modalidades de guerras, agora não mais clássicas e regulares, mas predominantemente irregulares (a própria formulação desta concepção de guerra surgiu com a ameaça da guerra nuclear), a imposição totalitária do mercado, da existência única determinada pela mercadoria e pelo dinheiro se efetiva como um sacrifício sem fim.

O perturbador na obra de Franz Kafka é justamente isso: que o sacrifício não tenha hora para acabar. No colapso do capitalismo o dinheiro já não incorpora a medida do tempo de trabalho, que foi suprimida pelo desenvolvimento tecnológico. Quanto mais o dinheiro é incapaz de expressar o valor, por estar totalmente desvinculado do trabalho, menos ele é, de fato, sua forma original consagrada. Esta situação, por muitas razões, leva a uma percepção de que o fundamento foi profanado e que, em nome da continuidade do todo, os sacrifícios deveriam aumentar. O moderno patriarcado asselvajado é esta reductio ad absurdum. O seu primado é comum a toda consciência fetichista que, quando as normas objetivadas do seu mundo falham, acusam como motivo desta falha a diminuição de intensidade e quantidade do seu ritual sacrificial. O fim do capitalismo tem sido por isso uma generalização da guerra – ao ponto do trabalho que já não faz sentido como medida imanente do processo de valorização, ter sido reduzido a mera mimetização desta atividade destrutiva. Acabar com a guerra implicará, sem rodeios e no mesmo ato, pôr fim ao trabalho como atividade que a sustenta.

Notas

1- Professor Associado IV do Programa de Pós-graduação de Políticas Públicas em Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NEPP-DH/UFRJ). marildomenegat@gmail.com

2- A figura moderna do soldado remunerado, na forma do mercenário, é também um resultado das transformações em curso com a introdução de armas de fogo na guerra. Creveld (2004: 231) sobre isso observa: “Uma vez confinados em seus quartéis, os soldados e seus comandantes […] criavam uma cultura própria. Distantes estavam os dias em que eles próprios constituíam a sociedade, como durante a Idade Média”. E, um pouco adiante: “… ser soldado (do alemão soldat, alguém que recebia soldo ou pagamento) tornou-se profissão com inúmeros elos internacionais” (2004: 232). Na mesma linha vai Bruyère-Ostells (2012: 10): “No sentido estrito, o termo latino mercenarius designa um ‘soldado contratado mediante dinheiro’ ou um ‘doméstico que se paga’”. Em síntese, voltando a Creveld: “Além da evolução militar-tecnológica que lhe deu início, a mudança na forma de guerrear também teve seus aspectos financeiros”. Desse modo, já no século XIII, “os governantes às vezes liberavam os vassalos da obrigação de lutar por eles, exigindo pagamento de um imposto especial ou scutagium. As quantias obtidas dessa maneira eram utilizadas na contratação de mercenários, e na metade do século XV, os mercenários já substituíam quase todos os seus predecessores feudais, exceto nos extratos mais altos” (2004: 223-24). A Guerra dos Trinta anos teria sido o auge deste ‘novo’ tipo exército.

3- As sandices de Basil Liddell Hart (1895-1970), um traumatizado pelos horrores da Primeira Guerra Mundial, que tornou-se um especialista militar após 1918, ilustram esse sentido do profissionalismo na guerra. Na linha do ‘humanismo da guilhotina’, ele gastou a vida pensando armamentos e estratégias de guerra que abreviassem o suplício da morte, tornando-a mais rápida… E, Luís Alvarez, um dos criadores da bomba de Hiroshima, diz que dedicou-se a este invento com a esperança de que ele pudesse significar o fim de todas as guerras!

4- No Anti-During, Engels (1979: 146) faz a seguinte observação: “No começo do século XIV, a invenção da pólvora passou dos árabes para os europeus ocidentais, revolucionando, desse modo (…) todos os métodos de guerra. E a introdução da pólvora e das armas de fogo não foi precisamente um ato de violência, mas um progresso industrial e, portanto, um progresso econômico. A indústria não perde seu caráter de indústria por se destinarem os seus produtos a destruir e não a criar os objetos. E a adoção das armas de fogo não somente revolucionaram os métodos de guerra, como também as instituições políticas de poderio e de dominação. Para conseguir pólvora e armas de fogo, faziam falta indústria e dinheiro, e ambos (…) elementos estavam em mãos da burguesia da cidade”. Em resposta ao sentido desta passagem, Kurz escreveu (1997: 241): “Pode-se conceder plenamente ao materialismo histórico que a maior e principal relevância não coube a simples mudança de ideias e mentalidades, mas ao desenvolvimento no plano dos fatos materiais concretos. Não foi, porém, a força produtiva, mas, pelo contrário, uma retumbante força destrutiva que abriu caminho à modernização, a saber, a invenção das armas de fogo”.

5- Outra elaboração importante no campo do marxismo tradicional é a de Natalie Moszkowaska, Contribución a la dinâmica del capitalismo tardio, que mostrava como a criação de um complexo industrial-militar era uma necessidade permanente do capitalismo tardio. Além dessa autora, Ernst Mandel deu um espaço significativo ao papel da ‘economia armamentista permanente’ em O capitalismo tardio, assim como, Paul Baran e Paul Swyzee, no seu Capitalismo Monopolista, em que discutiram a função incontornável dos gastos permanentes de guerra numa economia de superacumulação. Em todas essas análises, a guerra é a política por outros meios e um reflexo da economia em suas necessidades imanentes, mas nunca o aspecto sombrio dissociado do valor aqui pensado.

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