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Miscigenação não é genocídio ( e revoguem-se as disposições em contrário) – João Carlos Rodrigues

arlindenor pedro
Por arlindenor pedro 29 leitura mínima
o Brasil tem a maior taxa da miscigenação do mundo

Os critérios raciais brasileiros primam pela falta de precisão e não poderia ser de outra forma, dado ao elevado grau de miscigenação de nossa sociedade. O problema é que nos últimos anos isso vem se acentuando de forma conflituosa. Torna-se importante esclarecer mesmo de uma forma meio didática que se porventura entedia connaisseurs sem a menor dúvida ajudará os ingênuos, os mal informados, os mal dirigidos e mesmo os bem intencionados – sempre majoritários.

Por um lado, os adeptos da velha teoria do “branqueamento” tendem desde o início do século passado a minimizar a participação do negro na composição populacional, antevendo o seu desaparecimento no correr dos anos, devido à miscigenação. A corrente adversária, atualmente dominante na negritude nacional, valoriza por sua vez o componente africano dos mestiços (pardos segundo o IBGE), mesmo dos mais claros, incorporando-os como “afro-descendentes” para obter assim uma maioria numérica que pode auferir ganhos políticos. Ambos estão errados.

Note-se que tantos os adeptos de uma quanto de outra facção negam qualquer identidade própria aos ditos pardos, que seriam algo indefinido entre um e outro extremo, sem características próprias. Os mais claros se julgando brancos e os menos claros empurrados para a classificação “pretos”. Não é assim que se passam as coisas pois boa parte dessas populações não têm uma gota sequer de sangue africano e não deve ser somada aos pretos como irresponsavelmente o próprio IBGE e boa parte da mídia tem feito recentemente, inclusive usando involuntariamente (presumo) alguns critérios utilizados nos períodos mais radicais de hegemonia racista no mundo ocidental.

Os pretos, que já foram 19,7% em 1872 hoje não ultrapassam 8,2%% segundo os dados do IBGE de 2016 (os últimos confiáveis pois o censo de 2020 só será realizado agora em 2022!). O Brasil é majoritariamente pardo (38% em 1872 e 46,7% em 2016) e seguidamente branco (38% e 44,7%). A diminuição do porcentual de pretos não implica entretanto na redução de seu número que só fez aumentar. E lembremos que os brancos até bem recentemente foram alimentados por imigração européia tanto dirigida quanto espontânea. Mas que maioria parda é essa? Façamos um parênteses histórico para adiante responder essa pergunta que não quer calar.

O preconceito racial sempre existiu mundo à fora misturado ou não com o religioso e não foi sempre associado apenas à raça branca como acontece desde o século passado. Está comprovado que os mongóis, os astecas, os turcos e os zulus, por exemplo, praticaram racismo explícito sobre os povos que conquistaram. Na China durante a Revolta dos Boxers (1899-1901) e também na Revolução Cultural (1966-1976) os ocidentais foram perseguidos como “demônios brancos”. Na IIª Guerra, além da Alemanha nazista também seu aliado o Japão Imperial praticou racismo explícito e genocídio contra chineses e coreanos, incluindo experiências médicas com seres humanos ditos “inferiores”, numa história pavorosa até hoje insuficientemente documentada. E bem mais recentemente, em Miamar e Ruanda…

Podemos afirmar que esses traços tribais que só reconhecem como humanos os seus iguais foram também combatidos e/ou ultrapassados por sistemas abrangentes seja religiosos (Budismo, Cristianismo, Islam e outras religiões universais onde os conversos têm direitos iguais perante Deus independentemente da sua origem étnica) seja políticos (concessão da cidadania plena a todos os súditos do Império Romano em 212 D.C., a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 que afirma “os homens nascem livres e iguais em direitos”). Etc. Mas voltemos ao assunto.

Pelo menos no Ocidente parece ter sido na Espanha do século XV que foi editada pela primeira vez oficialmente uma legislação racista que se pretendia racional. Aconteceu no governo dos Reis Católicos, Fernando de Aragão e Isabel de Castela, os mesmos que financiaram a descoberta da América. (Como Castela era muito mais poderosa que Aragão quem mandava mesmo era a rainha e não o rei). Recapitulemos para melhor entender. Isabel assumiu o trono em 1474 e em 1480 foi instaurada a Santa Inquisição. Em 1492 o último reino mouro da Península Ibérica foi reconquistado e os árabes expulsos. É o mesmo ano da viagem de Colombo e também do Edito de Granada que ordenava a expulsão dos judeus que não se convertessem ao cristianismo. O Estatuto de Toledo já em 1449 proibira de ocupar cargos públicos quem não pudesse provar quatro gerações de fé cristã. O bispo Prudêncio de Sandoval escreveu pouco depois que “não é suficiente para o judeu ter três partes aristocrata ou cristão velho pois apenas um ancestral judeu já o corrompe”. O preconceito religioso rapidamente se transformava em racial. Em 1502 os mudéjares, muçulmanos não árabes que tinham permanecido no país protegidos pela legislação, também foram obrigados à conversão forçada e passam a ser denominados mouriscos. Sua Majestade faleceu dois anos depois.

Esses “cristãos novos” de origem judaica ou árabe/berbere nunca inspiraram confiança ao governo e muitos deles se transferiram para Portugal e daí para o Brasil, tolerados pelos jesuítas que aqui imperavam, apesar destes exigirem pureza de sangue para entrar na ordem. Os mouriscos serão expulsos definitivamente entre 1609 e 1614 e a maioria foi para o Marrocos. A “limpeza de sangue” na Espanha é um assunto que surge dissimulado, mas sempre presente durante séculos em obras literárias como “La Celestina” (1499) de Fernando de Rojas, “Don Quijote de La Mancha” (primeiro volume editado em 1605) de Miguel de Cervantes, “O manuscrito de Saragoça” (1805) do polonês Jean Potocki entre outras tantas.

Outro momento lamentável de racismo institucional surgiu nos Estados Unidos. A escravidão por lá foi muito dura. Em certos locais era proibido alfabetizar os escravos sob pena de multa, o mesmo acontecendo com alforria. Após o final da sangrenta Guerra Civil (1861-1865) quando os escravagistas foram derrotados houve um curto período chamado Reconstrução onde os antigos escravos desfrutaram de plenos direitos ameaçando a supremacia branca, que reage com a legislação chamada Jim Crow. Já em 1866 surge a Ku Klux Klan sociedade secreta que combatia negros, judeus e católicos usando métodos violentos. Em 1877 a primeira legislação separando as raças nas escolas, o que, no entanto, já era praticado. Na realidade proibiram as escolas integradas. Isso foi endossado pela Suprema Corte em 1896 quando decidiu que “segregação não é discriminação” pregando uma sociedade “separada, porém igual”. A partir de então foi imposta a divisão das raças no transporte público, banheiros, restaurantes, parques, casas de espetáculo, bairros residenciais e até igrejas e cemitérios. A mulataria afrancesada de Nova Orleans perde seu status especial sendo somada aos pretos ex-escravizados. Proibido o casamento entre brancos e outras raças, incluindo também as orientais. Note-se que foi nessa mesma época que se deu a Conquista do Oeste com o massacre e o confinamento da população indígena. Assim fez-se o país. Até hoje as comunidades raciais norte americanas pouco interagem, apenas são livres nos seus nichos.

Decidiu-se que uma gota de sangue negro (one drop) faz uma “pessoa de cor” (coloured person) independentemente da sua aparência. Critérios muito rígidos, pois incluíam além dos mulatos (pai branco mãe negra ou vice-versa), também os quarteroon (1 avô negro e 3 brancos) e mesmo os octoroon (1 bisavô negro e 7 brancos). O jazzista Duke Ellington lembrou disso ao batizar em 1943 a suíte “Black, brown and beige”. Sempre que possível os beges tentaram passar por brancos em busca de ascensão social. Há toda uma literatura e filmografia em torno disso. Não temos mais os pretextos religiosos da Inquisição Espanhola, o racismo é aqui explícito, abrangente e detalhista.

Em 1905 o livro “The klansman – An historical romance of the Ku Klux Klan” do militante supremacista Thomas Dixon tornou-se um best-seller, transformado em peça de teatro, por sua vez adaptada para o cinema por David Griffith em 1916 como “The birth of a nation” considerado erroneamente como um marco da inovação de enquadramento e montagem na História do Cinema (encontramos essas novidades em filmes italianos anteriores). O filme provocou muitos protestos de entidades negras e também dos liberais, mas alcançou grande sucesso. Havia simpatia popular pelo racismo. Existem registros fotográficos na Livraria do Congresso de uma enorme passeata da Ku Klux Klan em plena capital Washington em 1926 (o presidente era o republicano Calvin Coolidge). É também o período dos linchamentos tragicamente evocados no pungente lamento “Strange fruit” composto por Abel Meeropol e imortalizado pela cantora Billie Holiday em 1939. A mim sempre causou espanto que “The birth of a nation” tenha sido exibido pelas embaixadas e consulados americanos até pelo menos os anos 1970 como um marco da sétima arte. A legislação Jim Crow começou a ser desmontada entre 1950 e 1964 devido à campanha de Martim Luther King e outros militantes pacifistas e não por pressão dos radicais Panteras Negras.

Nada entretanto ultrapassou o acontecido na Europa entre os anos 1930 e 1940. Derrotada na Iª guerra Mundial e em crise financeira avassaladora a Alemanha acabou levando ao poder em 1933 o Partido Nacional Socialista (nazista) de extrema direita, liderado por Adolf Hitler e Joseph Goebbels. Para eles os alemães pertenciam a uma raça superior (ariana) e era preciso limpar o país da presença dos inferiores que teriam sido a causa da derrota: ciganos, negros e principalmente judeus. Estes formavam uma espécie de elite comercial e intelectual totalmente integrada e emancipada desde a segunda metade do século XIX de todas as restrições impostas na Idade Média. Representavam pouco menos de 1% da população e tinham um dialeto próprio do alemão, o yiddish, com ampla literatura e teatro. Antes do nazismo três judeus alemães obtiveram Prêmio Nobel: na química (Richard Willstater em 1915) e na física (Albert Einstein em 1922 e James Frank em 1925).

Isso não foi o suficiente para impedir que a propaganda os transformasse rapidamente em inimigos públicos nº 1. Em 15 de setembro de 1935 foram promulgadas em Nuremberg a Lei da Cidadania (pela qual os não arianos perderam os direitos políticos) e a Lei de Proteção da Honra e do Sangue Alemães (que proíbe a miscigenação entre a “raça superior” e os “inferiores”). Foi considerado judeu quem tivesse 3 ou 4 avós judeus, mestiços (1 ou 2 avós judeus) ou professasse a religião judaica. Em 1938 veio a obrigatoriedade, inclusive retroativa, de usar apenas nomes judeus existentes no Velho Testamento. A propaganda se fazia muito através de filmes supervisionados pessoalmente por Goebbels como “O judeu Süss” dirigido por Veit Harlan e “O eterno judeu” de Fritz Hippler, ambos de 1940. Em 1941 foi imposto o uso da Estrela de David em local visível do vestuário. Isso se estendeu aos países conquistados pelos nazistas ou seus aliados – ou seja, toda Europa com exceção da Inglaterra, Irlanda, Islândia, Suécia, Suiça, Espanha, Portugal e URSS.

Os campos de concentração e extermínio, criados inicialmente para prender comunistas e social democratas, foram também utilizados para todos os tipos de párias sociais: homossexuais, deficientes físicos, ciganos e outras minorias étnicas principalmente judeus. Neles foram realizadas experiências científicas com cobaias humanas. Crimes hediondos contra a Humanidade. A superpopulação desses locais acelerou no correr da guerra a chamada Solução Final, ou seja, o extermínio racional dos prisioneiros em câmaras de gás e o aproveitamento comercial de seus dentes, óculos, cabelos, ossos etc. As leis do IIIº Reich vigoraram durante 12 anos e fizeram milhares de vítimas. Os primeiros desses campos foram libertados pelos soviéticos ainda em 1944 na Polônia e Alemanha e posteriormente pelos Aliados em toda Europa. O regime nazista caiu em 1945, Hitler e Goebbels se suicidaram e alguns de seus responsáveis foram julgados e condenados em Nuremberg (onde tudo começara) entre 1945 e 1949. Mas seu espectro ainda nos ronda.

Quando o mundo pensou que estava livre da praga do racismo institucional, eis que ele ressurge com toda força no continente africano e sob os olhos de uma potência ocidental que se destacara na luta contra o IIIº Reich. Recapitulemos. A Inglaterra ocupou definitivamente a Cidade do Cabo no extremo sul do continente africano (do lado atlântico) no início do século XIX meio a contragosto, mais para impedir que França ou Alemanha o fizessem e dificultassem o acesso a sua principal colônia, a Índia (ainda não existia o Canal de Suez). Mas lá já estavam as populações bôeres, camponeses calvinistas de origem holandesa, com péssimo relacionamento com os nativos. Fugindo dos ingleses esses bôeres vão entrar em choque com os negros xhosa e zulu ao fundar repúblicas independentes – provocando o caos e praticamente forçando a intervenção inglesa em larga escala, que foi imposta em 1910 depois de sangrentos combates (Guerra dos Bôeres, Guerra dos Zulus) na chamada União Sul Africana “pacificada”.

Já em 1949 um renovado Immorality Act – transformado em lei posteriormente ampliada em 1950, 1957 e 1969 – proibiu não apenas o sexo inter-racial como também os casamentos legítimos. Em 1950 o Ato nº 30 criou o registro obrigatório de todo cidadão numa dessas quatro categorias: Branco, Bantu (preto), Coloured (mestiço) e Outros (indianos e malaios). A raça era determinada pelas autoridades mediante critérios diversos: se o cidadão falava afrikaaner ou apenas inglês ou bantu; exame dos cabelos, cor da pele e mesmo da genitália; dieta alimentar; renda familiar etc. Isso tornou-se determinante para a região da cidade onde o cidadão estava autorizado a morar, criando guetos. Em 1952 os africanos precisavam levar um passe (passaporte) para poder se locomover livremente e foram idealizados os Bantustões (reservas tribais). No ano seguinte o ensino e os serviços públicos foram oficialmente separados. E não parou aí.

Em 1961, rompidos os vínculos ainda restantes com o Reino Unido, foi criada a República da África do Sul. Em 1968 são proibidos os partidos políticos multirraciais, entre eles o Conselho Nacional Africano, cujo líder Nelson Mandela estava condenado à prisão perpétua em cela solitária e lá ficou 27 anos. Em 1970 foi decidido dar “independência” aos Bantustões cujos habitantes perderiam assim a cidadania sul-africana, tornando-se estrangeiros. Foi a opinião pública mundial que pressionou os países ocidentais (notadamente os Estados Unidos) a retirar seu apoio ao desumano regime do apartheid cujas leis foram aos poucos sendo revogadas. Mandela foi libertado em 1990, ganhou o Nobel da Paz em 1993, tornou-se presidente em 1994 e o resto nós já sabemos.

Voltemos então ao tema do início desse texto. Como sabemos nenhuma dessas abomináveis legislações foi repetida aqui no Brasil. Na Constituição do império independente (1824) não há uma palavra sequer sobre a escravidão, o sistema de trabalho que sustentava toda economia nacional. No Artigo 6 item I é dito que os ingênuos (nascidos no Brasil) e os libertos são cidadãos brasileiros; no 94 item II que os libertos não tem direito a voto; e no 179 inciso 8 é abolido o uso da tortura, das chibatadas e do ferro em brasa. E só. O resto veio aos poucos através de leis ordinárias, todas a favor dos escravizados. Proibição da importação, Lei dos Sexagenários, Lei do Ventre Livre, Abolição etc. Em 1888 cerca de dois terços dos negros do Brasil já eram libertos ou nascidos livres. Também não encontramos nenhuma legislação determinando que os escravos deviam ser pretos (embora fossem) ou de que todo preto devia ser escravizado (o que possibilitou como vimos acima uma população crescente de pretos libertos). Simplesmente não tivemos leis raciais pois quase todo mundo era mestiçado, os próprios chamados “brancos” eram em boa parte judeus sefarditas ou mouriscos convertidos (cristãos novos).

Muito se especulou sobre os motivos de tanta mistura racial entre nós, fato que não se repetiu em outras colônias portuguesas da África e da Ásia. Devemos isso primordialmente aos índios do litoral, do grupo tupi-guarani, que possuíam um sistema familiar abrangente onde oferecer filhas e sobrinhas aos recém-chegados era uma prova de prestígio e um modo de aproximação e cordialidade. Vide Catarina Paraguaçu e Caramuru. Depois veio a promiscuidade sexual da escravatura. Chica da Silva e João Fernandes. Mesmo hoje, séculos depois, a análise do DNA uniparental que se transmite pelo lado feminino revela 33% de origem indígena (contra 28% de preta e 38% de branca). Pouca diferença entre as três partes. No que se refere ao DNA masculino a coisa é bem diferente: 75% branco, 15% preto e apenas 0,5 indígena. (Fonte UFMG in FSP 18.07.2021)

Os brancos são maioria apenas nas regiões Sul (76%) e Sudeste (52,2%) e no seu ponto mais baixo não chegam a 20% no Norte. Os pardos dominam no Norte (72,3%), Nordeste (64,9%) e Centro Oeste (55,3%). Os pretos são minoritários em todo país e seus melhores índices estão no Nordeste e no Sudeste (cerca de 10%) e o pior no Sul (3,8%). Quando analisamos por estado da federação essa diferença se repete. Temos dois estados praticamente brancos SC (84,1%) e RS (81,5%) e seis esmagadoramente pardos (AM e AC 76%, PA 73,3%, PI 71%, AL e SE 70,5%). A presença do preto é mais discreta com 20% na BA, 14,3% no RJ e beirando 11% em MG, MA e TO. Fonte FSP 25.11.2016.

Torna-se evidente então que não há como somar pardos e pretos na denominação “negros” como tem acontecido nos últimos anos. Se há poucos pretos na região Norte, por exemplo, onde a maioria esmagadora é parda, sem dúvida essa população não é afrodescendente e sim cabocla, mestiça de branco e índio ou pardo e índio. Ao contrário do Sudeste onde os pardos são seguramente afrodescendentes pois há bem menos indígenas, no Norte estes surgem em porcentagem bem mais expressiva (11% de RR p.ex.) e quatro estados possuem mais de 50 mil indígenas declarados (MS, BA, PE, RR) e um (AM) o dobro disso. (Fonte IBGE). Entenda-se por “indígena declarado” os que vivem nas reservas, cerca de metade da população.

Portanto uma boa parte dos chamados pardos não pode, não deve e não quer ser incluída como “preta”. Existe até uma entidade, a Nação Mestiça sediada em Manaus que se autodefine como um “movimento pardo mestiço brasileiro”, ressaltando essas diferenças. Suas declarações merecem toda atenção como essa que encontramos na página do STF:“o sistema de cotas para negros não é, a rigor, medida de ação afirmativa … tem por base uma elaborada ideologia de supremacia racial que visa a eliminação política e ideológica da identidade mestiça brasileira e a absorção dos mulatos e caboclos, dos cafuzos e outros pardos pela identidade negra a fim de produzir uma população exclusivamente composta por brancos, negros e indígenas” (Helda Castro, 2011). Por pressão desse e outros grupos foram incluídos adendos à lei beneficiando mestiços e indígenas.

Mas como definir um “pardo? Originalmente alguém de tonalidade marrom como o pardal, pequeno pássaro urbano. Mas os beges, quase brancos? Apesar da nomenclatura do IBGE tratar de cor da pele e não de raças e assim como o censo aceitar que cada cidadão defina a sua, a lei das cotas se refere a raças, igualmente definidas como “não existentes” na moderna antropologia e cada candidato também escolhe onde melhor se encaixa. Mas tem havido tantos questionamentos e fraudes que em algumas universidades têm sido nomeadas pessoas para verificar a autenticidade da declaração, inclusive na até agora respeitadíssima USP.

Não há como não recordar as comissões do apartheid sul-africano que tinham a mesma função. Verificar a etnia dos cidadãos. Quantos antepassados pretos será preciso provar, como nas Leis de Nuremberg, para ser considerado afrodescendente nesse novo Brasil? Certa cantora parda teve de sair do elenco de uma peça musical sobre uma sambista negra porque era clara demais, pressionada por entidades. “Acordei preta e fui dormir branca” reclamou ela (Fabiana Cozza). Na realidade não é preta nem branca, mas mestiça. Mas afinal os pardos não foram somados aos pretos pelo IBGE na denominação “negros” como nas leis Jim Crow? Ronaldo Vainfas, professor da UFF, narra com humor o dilema do técnico do time de futebol da favela paulista Heliópolis, time só de negros, para definir quem podia ou não jogar: “não pode jogar no time dos pretos o fulano que o cabelo voa quando corre”. Todas essas dúvidas e perguntas que hoje são pertinentes seriam inconcebíveis no Brasil de 50 anos atrás.

Não me parece ter sido uma boa coisa essa transformação de um problema basicamente social num problema estritamente racial. Há toda uma teoria atribuindo isso a um plano da CIA executado através de universidades norte-americanas. Será? Nada mais eficiente sem dúvida para desestabilizar a sociedade brasileira do que remexer no assunto miscigenação que, como sabemos, é secular e irreversível. A pauta identitária completa – que inclui ainda os homossexuais, os índios e as mulheres – foi adotada pela esquerda que assim se afastou de sua base operária tornando-se uma ideologia da classe média, enquanto os pequenos burgueses e trabalhadores abraçaram a direita e agora a extrema direita. Na França de hoje muitos dos departamentos de maioria proletária que votavam no Partido Comunista hoje votam na Marine LePen e não nos cosmopolitas socialistas identitários. Muito por causa da pauta de costumes – observaria Camille Paglia. O povo é conservador, descobrimos decepcionados. E agora?

Se a diferença entre racismo e preconceito é que o primeiro possui um arcabouço legislativo e o segundo é mais um impulso individual, no Brasil nunca existiu nem existe racismo pois nunca tivemos legislação a respeito. No verbete da Enciclopédia Britânica “segregação racial” encontramos o seguinte: “A segregação racial aparece em todas as partes do mundo onde houve comunidades multirraciais salvo onde houve mistura em grande escala como no Havaí e no Brasil. Nesses países houve discriminação social ocasional, mas não segregação institucional”.

Isso não significa que não haja preconceito e que esse não esteja crescendo e chegando ao limite do intolerável. Anos atrás seria um escândalo que num estádio de futebol um jogador fosse xingado de “macaco” pela multidão. Mas também causa estranheza que o cantor Baco Exu do Blues tenha dito as bobagens que disse no Youtube sobre o relacionamento com mulher branca sem despertar polêmica com as feministas. Basta também olhar a composição étnica das Forças Armadas para verificar que existe um funil invisível mesmo numa atividade do Estado da qual se espera no mínimo refletir a diversidade da população. Preconceito estrutural mais do que racismo estrutural, eis a questão. São semelhantes, mas não são a mesma coisa. E o primeiro ainda de mais difícil solução do que o segundo. Uma legislação pode ser revogada numa penada legislativa, mas mudar a cabeça dura das pessoas é bem mais difícil. Mas não impossível. // fevereiro 2022

Post scriptum. Creio que merece registro a recente campanha na internet de Nabby Clifford, músico ganense há muito radicado no Brasil, para a troca da palavra “negro” por “preto” no que se refere à etnias humanas. Argumenta que “negro” é sempre associado a coisas ruins e/ou pejorativas: fome negra, peste negra, alma negra, viuva negra (aranha venenosa), denegrir. E preto é apenas uma cor, um tom de pele.

o autor do ensaio

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Libertário - professor de história, filosofia e sociologia .
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