Os estudos do filósofo e pensador alemão, Max Weber, podem contribuir para as reflexões que faço aqui, tendo em vista que foi ele, sem dúvidas, quem melhor estudou o caráter racional da sociedade contemporânea-um mundo criado pela burguesia liberal onde não existe lugar para a irracionalidade. Para Weber, o império da razão, oriunda do pensamento ocidental, encarna-se-ia num sistema de cultura intelectual e material (uma economia, uma tecnologia, um modo de viver, uma ciência, uma arte), que alcança o seu mais elevado ponto de desenvolvimento no capitalismo industrial.
Esse sistema tenderia para um tipo de domínio específico que, em última instância, se converte no destino da época em que vivemos: o mundo da burocracia total dominada pelo racionalismo. Parte da obra de Weber, seria construída na tentativa de captar as múltiplas manifestações deste racionalismo, como no livro “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, dentre outros.
Tanto as obras de Mannheim, quanto a de Weber, reforçam a minha ideia de que numa sociedade racional não há lugar para Utopias, pois esta privilegia uma forma de um pensamento lógico-calculista racional, que antecipa tudo. O seu caráter racional, levado ao extremo, na busca de resultados, dificulta a existência dos sonhos, criando uma realidade racionalista e materialista, perfeitamente previsível, onde o consumo é o objetivo final. Forma-se uma sociedade em que tudo se torna descartável. A busca por objetos é incessante e parte de uma equação que diz que ter esses objetos é sinônimo de felicidade. A forma de fetiche assumido pela mercadoria acentua o seu valor de troca em detrimento do seu valor de uso. O consumo acaba por reger o modelo de vida atual, definida pelo excesso de ofertas, demandas vorazes e liquidez destes mesmos objetos. A atualidade é então marcada por uma “cultura das sensações”, na qual impera o culto ao corpo e a beleza, observando-se, ainda, um certo hedonismo-tendência a querer obter permanentemente o prazer e evitar o sofrimento.
Dentro deste quadro, acredito que as estruturas políticas das sociedades contemporâneas tornaram-se grandes mercados, estruturados para a venda de sua maior mercadoria: os políticos profissionais dos Estados do mundo globalizado, produtos prontos para o exercício do poder e arautos desta forma de viver. Vale a pena aqui relembrarmos um momento de uma Conferência pronunciada em 1919, em Munich, que teve como temas “a política como vocação” e” a ciência como vocação” . Nesta Conferência, que mais tarde foi publicada, e recebeu o nome de “O Político e o Cientista”, Weber, debruçou-se sobre um personagem-chave do sistema político americano, que ele chamou de Boss, que ele definiu como Chefe-um dirigente político que administra os votos sob sua responsabilidade. Para melhor compreendermos esta figura, no Brasil, poderíamos assemelhá-la ao cabo-eleitoral, elemento indispensável na construção dos votos pelos candidatos. Numa situação onde a Utopia política tem pouco ou nenhum valor, a figura do Boss, aqui o cabo-eleitoral, é decisiva, no quadro de negócios, onde se fará a captura do voto do cidadão-eleitor.
Nos diz Weber:
“Que é o boss? Um dirigente político-capitalista que reúne votos por sua própria conta e risco. Pode ter conseguido as suas primeiras ligações políticas como advogado, taberneiro ou dono de qualquer negócio semelhante, ou talvez como prestamista. À partir destes antecedentes, vai estendendo as suas redes até conseguir “controlar” um determinado número de votos. Chegando aqui, entra em relações com Boss vizinhas, logra-os atrair com o seu zelo, a sua habilidade, e acima de tudo, a sua discrição, a atenção dos que os precederam neste caminho e começa a subir. O Boss é indispensável para a organização do partido que ele centraliza nas suas mãos, constituindo a principal fonte de recursos financeiros. Como os consegue eles? Em parte mediante as contribuições dos membros, mas, sobretudo, cobrando uma percentagem sobre os ganhos dos funcionários que devem seus cargos a ele e ao partido, recebe, além disso, o produto das gratificações e subornos. Quem quiser infringir impunemente alguma das numerosas leis, precisa da conivência do Boss e tem que pagar sem o que se arrisca a sofrer consequências muito desagradáveis. Mas todos esses meios não chegam, no entanto, para reunir o capital que a empresa requer. O Boss é também indispensável na aplicação imediata do dinheiro entregue pelos grandes magnatas financeiros. Estes de modo algum confiariam o dinheiro que dão, para fins eleitorais, a um funcionário a soldo ou a uma pessoa que tenha que dar contas publicamente. O boss, com a sua prudente discrição em questões de dinheiro, é, por antonomásia, um homem dos círculos capitalistas que financia as eleições. O Boss típico é um homem absolutamente apagado. Não procura prestígio social; pelo contrário, o “profissional” é desprezado na “boa sociedade”. Procura exclusivamente o poder, claro que como meio de conseguir dinheiro, mas também pelo poder em si. Ao contrário do líder inglês, o Boss americano trabalha na sombra. Raramente é ouvido falar”.
(Weber, in “O Político e o Cientista”,1975).
Para Weber, o
“Boss não tem princípios políticos firmes, carece totalmente de convicções e só quer saber como se podem conseguir os votos. Não é raro que seja um homem bastante inculto, mas a sua vida privada é geralmente correta e irrepreensível. Na sua ética política limita-se a acomodar-se à moral médio da atividade política que impera no momento, como fizeram muitos dos nossos, no que respeita à moral econômica, na altura do açambarcamento. Não lhe interessa o fato de ser socialmente desprezado como “profissional”, como político de profissão. O próprio fato de não ocupar nem querer ocupar os grandes cargos da União tem a vantagem de permitir, em não raras ocasiões, a candidatura de homens inteligentes alheios aos partidos, de notabilidade(e não só, como entre nós, de notáveis dos partidos), se o Boss pensar que pode atrair votos”
(Weber, in “O Político e o Cientista”,1975).
Vemos aí conceituações que merecem ser postas em análise, à luz da prática corrente da política no nosso país, e no mundo. Como a política contemporânea não mais convive com as ideias, ou seja, com propostas no campo da política formuladas em torno de Utopias, os seus integrantes, ou seja, os políticos, nada têm de fato com as imagens que tentam criar para eles e os seus partidos políticos. Embora esses partidos ostentem várias denominações tradicionais de correntes políticas outrora existentes, eles, de fato, nada têm no seu conteúdo e mesmo na sua prática com os nomes destes partidos. Na verdade, eles nada têm em comum com essas correntes de pensamento tradicionais da política, tais como, os antigos partidos do campo conservador, de centro, de esquerda, etc. Inúmeros exemplos podem ser apresentados para ilustrar o que afirmei anteriormente.
Na primeira campanha que venceu, após inúmeras tentativas frustradas, de levar o seu candidato, Inácio Lula da Silva, à presidência, o Partido dos Trabalhadores, abdicou de seu Programa, que ele afirmava socialista. Para vencer as eleições ele assinou uma “Carta ao Povo Brasileiro”, onde desenvolvia teses liberais, plenamente assimiladas pelos setores financeiros, industriais e agrários que a detém o controle do Estado brasileiro. Após vencidas a eleição fez um governo de caráter populista em aliança com esses setores, obtendo pleno apoio popular, estimulando o consumo e o crescimento do mercado. O curioso aqui é perceber como a retórica anteriormente tida de caráter radical, no que concerne às mudanças estruturais da sociedade, foi posta de lado, para a manutenção desta aliança.
Aqui o papel do partido, seu ideário socialista, nada teve a ver com o governo, que foi conservador na sua essência. Outro exemplo, digno de nota, e passou para a história, é a declaração dada a imprensa, do mega industrial Paulo Kafka, na época Presidente da poderosa Federação das Indústrias de São Paulo — FIESP, responsável de pelo menos metade do PIB brasileiro, perguntado como era possível ele um mega industrial se filiar a um partido que pregava o socialismo? Tal pergunta foi esboçada em outubro de 2009, quando da sua filiação ao PSB, partido que ele, naquele momento, pensava, seria o instrumento para atingir o Governo de São Paulo. Sua resposta foi simplesmente que o “S” de socialismo do PSB “seria apenas uma letrinha”, igual às que aparecem em todos os partidos. Nada tinha a ver.
“—São novos tempos. As pessoas perguntam como pode o presidente da FIESP se filiar a um partido socialista”. Ora todos os partidos têm um S, até o PSDB tem um. Não vivemos mais o tempo da luta de classes. Estamos no século XXI. Os empresários querem a simpatia da sociedade e apostam em responsabilidade social, ambiental. A ideologia não cola mais nos novos tempos. A população não quer pegar letrinhas de partidos. Quer segurança, emprego, saúde, educação. Seriedade, honestidade e bom gerenciamento. Para mim, que tenho o vírus da política desde moleque, importa que haja democracia. “Não é ideologia, estamos no século XXI, tempo em que as pessoas têm oportunidades mais iguais”
(in, O Globo, 25/10/09).
No caso específico do Brasil, onde os políticos são os detentores dos mandatos, esta declaração se torna mais presente, pois as posições políticas não se dão em torno de um ideário, de um programa político, que mudam conforme as mudanças conjunturais. Se na equação eleitoral de um político qualquer a continuidade de seu mandato correr perigo, basta mudar de partido ou mesmo criar uma nova agremiação onde a sua figura seja hegemônica. Importante mesmo é manter a rede política dos votos, alimentando continuamente os cabos-eleitorais, que, na verdade, são as bases reais desta estrutura. E para isto, estar ligado ao governo, em última instância, tornar-se fundamental, ao ser da máquina governamental que saem os recursos para alimentar esta imensa máquina. Se por um acaso não for possível manter-se no governo, passa-se então a incomodá-lo, o bastante, criando-se condições para um futuro acordo, uma adesão. Mesmo no caso dos programas de governo, apresentados na disputa eleitoral, verificamos que, na prática, eles são construídos por mera formalidade, pois a realidade pós-eleitoral se faz de forma casuística, nas alianças que necessitam ser firmada para a manutenção do poder.
Fica claro, portanto, que as ideias pouco importam neste quadro político. O que importa, em última instância, é ajustar o seu discurso à lógica que ele julga mais eficiente, para conquistar o voto do eleitor.
Serra da Mantiqueira, agosto de 2023
Referência
Weber, in “O Político e o Cientista”,1975).
Jornal O Globo, edição de 25/10/09