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Feijão com arroz,vai?Alaor Junior

arlindenor pedro
Por arlindenor pedro 9 leitura mínima

A natureza do meu trabalho de atendimentopsicológico clínico, ainda que hoje se dê na forma virtual, me exige um refino de escuta de linguagens plurais, enquanto ditas e não ditas, ou para os que queiram, ‘as bem e asmalditas’, e tal processo demanda que a atenção flutuante se insira na órbita do exercício da percepção dos discursos, da letra viva que escapa na fala, livremente associada, carregada pelo quantum afetivo. Além do prazer profissional, tenho me dedicado à escrita, que também me imanta positivamente, como ponto crucial à ‘ruminação e digestão’ de conteúdos ouvidos e experenciados no espectro da dor alheia e tão minha, que alavanca a grande doença social contemporânea, o que oferece farto material para alimentar a criatividade, franqueando a produção literária no necessário viés catártico, esvaziamento tensional frente às agruras que assolam as sociedades. Tempos tenebrosos, que a arte nos mantenha na boia da salvação, pelo menos o feijão com arroz.

A argumentação visa esclarecer o tom intimista que alinhava meus escritos, tentando ao máximo, explicitar o grande incômodo e/ou estranhamento que me impactam frente às diversas queixas sociais, sou tão igual a tantos sofredores, pelo menos aos que decidem querer enxergar isso, o que me lembra Saramago, no seu Ensaio sobre a Cegueira (1995)onde a angústia sinaliza toda uma fragilidade do caráter humano. Questões tensionais que existem entre as demandas individuais e coletivas, expressando o choque dos desejos e posturas do sujeito frente à sociedade, também são levantadas por Freud, na sua obra O Mal-estar na Civilização (1930), daí pode-se pinçar a literalidade da lacuna no gregarismo: ‘o que eu quero, o que esperam de mim’. Essas condições pioram na análise do recorte dentro do sistema capitalista, e se o mote da proposta reflexiva deste texto vem pelas palavras engasgadas, pensemos nos verbetes e conceitos à cerca de: exploração, segmentação social, poder financeiro, condições de trabalho e benefícios, poder de compra e aquisição, segurança, saneamento, educação, saúde e todo um elenco de dados que refletem os IDHs e transpassam a integridade psíquica das pessoas mergulhadas em uma cultura patriarcal, de base exploratória, colonialista. Luz de alerta acesa: Existe felicidade? Ilusão? Quem a merece?

‘Glórias ao Altíssimo, ou ao Senhor Político tal!’ Vai lá saber qual entidade que operou. A exclamação é o embustefalacioso arrotado pelos filhos da alienação, intoxicados pelo coquetel de religiosismo barato, cultura depauperada,fragilização dos direitos sociais e politicagem de rapina (triste redundância) que perpetua relações de dependência no vetor do assistencialismo rasteiro, agrilhoando os menos abastados à oportuna dominação exercida pela bondosa classe dominante que viabiliza favores aos mais ardentes clamores.

Exemplo: uma reportagem que exalta a chegada do desenvolvimento no sertão nordestino, a exemplo dos parques eólicos que, supostamente, facilitariam acesso à energia elétrica e por efeito cascata, ao funcionamento de bombas em poços e cisternas de água, e o comércio, o crescimento, as melhorias, blábláblá: o paraíso! Até aí tudo perfeito. Só que não, o resumo é mais complexo. Além do barulho das turbinas eólicas, que tira a paz dos moradores, a poeira gerada pelas hélices gigantescas, compromete a higiene dos lares, bem como a saúde respiratória da população. E aí vem o porta voz financiado pelo burguês/político e argumenta com escárnio: ‘esse povo não sabe o que quer, não queriam o progresso?Recebem tudo de mão beijada, nunca estão satisfeitos…’. Assertiva clássica que embasa as ferramentas de domínio e a mentira por trás da estratificação e do preconceito.

Não há aqui qualquer apologia contra a evolução, a modernidade deve ser igualitária em todos os sentidos. O problema é a falta de regulamentação para a instalação daqueles equipamentos, o que favorece os interesses de empresários e políticos que se debruçam sobre as facilidades das brechas na lei, deixando em último plano o verdadeiro bem-estar da população, ou melhor (pior), da massa que representa a força de trabalho. Lasquem-se os queridos vassalos. No mesmo viés vai o desmatamento praticado pelo latifundiário/pecuarista, escudado por bancada ruralista, inclusive de matas ciliares que evitam secas ou outros extremos climáticos, como as enchentes no Rio Grande do Sul. (Epopeia: está comprometido nosso arroz, em breve a peso de ouro). Os interesses do capital sempre estarão acima das benesses ofertadas aos que tocam, com sangue e suor, os meios de produção, mantidos no patamar do roto suprimento das necessidades básicas. Fragilização como estratégia.

Em 2012, durante uma conferência na Universidade de Paris, o sociólogo Christian Laval apresentou reflexões sobre uma biopolítica atrelada ao capitalismo, que nortearia uma forma de existência, ou seja, a precariedade como ‘estilo de vida’. Trazendo impactos à percepção intelectual e à própria forma de vida das massas. O horror é enxergarmos que existe um naturalismo na proposta, não por parte do sociólogo, mas do próprio sistema que confina o trabalhador à exposição ao trabalho, no viés nocivo da coisa, e que no efeito craquelado atinge o [sub/des]emprego, as relações socioafetivas e a própria ruptura das mínimas condições de integridade do sujeito e de sua, já capenga, estrutura de vida.

“A vida é precária, o amor é precário, por que o trabalho escaparia desta lei?” Essa frase veiculada em 2005 pelo Le Fígaro foi dita por Laurence Parisot, presidente do Mouvemment des Entrepeneurs Démocratiques Français (MEDEF), uma organização francesa que representa empregadores desde 1998. A precariedade citada, e que objetiva o sistema, traz em si um triplo viés de impacto: biológico, econômico e afetivo/amoroso o que desemboca na vulnerabilidade frente ao emprego/trabalho, fragilização da conjugalidade e literal exposição à doença, e essa premissa não passa por ideologia fantasiosa, posto se inserir em dispositivos que visam manter o controle e domesticar a vidae as dinâmicas afetiva e laboral dos trabalhadores, com respaldo na normatização das instituições e na lei.

O próprio incentivo ao empreendedorismo camufla a toxidade da política de insegurança neoliberal que embute um desmantelamento das proteções sociais e desestabilização das estruturas estáveis. (Até aqui algo lhe soa familiar?) Vamos logo ao que se esconde no profundo, pois vende-se a ilusão do sucesso, plenamente tangível e diretamente proporcional ao empenho do sujeito, porém tudo acontece em ambiente hostil à individualidade e à liberdade, qualquer possibilidade de insegurança dada ao indivíduo e franqueada pelo sistema é interessante a este. A ferramenta religiosa não comunga desta premissa? Sim, anda de braços dados com o capital. Mas o indivíduo não pode prosperar, não pode enriquecer ou ascender de classe? Até pode, porém nada é de forma simplista e prática como é veiculado, não há interesse daqueleque acumula capital e detém os luxos, os donos dos meios de produção.

Aliás a politicagem do consumo de ideais de luxo, maquiados pela publicidade e atrelados à melhoria social, desponta como outra eficaz ferramenta numa sociedade de aparências (onde seguidores são cotas de amor), pois corrói os proventos auferidos no trabalho, demandando mais trabalho e mais consumo, e mais ‘likes’, e mais…; um círculo vicioso, escravizante, ideal ao burguês. Mas se o sistema é tóxico, qual o motivo de perseverar? Talvez devamos mudar o enfoque do senso crítico, especializá-lo pela cultura e educação de qualidade ou partir para ações mais contundentes contra o sistema, o que exige coragem e engajamento da esquerda.Mas como desalienar os alienados. Conscientização, cultura e arte são pautas eficientes. Lento ou não, o capitalismo é processo em declínio, patina na própria soberba.  

Hoje mesmo ouvi de um amigo, que está em Lisboa,Portugal, o relato de ter visto, do alto da sua varanda, um assalto em um mercadinho do bairro, dois sujeitos encapuzados de branco, saquearam o estabelecimento levando um ‘saquinho’ (não pensem que foi uma saca de vários quilos)de feijão, sendo perseguidos pelo funcionário indiano (devidamente contratado pelo empresário lusitano) que, pelo que se sabe, não logrou sucesso na [re]captura do produto e dos possíveis ‘famintos’ (Coitado! Será que foi despedido?). Pois é, acreditem, a crise chegou a Portugal, e pode ser que essa velhaca se mostre como a primeira rasteira ao velho continente. Que venham novas mentalidades, afinal, cardápios tradicionais já deram o que tinham que dar, aliás, levaram o que não podiam: dignidade. Chega de feijão com arroz!

Alaor Junior 07/05/24

 

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Libertário - professor de história, filosofia e sociologia .
4 Comentários
  • Na primeira década deste século, foi apresentado aos educadores do Sistema Educacional do Ensino Medio, o conceito de Protagonismo Juvenil, como forma de incentivo aos discentes no processo de autonomia. A escola que repetia o modelo fabril, antecipadamente divulga, não sem intencionalidade, a ideia do empreendedorismo.
    Como sempre não se dá ponto sem nó.

  • A nova roupagem para exploração de mão de obra vem com a nomenclatura de empreendedorismo.
    Mais uma forma de surrupiar os direitos dos trabalhadores.

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