(30 de agosto de 2020)
Jesus falava aramaico e citava passagens do Velho Testamento em sua língua materna e em hebraico. Os evangelhos narrando a pregação de Jesus foram escritos em grego, décadas depois da morte do Mestre.
(Os evangelhos foram escritos em grego – uma língua de um tronco linguístico diferente do da língua em que pregava Jesus – porque o grego, além de ser uma “língua de cultura”, era a “língua franca” da época no Oriente Médio.)
Quatro séculos depois, os textos gregos dos evangelistas foram traduzidos para o latim, por São Jerônimo.
Hoje, os padres e os pastores fazem alusão à “palavra” em traduções para as diversas línguas vernáculas, cujas origens situam-se por volta de mil anos depois do nascimento de Jesus.
Pergunto: o que resta da pregação feita por Jesus quando baseada numa tradução em língua vernácula da tradução (latim) da tradução (grego) do original (aramaico/hebraico)?
Sem falar no fato de as pregações de Jesus terem sido feitas sempre por meio de parábolas, o que exige uma atenta e profunda meditação hermenêutica. Com isto eu quero dizer que a “palavra” não está expressa diretamente na palavra…
E, no entanto, os pastores insinuam ter acesso direto à verdade da “palavra”, cada um fazendo a interpretação que melhor atende aos seus interesses políticos e ideológicos, ainda que esta esteja em aberta contradição com a atuação de Jesus.
Cito um único e singelo exemplo: Jesus jamais julgou moralmente quem quer que fosse. Mais: ele se insurgiu franca e abertamente contra vários preceitos morais vigentes em sua comunidade, e condenou os moralistas. (E pensar que as diversas confissões cristãs construíram seus rebanhos – e fortunas – em meio às mais abjetas e demagógicas pregações moralistas.)
Como a “palavra de Deus” não brota espontaneamente da palavra escrita (tradução da tradução da tradução da tradução), abre-se um campo para o vale-tudo da instrumentalização das interpretações, segundo conveniências nada espirituais.
A história de Flordelis espanta pela soma de tramas escabrosas, mas não causa espanto que ela se diga cristã, já que o cristianismo realmente existente, de modo geral, vem sendo uma falsa exortação moral que nega e denega sistematicamente o Mestre a quem dizem adorar. É hipocrisia, que se fala, né?